quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Mais Banksy (Sempre)

História Cultural Hoje

http://www.scielo.br/pdf/ea/v17n49/18412.pdf

Literatura pós-moderna feita à moda brasileira.

QUADRADO, Adriano D. Inferno pós-moderno: marcas da contemporaneidade em Hotel Hell e outras obras da Geração 90. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

Este trabalho estuda a influência dos tempos pós-modernos na literatura da “Geração 90”, a mais nova safra de ficcionistas brasileiros. Em especial, enumera e analisa as marcas da contemporaneidade na obra de Joca Reiners Terron, tratando em detalhes da novela Hotel Hell, publicada inicialmente no blogue do escritor e depois lançada em livro no ano de 2003. Para tanto, estende-se por três capítulos. O primeiro aborda as teorias acerca da pós-modernidade e procura esboçar as feições do contemporâneo. O segundo investiga como este “espírito de época” se evidencia na prosa da Geração 90. O terceiro faz o mesmo com a novela de Terron e seus outros quatro livros publicados até o momento, incluindo a seguir uma entrevista com o escritor. O objetivo da dissertação é demonstrar que há características e procedimentos comuns aos prosadores dessa geração e que Hotel Hell é obra emblemática da literatura pós-moderna feita à moda brasileira.
http://quadrado.com/mestrado.htm

Hotel Hell


O pesadelo de Joca Reiners Terron nos microcontos de Hotel Hell

por Steffania Paola

Para onde, amigo?
- Pro inferno.
- Ah, te deixo no Hotel Hell, conhece?
- Cumé? Um hotel?
- É, grande como uma cidade. Tem tudo por lá, cassinos, bares, ruas, avenidas – o caralho.”

Imagine uma cidade, ou melhor, um parque temático no qual paquidermes, macacos que comem "merda” e bebês de 60 anos transitam pelas ruas como seres urbanos normais. Se depender de Joca Reiners Terron, São Paulo é mais ou menos isso. Some-se uma dose de escatologia, algum humor e muito caos.

Hotel Hell, segundo livro em prosa de Joca Terron, é uma metáfora da maior metrópole da América Latina. O texto é escrito em forma de micro-histórias. Trata-se de uma coletânea dos post’s do blog do autor. O Hotel Hell foi construído em cima de um cemitério de macacos e, segundo descreve o taxista, "lá dentro as putas é que escolhe os clientes.(...) e tem gangues de comedores de merda que seqüestra todo mundo".

Em algumas passagens a escatologia dá espaço ao lirismo. É o caso de “O Outono Sempre Queimando seus Brotos” e “As Entranhas”. Joca transforma o caos do centro de São Paulo - com seus "taxistas em chamas" - em pura poesia. Já o humor ácido de Hotel Hell está em “Tchau”, micro-história em que um suicida, enquanto estrebucha, percebe uma rachadura no teto. Deixa então um bilhete pedindo que arrumem. Depois do suicídio, ocorre uma espécie de reencarnação: é quando ele se dá conta de que é a nova Sheila ruiva do É o Tchan.

Outro destaque é o poeta que, em certa passagem do livro, corta a genitália de um homem e avisa sua esposa que ela tem 24 horas para pagar o resgate. A linguagem apurada está em “O Canto do Messias Assado”. Messias assado ou oráculo, o frango assado. Aqui Joca escreve ou descreve a linguagem do cocoricó: “cóquóquase todos aquietam e cocólocócam o cocóração de cócoras”.


Joca Reiners Terron
O caos parece atingir o ápice em “Cidades são fábricas de merda”, uma das últimas histórias. A velocidade com que se desenvolve é traduzida na linguagem rápida e confusa de Joca, “E luzes. E luzes. E luzes. E passam rápidas. E postes. (...) E ruas. E gente. Gente pra caralho.” O final ficou para as cigarras que cantam fora da época em “Sem Chance”.

O retrato fiel do inferno, ninguém sabe. Mas se Joca pretendeu descrever o inferno em meio à caótica vida moderna, com certeza chegou lá. Joca, além de escritor é editor da Ciência do Acidente. Já publicou os livros de poemas Eletroencefalodrama (1998) e Animal Anônimo (2002), os de prosa Não há Nada Lá (2001), Hotel Hell (2003) e acaba de lançar pela editora Planeta Curva de Rio Sujo.

"Partir, evadir-se, traçar uma linha":Deleuze e a literatura

O texto é ótimo mas, apesar de meus esforços, a configuração ficou
devendo...
"Partir, evadir-se, traçar uma linha":Deleuze e a literatura
SOUSA DIAS - Professor no Porto/Portugal com larga experiência de
estudo da filosofia de Gilles Deleuze, nas obras "Lógica do
Acontecimento" (1995); "Estética do Conceito" (1998).
RESUMO – Este ensaio esboça um olhar sobre o modo como Gilles
Deleuze trata a questão da literatura. Tomando como ponto de partida
o exercício da filosofia como interferência ativa e criativa, como
co-criação, o autor nos permite acompanhar a exploração do paradoxo
constituinte da literatura, uma finalidade extralinguística no
coração da linguagem literária. Ele analisa a criação literária e a
invenção poética como efeitos de uma tensão na própria língua,
incitando o devir uma língua menor, e toma a poesia como criação de
uma língua de imagens, uma língua-limite em que as palavras já não
obedecem mais à sintaxe e se põem a fazer vibrar outras intensidades.
Palavras-chave – Literatura; poesia; criação literária; Deleuze.
A literatura ocupa um lugar privilegiado no pensamento de Gilles
Deleuze. Não são apenas os livros sobre Proust, Kafka e Sacher-
Masoch eo s estudos de Crítica e clínica. Também há profusão de
referências a
escritores por toda a parte nos seus textos de filosofia pura. O que
decorre do exercício deleuziano da filosofia como prática não de
reflexão mas de criação (de conceitos) em interferência activa com
outros domínios criativos, como co-criação. É como filósofo que
Deleuze cruza a literatura,mas sempre para surpreender nesta, ou nas
obras dos grandes escritores,aquilo a que chamaremos o seu paradoxo
constituinte. Ou seja: uma vocação não "literária", uma finalidade
extralinguística, no coração da linguagem literária. O grande
escritor, diz Deleuze, nunca escreve para se tornar escritor mas
outra coisa que passa pela escrita mas a ultrapassa e que ao mesmo
tempo faz da escrita mais do que escrita, "quero ser poeta, e
trabalho para me tornar vidente" (Rimbaud). Um tal paradoxo,
presente em raras obras que se escrevem com intenção literária,
define segundo ele o mais alto poder da literatura. Define a sua
criatividade específica, o seu "efeito" não obtenível pelos recursos
quer da filosofia quer das outras artes,mas também o modo pelo qual
a literatura encontra numa comum função criadora toda a arte e mesmo
a filosofia."Escrever não tem o seu fim em si mesmo, precisamente
porque a vida não é qualquer coisa de pessoal. Ou antes, a
finalidade de escrever é levar a vida ao estado de um poder não
pessoal".1 A escrita, a literatura,não é pois para Deleuze simples
ficção, produção de entidades fictícias,personagens e situações.
Tudo isso são os meios, mas não o fim ou o superior objectivo de
escrever. Não há grande literatura que seja mera questão de
imaginação, mera criação de imaginário, de "imagens" da vida.Como as
restantes artes, ela é vida, mas não no sentido de dar "uma forma(de
expressão) a uma matéria vivida",2 de recriar a vida real das pessoas
(ou do romancista) como vida imaginária. É-o pelo contrário, releva
Deleuze, no sentido de criar vida, de inventar linhas de vida
possíveis, de abrir à vida novas possibilidades. A literatura, no
material da linguagem e com o seu processo característico de que já
falaremos, fixa como as outras artes "passagens de vida", nos termos
de Deleuze tirados de Whitehead, e faz delas "monumentos" estéticos.
Mas essas passagens ou "devires" não são expressões do vivido, não
são as percepções, as recordações e as opiniões privadas do artista
transfiguradas pela imaginação e moldadas por um "belo estilo". São
antes "visões" ou "sensações" de uma vida já não pessoal, poderes de
uma vida impessoal ou de uma possibilidade existencial distinta dos
estados vividos, de cada vez a experiência de uma outridade,de um
devir-outro como despersonalização do sujeito. A literatura que
conta, afirma Deleuze, é sempre o poder de um devir-outro ou de um
devir outra coisa, daquilo a que ele chama e veremos à frente porquê
um "devir
não humano dos homens", sempre, em suma, a criação perceptual ou
afectiva de vida para lá do vivido e até do vivível.O romancista
medíocre, dizia Albert Thibaudet, escreve com a linha única da sua
vida real, ao passo que o grande romancista escreve com
as "direcções infinitas da sua vida possível". O criador literário,
acrescentava ele, é aquele que em vez de fazer reviver o real faz
viver o possível. É uma fórmula exacta, que Deleuze sem dúvida
subscreveria, mesmo e sobretudo essa idéia da criação literária (e
da criação artística em geral) como abertura ao ilimitado ou ao
infinito da vida possível, liberta da finitude da vida pessoal. A
arte, diz ele, consiste sempre em "passar pelo finito parare
encontrar, restituir o infinito".3Por seu lado Kundera, melhor
teórico da literatura do que romancista, afirma que as personagens
dos seus romances são as suas próprias possibilidades não
realizadas: cada uma delas transpôs uma fronteira que o autor
pessoalmente nunca atravessou, "a fronteira para lá da qual acaba o
meu eu",4 e a função do romance não é outra segundo ele, explorar a
vida humana, explorar dimensões possíveis da existência,fora do eu.
Não há arte literária, mostra Deleuze, sem essa travessia, sem ser
essa travessia, essa passagem do horizonte vivido, essa entrada numa
vida outra. Viagem arquetípica de Melville, o sentido da viagem de
toda a literatura anglo-americana destacado por Deleuze, mas também
por exemplo as viagens pelas sensações em Fernando Pessoa, em todo o
Pessoa, em todos os heterónimos, os seus devires-outro (mas não se
trata apenas de se sentir "outros", outras personalidades, porque é
cada outro que é uma série singular de sensações não pessoais e até
não humanas:"sentir tudo de todas as maneiras"). O objectivo da
literatura é pois para Deleuze, e como ele diz, "partir, evadir-se,
traçar uma linha" de fuga, sem que isso signifique fugir da vida
mas, ao invés, fazer a vida fugir, escapar às suas limitações
impostas quer pelo eu quer pelo estado presente do mundo.5 Com
efeito, para Deleuze, é ao mesmo tempo que a linha de fuga é uma
linha de vida e que como veremos a enunciação literária é sempre já
uma enunciação colectiva.Sem dúvida, o escritor "inspira-se" no
vivido, parte do seu eu, das suas observações e emoções, dos seus
estados perceptivos e afectivos. Mas para ultrapassá-los, para
aceder a um outro tipo de percepções e de afecções que excedem todas
as vivências, para extrair do vivido inéditas "sensações" e dar-lhes
uma vida própria, fazê-las viver a sua própria vida. Para atingir,
em suma, "perceptos" e afectos como seres auto-suficientes, como
entidades autónomas, fixadas na obra, que já nada devem ao sujeito
que assentiu ou experienciou.6 A vida como "matéria" do romance, mas,
precisamente, a vida como jamais foi vivida, finalidade de toda a
arte. Se um grande escritor conta a sua vida, se faz da sua vida a
substância da obra,é sempre no sentido de uma "autobiografia das
possibilidades" como diz algures Bachelard, sempre como extensão da
vida real numa vida possível,num mundo possível (o universo
incomparável do artista) composto pelas suas sensações exclusivas. A
arte como criação de "universos alternativos"(Proust) e o possível
como "categoria estética" (Deleuze).7 Nada a ver como "romance"
interessante que muita gente crê trazer em si ou de que se julga a
personagem e que leva nos tempos que correm qualquer jornalista ou
qualquer apresentador de telejornais, qualquer vedeta mediática, a
descobrir em si um escritor.A essência da literatura não é
literária. A essência da literatura, afirma Deleuze, é pintura e é
música. Mas uma pintura e uma música especiais, só efectuáveis pela
literatura, só atingíveis pelos seus meios (material e processo,
linguagem e operação sobre a língua em que se escreve). "Uma música
de palavras, uma pintura com palavras, um silêncio nas palavras".8
Trata-se de uma pintura e de uma música espirituais, "abstractas",
através das quais a literatura produz e suscita uma espécie de visão
ou de escuta não sensíveis, talha uns olhos e uns ouvidos para o
espírito. Romancista ou poeta, o criador literário não é para
Deleuze alguém que observa, que imagina ou que recorda: é um
visionário, é um "vidente"9 como dizia de si Rimbaud, alguém
com "olhos que transbordam de visões" (Daniel Faria), e também um
escutante, um ouvinte de sons e de silêncios para os quais ele foi o
primeiro a ter tímpanos. Com efeito o objecto da literatura, o seu
poder mais elevado, consiste segundo o filósofo em visões e audições
só acessíveis através da linguagem mas que todavia já não fazem
parte dela,já não fazem parte de nenhuma língua. Tais visões e
audições não se deixam propriamente dizer: elas são como um efeito
alucinatório da linguagem para lá do dizível, acontecem apenas no
limite da linguagem, e como o seu Além ou Exterior. "Estas visões
não são fantasmas, mas verdadeiras Idéias que o escritor vê e ouve
nos interstícios da linguagem, nos desvios da linguagem. Não são
interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele, como
uma eternidade que apenas pode ser revelada no devir,uma paisagem
que apenas aparece no movimento".10 Elas são os perceptos e os
afectos literários, a vida não subjectiva criada pela literatura.
Tudo é visão, questão de visão, na literatura, mas de uma visão que
se mantém por si mesma, que se conserva por si, como uma sensação
auto-subsistente.Uma visão que já não é a de um eu, que já não é
minha (percepto), antes
sou eu que já só sou ou me torno ela, que passo para ela quando ela
passapor mim (afecto).A tarefa da literatura aparece assim conjugada
com a de toda a arte.Ela cria, nos termos de Deleuze, perceptos como
paisagens não humanas da natureza e afectos como devires não humanos
do homem.11 Todo um paisagismo literário, mas específico, paisagens
visuais e sonoras só possíveis com os recursos próprios da
literatura. Como por exemplo os perceptos oceânicos de Melville,
visões espirituais puras, nem subjectivas nem objectivas,
transmutação perceptiva do oceano exterior por projecção nele
do "oceano íntimo" do escritor: é neste último que Ahab persegue
Moby Dick. Ou então as visões e as audições dos desertos da Arábia
em T.E. Lawrence, irredutíveis às percepções que deles têm os
próprios árabes,paisagens absolutas, transfigurações do real
pelo "deserto íntimo" do autor.12 Ou em Proust a fabulação do
vivido, da vida vivida, mas para extrair dela um invivido e
invivível, seres de sensação auto-consistentesque já só existem
num "tempo puro" tornado sensível: "Combray tal como nunca foi
vivido, não o é nem nunca o será."13 E que interesse teria escrever
sobre o amor, escrever o amor, romance ou poema, se não fosse para
atingir o Amor como estado já não humano, quer dizer, tal como
jamais foi, não é nem será vivido: o Amor que já não é o de uma
experiência pessoal, que já não é o de ninguém, Afecto puro. Por
exemplo Emily Brontë, Monte dos vendavais. É sempre esse
precisamente, segundo Deleuze, o traço criativo da grande
literatura: atingir e fixar em afectos e perceptos estéticos o que
há de animal mas também de vegetal e até de mineral em nós. Penetrar
nessas zonas de contiguidade ou de indiferenciação com outros seres
e outras coisas onde a vida, as potências de uma vida imanente não
pessoal,se liberta das suas constrições subjectivas, da forma
humana.14 Designadamente a poesia está cheia de percepções
vegetalizadas, de percepções de flor ou de árvore, de devires-flor e
de devires-árvore nos termos de Deleuze: não vejo uma árvore, sou
uma árvore que vê, ou que escuta, acedi a uma visão vegetal,
inumana, do mundo, ao mesmo tempo que a árvore se anima, acede a uma
alma, "devém" animal. E com efeito,como Deleuze diz, não nos
tornamos ou "devimos" outra coisa sem que essa coisa, pelo seu lado,
se torne, não nós, mas outra ainda, diferente. É que os devires, ou
essas zonas de indistinção ou de indiscernibilidade só atingíveis
pela arte, não são nem imitações nem identificações imaginárias.São
antes zonas de máxima proximidade na sensação, de coincidência ou de
indeterminação num plano de imanência da vida, de continuum
intensivo. "Como se coisas, animais e pessoas […] tivessem atingido
em
cada caso esse ponto porém no infinito que precede imediatamente a
sua diferenciação natural."15 Tais visões, tais perceptos e afectos
literários, são os acontecimentos criados pela literatura. Ela cria-
os evidentemente com a linguagem, é esse o seu material exclusivo,
mas, como se disse, eles não acontecem na linguagem: são-lhe
exteriores, ocorrem num limite exterior da linguagem.Mas esse
exterior, sublinha Deleuze, não é exterior à linguagem, ele é o
exterior da linguagem. Não existe fora dela, antes é o seu fora, a
sua ponta extrema, laminar.16 Mais exactamente, essas criações-
acontecimentos da literatura são esse exterior, são a transformação
da linguagem, quando confrontada com os seus limites, numa
outra "matéria" não lingual, num silêncio das próprias palavras
preenchido por visões e audições. Como se,levada a língua em que se
escreve ao limite das suas possibilidades, ela entrasse numa espécie
de transe ou de delírio e as palavras desatassem já não a dizer mas
a pintar e a cantar. Mas para isso é preciso um método, um conjunto
de procedimentos característicos da criação literária, que varia de
um autor para outro, ou que cada autor tem que reinventar por si.
Com efeito, para "exteriorizar" a linguagem, o escritor necessita de
fender as palavras, de ferir a sintaxe da sua língua, de torcê-la ou
distorcê-la, de violentar o dizível como condição para atingir o
exterior assintáctico da linguagem onde já só é questão de ver e de
ouvir. Necessita, na fórmula deDeleuze, de fazer gaguejar (Céline,
Beckett), ou gritar (por exemplo Pessoa, Ode marítima), ou uivar
(Ginsberg), ou murmurar, etc., a própria língua. Não há criação
literária, afirma o filósofo, sem essa operação, sem essa destruição
da sintaxe da língua-mãe, mas trata-se de uma destruição criadora,
da fabricação ao mesmo tempo de uma nova língua na língua que
arrasta toda a língua para o seu limite ou exterior.Destruição
sintáctica, criação de sintaxe (nova língua), limite assintáctico.
Tal é na teoria deleuziana a operação poética (poiética) de toda a
literatura, ou o triplo aspecto dessa operação. É que para Deleuze o
material do escritor não são tanto as palavras mas a sintaxe, a
organização da língua em que se escreve. Ora é essa organização,
enquanto sistema em equilíbrio relativo do que a língua permite
dizer, que o escritor tem que desarticular necessariamente,
que "desrespeitar" (Proust), para forçar a língua a dizer o
indizível, a suspender-se e a revelar "sob" as palavras paisagens
visuais e sonoras nunca antes vistas nem ouvidas. A criação
literária é pois sempre o efeito de uma "tensão" ou desequilibração
gramatical como devir outra da língua, a invenção de uma nova
sintaxe ou(ainda Proust) de uma espécie de língua "estrangeira" na
língua do escritor.
Ou seja, ela é sempre a recriação da língua, através de novas
potências sintácticas, como língua "visionária", como língua em fuga
para um limite agramatical, para um seu impossível tornado possível
assim.Essa operação poética é o procedimento sempre renovado, sempre
original, de cada autor. Ela define o seu estilo. Porque o estilo,
aquilo a que se chama o estilo de um escritor, não é nunca mera
questão de retórica literária, de "escrever bem". O estilo é pelo
contrário a sintaxe do escritor,mas a sintaxe
desviante, "incorrecta", que ele soube criar, escavar na sintaxe
normativa da sua língua e como condição de vidência, ou de
fixaçãodos seus estados de vidência como Idéias estéticas
(sensíveis) autónomas,impessoais. Uma vez mais nos termos de Proust,
o estilo não é questão de técnica mas de visão. Ele é a língua
singular de cada autor, o seu modo único de confrontar a linguagem
com o seu avesso ou limite, com a sua face exterior, ou seja com um
silêncio que se dá a escutar, ou que dá a ver.Mas essa língua na
língua, essa língua estrangeira interior, nunca é, diz Deleuze,
assunto privado do romancista ou do poeta. Ela é já, na expressão do
filósofo, um "agenciamento colectivo de enunciação". O criador
literário inventa na língua em que escreve uma língua
bastarda, "menor",inventa uma minoração da língua mas que é já
também a invenção de uma minoria, de um povo em falta. Ele
escreve "em intenção" desse povo que falta, vindouro, dessa raça
espiritual como uma outra possibilidade de vida mais afirmativa que
por enquanto só existe nas criações antecipadoras da literatura e da
arte. Não uma raça chamada a dominar mas, ao invés, um povo liberto
de toda a vontade de domínio, eternamente "menor", imensa minoria de
todas as minorias, devir minoritário universal. Não há escritor,não
há artista, segundo Deleuze, que não pudesse fazer suas as palavras
do pintor Klee: "procuramos um povo", "falta-nos o suporte de um
povo".17 Toda a criação literária, toda a arte, é neste sentido
objectivamente uma aposta na vida, um acto de fé nos homens (e não
há fé mais difícil), deconfiança no futuro, numa comunidade por vir.
De cada escritor ou artista pode-se dizer o que diz de cada poeta o
poeta Daniel Faria: "Ele vê, mas não é para agora / Ele contempla,
mas não de perto / Planta cedros para os anos futuros / Carrega
cântaros para a sede que vem."18 Deleuze cita com frequência o
trabalho dos poetas, mas não escreveu nenhum texto sobre um poeta ou
a poesia. Parece-nos no entanto possível extrair da sua teoria da
criação literária uma concepção "deleuziana" da poesia e até mesmo
critérios para a avaliação do poético. É o que tentaremos agora, em
termos muito sumários, fazer. A essência da poesia é também ela
música e pintura, tudo nela é também questão de perceptos e
de afectos, de visões impessoais e de devires inumanos. Devir
marítimo de Sophia, "metade da minha alma é feita de maresia",
Sophia-mar. Mas segundo um processo particular, diverso do do
romance. Em primeiro lugar,a poesia instala-se imediatamente num
limite agramatical da linguagem,num plano-limite do dizer em que as
palavras já não obedecem, já não têm que obedecer, a nenhuma
coordenação gramatical, se soltam de toda a norma sintáctica. Mas ao
mesmo tempo, assim destacadas de qualquer conexão discursiva ou
finalidade comunicativa, elas adquirem uma absoluta mobilidade, um
poder de jogar entre si acordes semânticos livres e intensidades
rítmicas (melódicas e harmónicas, consonâncias e dissonâncias)
ilimitadas, de se combinar em combinações "desregradas" de maneira a
produzir efeitos visuais e musicais inesperados. Esses livres jogos
de palavras desconectadas, cujas regras combinatórias cada autor tem
que criar para si como uma nova língua poética, são a forma de dizer
(ou antes, de fazer ver ou ouvir, de fazer sentir) sensações extra
linguísticas que não podem ser ditas de nenhum outro modo. É por
isso que na grande poesia os jogos de palavras, e os efeitos
perceptuais e afectivos que produzem, nunca são arbitrários, nunca
retóricos. E é por isso ainda que a linguagem poética é tudo menos
metafórica, que não há metáforas na poesia, ou que só as há na
poesia medíocre. Na verdade a invenção poética,ou a poesia como
criação de uma língua, não consiste em dizer por belas imagens o que
se poderia enunciar de outra forma ou em termos apoéticos.A poesia é
de cada vez a criação de uma língua de imagens, de uma língua
imagética pura, de uma dizibilidade configuradora de inéditas
visibilidades e sonoridades, língua-limite de visões e de
audições "não humanas" no sentido de Deleuze. Mas essa língua é
sempre em cada caso o único modo rigoroso de "dizer" essas
sensações, essas vidências e devires não pessoais,o modo não
arbitrário de dizer o indizível. O autêntico poeta, era Rilke que o
afirmava, odeia a imprecisão. Ora, se se tiver em conta estes
critérios,raros autores que publicam poemas podem considerar-se
poetas.REFERÊNCIAS FARIA, Daniel. Poesia. Famalicão: Quasi, V.N.,
2003. p. 203.DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. Paris:
Flammarion, 1977. p. 61.DELEUZE, Gilles. Critique et clinique.
Paris: Minuit, 1993. p. 11.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu'est-
ce que la philosophie? Paris: Minuit,1991. p. 186.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. p. 47.KUNDERA, Milan. A
insustentável leveza do ser. (tr. port.). Lisboa: Publ. DomQuixote,
1983. p. 251.KLEE, Paul. Escritos sobre arte. (tr. port.) Lisboa:
Cotovia. p. 37.
1 DELEUZE-PARNET, Dialogues, Paris: Flammarion, 1977, p. 61.
2DELEUZE, Critique et clinique, Paris: Minuit, 1993, p. 11 (cit.
doravante como CC). 3DELEUZE-GUATTARI, Qu'est-ce que la philosophie?
Minuit, Paris, 1991, p. 186(cit. doravante como QPh). 4KUNDERA, A
insustentável leveza do ser, 1983, tr. port. Publ. Dom Quixote,
Lisboa, p. 251. 5 DELEUZE-PARNET, Dialogues, p. 47. 6 QPh, p. 158.
7Ibid., p. 168. 8CC, p. 141.9QPh, p. 161, CC por ex. p. 16 e passim.
Cf. p. 105: "o romancista tem o olho do profeta, não o olhar do
psicólogo". 10CC, p. 16. 11QPh, p. 160. 12Ambos os exemplos: CC, p.
146. 13QPh, p. 158. 14Ibid., p. 163-165. 15Ibid., p. 164. 16 Sobre
isto e tudo o que se segue, cf. CC, passim e sobretudo cap. 1, p. 11-
17. 17 KLEE, Escritos sobre arte, tr. port. Lisboa: Cotovia, p. 37.
18 FARIA, Poesia, Famalicão: Quasi, V.N., 2003, p. 203. (Pertence
também a este poema verso citado mais acima no texto).

Editorial da Revista Rizoma.net

Rizoma.net
http://www.rizoma.net/hp08.htm
Revista eletrônica. Artigos sobre sexualidade, cinema, quadrinhos,
artes, literatura e anarquia.
Editorial da Revista
Amigos Leitores,

Agora está acionada a máquina de conceitos do Rizoma. Demos a
partida com o formato demo no primeiro semestre deste ano, mas só
agora, depois de calibradas e recauchutadas no programa do site, que
estamos começando a acelerar.

Cheios de combustível e energia incendiária, voltamos à ativa agora,
com toda a disposição para avançar na direção do futuro.

É sua primeira vez no site? Estranhou o formato? Não se preocupe, o
Rizoma é mesmo diferente, diferente até pra quem já conhecia as
versões anteriores. Passamos um longo período de mutação e gestação
até chegar nesta versão, que, como tudo neste site, está em
permanente transformação. Essa é nossa visão de "work in progress".

Mas vamos esclarecer um pouco as coisas. Por trás de tantos
nomes "estranhos" que formam as seções/rizomas do site, está nossa
assumida intenção de fazer uma re-engenharia conceitual.

Mas de que se trata uma "re-engenharia conceitual" ? Trata-se
sobretudo de reformular conceitos, dar nova luz a palavras que de
tão usadas acabam por perder muito de seu sentido original.
Dizer "Esquizofonia" em vez de "Música" não é uma simples intenção
poética. A poesia não está de maneira alguma excluída, mas o
objetivo aqui é muito mais engendrar novos ângulos sobre as coisas
tratadas do que se reduzir a uma definição meramente didática. Daí
igualmente a variedade caleidoscópica dos textos tratando de um
mesmo assunto nas seções/rizomas. Não se reduzir a uma só visão,
virar os ângulos de observação, descobrir novas percepções. Fazer
pensar.

Novas percepções para um novo tempo? Talvez. Talvez mais ainda novas
visões sobre coisas antigas, o que seja. Não vamos esconder aqui um
certo anseio, meio utópico até, de mudar as coisas, as regras do
jogo. Impossível? Vai saber... Como diziam os situacionistas: "As
futuras revoluções deverão inventar elas mesmas suas próprias
linguagens".

Pois é, e já que falamos de jogo, é assim que propomos que você
navegue pelo site. Veja as coisas como uma brincadeira, pequenos
pontos para você interligar à medida que lê os textos, pois as
conexões estão aí para serem feitas. Nós jogamos os dados e pontos
nodais, mas é você quem põe a máquina conceitual para funcionar e
interligar tudo. Vá em frente! Dê a partida no seu cérebro, pise no
acelerador do mouse e boa diversão!

Ricardo Rosas e Marcus Salgado, editores do Rizoma.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Uma geografia da diferença

Uma geografia da diferença
por Roberto Machado

Na base do pensamento de Gilles Deleuze está a idéia de que a Filosofia é produção ou, mais propriamente, criação de pensamento, tal como são as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não. Mas se o pensamento não é privilégio da Filosofia, isto é, se filósofos, cientistas e artistas são, antes de tudo, pensadores, isso não quer dizer que Deleuze assimile os diferentes domínios de pensamento. A distinção das formas de criação que caracterizam os vários saberes foi formulada de modo sistemático em O que é a filosofia?, quando ele assinalou o fundamental da diferença constitutiva do saber filosófico: enquanto a ciência cria funções e a arte cria agregados sensíveis, a Filosofia cria conceitos.

Partindo da posição de que, para Deleuze, fazer filosofia é criar conceitos, podemos perguntar: como são criados os conceitos de sua filosofia? Procurando responder a essa questão cheguei à seguinte conclusão: sua filosofia é um sistema de relações entre conceitos oriundos da própria Filosofia, isto é, de filósofos por ele privilegiados em suas leituras, e conceitos suscitados pela relação entre conceitos filosóficos e elementos não-conceituais - funções e sensações - provenientes de domínios exteriores à Filosofia.

A característica mais elementar da relação entre a filosofia de Deleuze e os pensamentos filosóficos, científicos e artísticos é o fato de ela se propor mais como uma geografia do que como uma história, isto é, o fato de ela considerar o pensamento não por intermédio de uma dimensão histórica linear e progressiva, mas privilegiando a constituição de espaços, de tipos não apenas heterogêneos, mas sobretudo antagônicos.

Assim, a relação entre criação de conceitos e tradição filosófica, como a realiza Deleuze, consiste em erigir o modelo, ou mais propriamente, o processo de pensamento de determinados filósofos como condição de seu modo singular de filosofar. Isto significa construir um "espaço ideal" em que seja possível criar, a partir de filósofos passíveis de entrar em relação, em comunicação, em ressonância em um mesmo espaço, conceitos que expressem ou tornem possível um novo pensamento. Assim, ao privilegiar determinados filósofos para constituir sua própria filosofia, o objetivo de Deleuze é sempre contrapor um espaço do pensamento sem imagem, "intempestivo", que é pluralista, heterodoxo, ontológico, ético, trágico, ao espaço da imagem do pensamento que é dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional... O espaço do pensamento sem imagem é o espaço da diferença; o da imagem do pensamento é o da representação.

Neste sentido, Deleuze é um curioso historiador da Filosofia que ousou pensar filosoficamente em seu próprio nome ou que encontrou no próprio discurso filosófico conceitos como síntese disjuntiva, diferenciador da diferença, gênese, intensidade... A partir dos quais foi possível estruturar sua filosofia como um pensamento diferencial.

A importância dessa temática explica porque, por um lado, alguns filósofos estão em geral excluídos do espaço em que ele situa seu pensamento. Este é o caso, sobretudo, de Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, os grandes representantes da imagem da Filosofia como filosofia da representação, isto é, como aquela que reduz a diferença à identidade. Isso se nota, por exemplo, quando Deleuze analisa a origem da representação em Platão, defendendo que a dualidade entre mundo sensível e mundo inteligível existe em função da distinção entre a boa cópia, a cópia bem- fundada, o "ícone", que é uma imagem dotada de semelhança, e a má cópia, a cópia que implica uma perversão, o "simulacro-fantasma", que é uma imagem sem semelhança. Se Platão é um filósofo da representação é porque sua postura metafísica privilegia a cópia-ícone como imagem fundada pela semelhança interna com a identidade superior da idéia.

Por outro lado, a temática expressa por conceitos como síntese disjuntiva, diferenciador da diferença, gênese, intensidade... Explica a aliança de Deleuze com filósofos que, em maior ou menor grau, estabelecem a relação entre termos, ou entre séries, como a de uma diferença que reúne imediatamente o que distingue. Daí, para dar o exemplo de um de seus primeiros livros, o privilégio que ele concede a Bergson e ao método que decompõe um misto impuro, empírico, espaciotemporal, em dois tipos de multiplicidade qualitativamente diferentes - a duração e o espaço considerados como o virtual e o atual -, mas também os relaciona geneticamente, mostrando que esse dualismo é proveniente da diferenciação ou da atualização dessa virtualidade, segundo linhas divergentes que diferem por natureza. Daí também, para dar o exemplo de um de seus últimos livros, porque, partindo da definição do barroco como dobra infinita, incomensurável, Deleuze valoriza dois princípios básicos da filosofia de Leibniz: a distinção de níveis ou séries, as mônadas consideradas como dobras da alma e os corpos considerados como dobras materiais extrínsecas; mas também a existência de uma relação interna complexa (as dobras do mundo), elemento genético diferenciador da diferença, que articula os dois níveis da alma e do corpo.

Poderia dar ainda os exemplos de Hume, Nietzsche, Espinosa, Foucault etc. Prefiro, no entanto, salientar que, para compreender o pensamento de Deleuze em toda sua amplitude e relevância não se pode ignorar seus importantes estudos sobre domínios exteriores à Filosofia: sobretudo as artes e a literatura. Na verdade, a relação entre saberes sempre foi muito intensa no procedimento filosófico de Deleuze e não é, de modo algum, lateral ou circunstancial, pois o objetivo principal de sua filosofia é definir o que seja pensar, e o pensamento não é exclusividade da Filosofia.

Assim, vendo na Filosofia o domínio do conceito, Deleuze irá elaborar sua filosofia não só incorporando conceitos provenientes de outras filosofias, que situa no espaço da diferença, mas também criando conceitos a partir daquilo que foi pensado, com seus próprios elementos - funções científicas, sensações artísticas - em outros domínios. Deste modo, ao pensar a literatura e as artes, Deleuze está realizando seu projeto filosófico de constituição de uma filosofia da diferença, sem que haja uma diferença essencial entre esses estudos e os estudos dos textos tecnicamente filosóficos.

É assim, por exemplo, que ele interpreta Em busca do tempo perdido, de Proust, como uma busca inconsciente e involuntária da verdade, mostrando que ela não só constitui um sistema de pensamento, mas também se contrapõe ao pensamento da identidade e da representação. O que faz do livro de Proust, e, sobretudo, da correlação que ele estabelece entre o signo e o sentido, um instrumento para a formulação da filosofia da diferença. Pois a importância que Deleuze dá aos signos - e depois dará à intensidade - deve-se a que são eles que forçam o pensamento a pensar em seu exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental, fazendo-o buscar o sentido, ou a essência considerada como diferença última e absoluta.

É assim também que ele distingue três elementos básicos na pintura de Bacon, três elementos pictóricos simultâneos, sempre presentes em seus quadros: o plano monocromático, o contorno e a imagem. E o que se nota de mais importante nesse livro sobre a lógica da sensação, do ponto de vista do exercício do pensamento de um pintor como Bacon, é o seguinte: se o grande plano monocromático é a estrutura material espacializante e a imagem é a figura, a forma, por sua vez o contorno redondo é o limite entre os dois outros elementos em tensão, limite que assegura a comunicação entre eles de tal modo que a figura, com suas deformações, como corpo intenso, intensivo, torna visíveis forças invisíveis que povoam o mundo e das quais o plano dá testemunho.

Mas é assim também que ele retoma esse esquema interpretativo, generalizando-o, ao explicar, em O que é a filosofia?, o pensamento artístico pela relação entre "compostos de sensação", ou compostos de perceptos e afetos, em coexistência e complementariedade com um "plano de consistência", relação que se deve a "figuras estéticas" que são a condição sob a qual as artes produzem sensações - perceptos e afetos - sobre o plano de composição.

Acredito assim que é possível detectar nas leituras realizadas por Deleuze um procedimento filosófico que privilegia pensadores e os considera aliados a partir da relação diferencial que eles estabelecem entre termos ou séries. Mas isso não significa que essas leituras reduzam filósofos, cientistas e artistas ao mesmo, no sentido de encontrar uma identidade que os assimile. Pois não só a diferença entre esses pensadores persiste, cada um conservando sua singularidade, sua individualidade própria, como também Deleuze não se identifica com nenhum deles totalmente, nem mesmo com Nietzsche, sua inspiração fundamental, aquele que atingiu o ápice de uma filosofia da diferença. Sua leitura de Nietzsche é a criação de mais uma máscara e, neste sentido, não só a leitura de outros filósofos ou não-filósofos incide sobre o seu Nietzsche, como também a dos comentadores, que, de um modo geral, têm uma importância muito grande nas interpretações deleuzianas. Como é o caso de Klossowski e Blanchot no que diz respeito a Nietzsche.

Por outro lado, o seu projeto de explicitar relações diferenciais em todos os pensadores que privilegiou pode ser considerado o invariante nas variações dos autores e dos temas por ele estudados, isto é, o diferencial de sua própria filosofia. Neste sentido, a filosofia de Deleuze me parece uma suma de pensamentos que se relacionam por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença. Ela incorpora seus conceitos, veste sua linguagem, mas, ao proceder à repetição como uma modificação e uma inflexão no sentido de sua própria maneira de pôr a questão do exercício diferencial do pensamento, também está criando a diferença.

Roberto Machado é doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor, entre outros, de Zaratustra, tragédia nietzschiana (Zahar, 1997), Nietzsche e a verdade (Graal, 1999), Foucault, a filosofia e a literatura (Zahar, 2000), e do recente O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Zahar, 2006).
O presente texto foi publicado na revista Cult n° 108, integrando o dossiê
"O teórico da multiplicidade: Gilles Deleuze".

Vale muito a pena

http://www.utp.br/interin/artigos/art_livre_05_duprat_prysthon.pdf

Entre o perigo e a chance

Um texto da professora Leyla Perrone-Moisés sobre Derrida:
Ver em http://revistacult.uol.com.br/website/

Entre o perigo e a chance

Por Leyla Perrone-Moisés

A desconstrução derridiana não pode ser explicada em poucas palavras. Apenas como introdução, lembremos que Derrida qualificou a cultura ocidental como "logocêntrica", isto é, baseada num racionalismo que pretende ser universal. O filósofo a "desconstrói" procedendo a uma leitura crítica dos textos de nossa cultura, em busca dos pressupostos metafísicos em que esta se assenta, revelando suas ambigüidades, contradições e não-ditos. A desconstrução rejeita o pensamento dualista (isto ou aquilo, isto contra aquilo) assim como o pensamento dialético (tese, antítese, síntese), deixando sempre aberta uma outra via que é a différance (diferença e adiamento). Esse pensamento sempre em processo, que é a própria desconstrução, leva à formulação de paradoxos que irritam e contrariam aqueles que gostam de respostas claras e categóricas, consideradas racionais, confiáveis e operáveis.

Entretanto, a força e a fertilidade da desconstrução residem justamente nesse enfrentamento constante das aporias, que desafiam o pensamento e deixam abertas as possibilidades imprevisíveis e incalculáveis do "por-vir". O vigor do pensamento desconstrucionista reside em seu caráter arriscado, e na coragem com que Derrida assume a responsabilidade do pensar sem garantias, avançando sempre em busca de "mais luzes".

A renúncia às garantias da filosofia logocêntrica tem, como contraponto, algumas palavras freqüentes no discurso de Derrida: "incondicionalidade" e "incondicional". Aparentemente, há uma contradição entre negar as verdades absolutas, apostar num porvir desconhecido, e uma ética da incondicionalidade, ligada surpreendentemente à defesa de causas "impossíveis". Mas esse paradoxo é a condição de um pensamento que é, ao mesmo tempo, livre e engajado.

A busca do impossível, do incondicional, é uma confiança no porvir. Trata-se de uma teleologia não teológica, mas que tem relações com a fé (Kierkegaard), e certo aspecto religioso (apontado, entre outros, por Habermas), talvez um resíduo de messianismo judaico. Mas, como não é um pensamento teológico, a desconstrução é "uma responsabilidade infinita, que não dá descanso a nenhum tipo de boa consciência" ( Spectres de Marx, 1993).

No exame de várias (senão todas) importantes questões tratadas por Jacques Derrida, aparece a expressão "um perigo e uma chance". Vejamos alguns dos temas diante dos quais Derrida assume uma posição que implica "um perigo e uma chance".

O perdão
O perdão é uma condição para a reconciliação (dos indivíduos, das coletividades, dos Estados) e para a continuação da História, isto é, da vida. Nesse sentido, o perdão é uma "chance". Mas o perdão pode ser (mal) compreendido como esquecimento do crime, como apagamento da culpa e, nesse sentido, é um "perigo". Como defender o perdão com relação ao holocausto, ao apartheid, aos crimes das ditaduras latino-americanas? Diante desse impasse, entre o perigo e a chance, Derrida lembra primeiramente "a heterogeneidade absoluta entre o movimento e a experiência do perdão, por um lado, e tudo o que muitas vezes a ele é associado, isto é, a prescrição, a absolvição, a anistia ou o esquecimento sob todas as suas formas" ( Sur parole. Instantanés philosophiques, 1999).

"O perdão é heterogêneo ao direito" ( idem). Devido a essa heterogeneidade entre o crime e seu "apagamento", o perdão "deve ser concedido àquilo que é imperdoável". Como? Responde ele: "Se perdoamos o que é perdoável, ou aquilo para que se pode encontrar uma desculpa, não é mais perdão; a dificuldade do perdão, o que o faz parecer impossível, é que ele deve ser dado àquilo que continua sendo imperdoável".

O perdão não é esquecimento: "Para que haja perdão, diz ele, é preciso que o irreparável seja lembrado ou permaneça presente, que a ferida permaneça aberta." O perdão deve ser, portanto, incondicional, porque as condições para que ele seja concedido não existem.

A hospitalidade
A hospitalidade, isto é, a aceitação do outro em nossa casa, em nosso país, representa um perigo: o hóspede pode ser um ladrão ou um terrorista. Por outro lado, a hospitalidade é um imperativo ético e a chance de uma relação pacífica entre os homens. Mais que isso: a acolhida do outro é a condição da ipseidade, já que não há sujeito sem o reconhecimento do outro. A hospitalidade deve ser incondicional. Essa afirmação de Derrida incomoda: "Deve-se dar ao outro", diz ele, "a permissão de fazer a revolução em nossa casa". "Como assim?", diz o bom senso. "A hospitalidade tem limites!" Não, responde Derrida. "Se há hospitalidade, só pode ser incondicional. Não há hospitalidade condicional: se coloco condições ao outro que vem, ao que chega, não posso mais falar de hospitalidade. Mas, se a hospitalidade não pode ser senão incondicional, é preciso dizer, ao mesmo tempo, que uma hospitalidade incondicional é impossível, é o próprio impossível" ( Spectres de Marx).

Como resolver, na prática, esse paradoxo? Trata-se de considerar o impossível como "talvez possível", de ter a hospitalidade absoluta como meta a ser buscada apesar de tudo e, nesse sentido, o "impossível" passa a ser condição do "possível". O impossível é a chance do possível, aquilo que mantém aberta a possibilidade. No caso das leis de imigração, trata-se de "negociar", de encontrar "a legislação menos pior". "Este é o acontecimento que é preciso inventar cada vez", diz ele em Sur parole.

A fraternidade
A fraternidade se liga, positiva ou negativamente, à hospitalidade. A fraternidade é um conceito suspeito, para Derrida, porque ela supõe a união dos "irmãos", dos parentes, dos próximos e, como tal, oferece o risco da xenofobia, do nacionalismo, do fechamento dos Estados, da guerra. Em Politiques de l'amitié (1994), ele explica por que esse conceito é suspeito: "A fraternidade se enraíza na família, na genealogia, na autoctonia." Ao mesmo tempo, a fraternidade é uma das respeitáveis divisas da República, a chance conquistada pela Revolução Francesa de uma relação mais digna entre os cidadãos. Assim como o conceito de "tolerância", o conceito de "fraternidade" é respeitável, mas insuficiente, porque marcado por uma tradição cristã que os associa à "caridade". Assim, a fraternidade precisa ser desconstruída e reinventada.

As leis
As legislações, que devem servir à justiça, mas não são a justiça, oferecem permanentemente o perigo do erro, da injustiça. Mas elas são a chance de se fazer justiça, na medida em que elas podem e devem ser constantemente repensadas e refeitas, deferidas e diferidas, perfectíveis. A justiça, esta é o indesconstrutível, o objetivo maior da desconstrução. Podemos dizer que a desconstrução, diferentemente da filosofia clássica, não é uma busca da verdade, mas da justiça ( Force de loi, 1994).

O segredo
O segredo é perigoso quando ele é guardado e preservado por organizações secretas e conspiratórias, que ameaçam a polis. O segredo contraria também o imperativo moral de nossa sociedade de dizer sempre a verdade, de trazer tudo à luz. Mas o direito ao segredo é também uma condição da democracia, e há muitas situações em que o segredo serve ao bem individual ou público. A questão do segredo é muito ligada a outra questão cara a Derrida, a da mentira, que também tem seus prós e contras, os quais devem ser repensados em cada circunstância.

As novas tecnologias
As novas tecnologias, da comunicação ou da pesquisa médica, implicam perigos éticos e práticos. A internet pode ser usada para veicular falsas informações, pois ela não é totalmente vigiada e controlável. Mas ela serve à democracia porque, nos países onde há censura, informações verdadeiras e úteis podem penetrar clandestinamente através dela. Da mesma forma, a manipulação do genoma humano pode ser usada para fins perigosos, como a eugenia, ou para efeitos ainda imprevisíveis. Mas não se pode deixar de dar uma chance às novas descobertas da ciência na busca de cura para várias doenças. Portanto, esta é também uma questão de dupla face, ou duplo gume.

Esses são apenas alguns exemplos do modo como opera a desconstrução diante das questões que nosso tempo tem de enfrentar. A desconstrução não destrói a questão, não a anula num "nem isso, nem aquilo". Ela põe em evidência a necessidade de refletir sobre elas, uma reflexão incessantemente recomeçada segundo as circunstâncias.

As reflexões de Derrida levam a freqüentes aporias, isto é, a um "conflito entre opiniões contrárias e igualmente concludentes, em resposta a uma mesma questão". E, muitas vezes, a um double bind, isto é, aquilo que acontece quando "relações básicas e importantes são cronicamente sujeitas a invalidação através de uma comunicação paradoxal" (teoria de Gregory Bateson). Esse caráter paradoxal do pensamento de Derrida foi apontado como "irresponsável", já que ele não responde categoricamente a nenhuma questão levantada. Mas o double bind não pede para ser resolvido dialeticamente e, assim, superado, mas para ser interminavelmente reexaminado.

Quem teve a sorte de conhecer Jacques Derrida, pôde ver em sua própria pessoa e seu modo de ser essa preocupação ética sem descanso. Havia nele, ao mesmo tempo que uma cordialidade, uma hospitalidade, uma inteligência poderosa, uma fragilidade, um medo, uma inquietação constante com a responsabilidade de suas posições. Roland Barthes viu muito bem essas características do filósofo quando disse dele: "Sua solidão vem daquilo que ele vai dizer."

Derrida foi o contrário de um apolítico: foi um corajoso e constante re-pensador da política. Não era um utópico, no sentido de um idealista apenas expectante; mas um ativista do pensamento, um analista agudo do presente e um antecipador do futuro. Alguns o acusaram de niilismo. Ele era, pelo contrário, fundamentalmente otimista. Entre o perigo e a chance, apostava na chance.

A desconstrução não é um sistema de pensamento em que possamos nos apoiar, ou um método que possamos aplicar. As propostas de Derrida são um convite à travessia do abismo na corda bamba, sem rede de segurança. Mas quem pode hoje, honestamente, garantir segurança na travessia dos tempos? É preciso coragem para sair do lugar, para escolher o que abandonar e o que conservar na viagem, porque sem abandono não há renovação, e sem memória não há História.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da USP, autora de vários livros, entre os quais Altas literaturas e Inútil poesia (Companhia das Letras)


Leia também no dossiê Jacques Derrida da edição da CULT setembro de 2007:
Derrida e a defesa da honra da razão , por Juvenal Savian Filho
A justiça e o perdão em Jacques Derrida , por Cláudia Perrone-Moisés
A força de Derrida para pensar o Direito e a possibilidade de justiça , por Vera Karam de Chueiri
Derrida e a linguagem , por Silvia Faustino
Desconstrução e incondicional responsabilidade , por Paulo Cesar Duque-Estrada
Derrida e a psicanálise, por Joel Birman
A diferença sem voz , por Vladimir Safatle
Derrida e a arquitetura, por Igor Guatelli
Cartão-postal: um trecho do livro de Derrida, inédito no Brasil

Importantíssimo!!

Ensina o professor Roberto Ramos que o sociólogo francês Michel Maffesoli, em seu livro No Fundo das Aparências,categoriza a pós-modernidade como a simbiose do arcaico com o desenvolvimento tecnológico,envolta pelo estilo barroco.Muitas análises contemporâneas que suprimem traços diacrônicos da pós-modernidade estão, como se vê, equivocadas.

Do blog do André de Leones

Notas sobre ‘O Dia Mastroianni’
Outubro 19th, 2007

Bem-vindos ao espaço: O Dia Mastroianni, romance de João Paulo Cuenca, lido nesta tarde quente de outubro, é excelente. O livro nos apresenta algo no mínimo inusitado: um narrador onisciente em primeira pessoa. O livro todo, aliás, é de uma estranheza sem igual: o clima, as peripécias dos personagens, o jogo metalinguístico que permeia a narrativa (observe como os personagens são descritos) e a ironia com que é encarado o próprio ato de escrever.

O Dia Mastroianni é um romance que brinda aos que foram e aos que voltaram, protagonizado dois sujeitos (Pedro Cassavas e Tomás Anselmo) que, em vez de trabalhar, preferem ser trabalhados e passam o dia (a vida?) flanando por aí, entre bebedeiras e mulheres (e mordomos seviciadores).

Interessante como a narrativa se apropria de toda sorte de lugares-comuns, muitos dos quais ligados ao ofício de escrever, para chegar ao que entendo como o inescapável cerne da questão: “Quando terminarmos de ler e contar a história desse personagem, também desapareceremos”.

O livro ainda está latejando na minha cabeça. Há achados como as já citadas descrições dos personagens (são, em todos os sentidos, inclusive graficamente, personagens de um livro, afinal), o ritmo tresloucado da coisa (dificílimo de se atingir sem soar raso ou apressado), o humor alienígena, as referências (”No nosso caminho, um aborígene berra as últimas notícias, a vender uma pilha de jornais na calçada. Ainda fosse uma americana sardenta e o Herald Tribune…”) e as ironias (”Sou de outros tempos: quando era algo maravilhoso ter escrito um livro”, diz o plausibilíssimo - a despeito do nome - escritor Esgar Mxyzptlk).

O estranhamento suscitado pela leitura não me pareceu gratuito. A estrutura do romance é muito bem resolvida, a meu ver. Ao final da leitura, gostei de me sentir como “o resto de qualquer coisa que desconheço”.

(Minha adolescência e parte da minha juventude, num certo sentido, foram repletas de dias Mastroianni. Muitos daqueles que estiveram lá não sobreviveram. E meu Dia Morto é uma espécie negríssima de dia Mastroianni, talvez. Não sei. Preciso pensar a respeito. Até porque Jean e Fabiana desaparecem antes que se termine de ler e contar sua história. São duas sombras.)

Cassavas e Anselmo e os outros ainda pulsam, estão vivos aqui, comigo. Que mais se pode querer de um livro?

“Quem quer saber de livros, afinal?”, pergunta o narrador. Eu quero. Mas isso não significa que eu também não vá desaparecer.

O Equilibrista do Arame Farpado

O desmonte das convenções romanescas em
O equilibrista do arame farpado,
de Flávio Moreira da Costa
Elisalene Alves


A ficção que se desenvolve na década de 90 é marcada por uma
estrutura caótica (desaparecimento do enredo, fragmentação da narrativa,
superposição de situações ocorridas em tempo e espaço diferentes, indefi-
nições das personagens, destruição arbitrária das relações normais entre
homem e realidade). Essa literatura não tem nome e não se situa nos câno-
nes literários, criando, assim, outras regras. Há, ainda, a presença de uma
diversidade de temáticas, em virtude de uma visão de um mundo sem fron-
teiras, ou seja, um mundo globalizado.

Enquadrado nessas características está O Equilibrista do Arame Farpado, de Flávio Moreira da Costa, publicado em 1996. Vencedora de dois prêmios em 1997 (Prêmio Jabuti e Prêmio Biblioteca Nacional), essa obra caracteriza-se pelo desmonte das convenções romanescas e também por sua narrativa não seguir uma seqüência lógica. A história inicia-se sendo contada por Kid Skizofrenik, relatando dois crimes bárbaros presenciados por ele. Estes dois casos mencionados não tem nenhuma ligação com o enredo que será desenvolvido posteriormente. É o próprio narrador quem nos fornece essa informação: “(...) vá se acostumando, provável leitor: conosco ninguém podemos e quase nada tem a ver com a história (...) ( OEAF, p.18)”[1]. Em seguida, o narrador expõe um outro relato: o encontro de “sete autores” discutindo o conteúdo de O Equilibrista do Arame Farpado, bem como seu título e o sumário.

Quando, finalmente, acreditamos que se inicia a história romanesca propriamente dita, acontece o inesperado: Brás Cubas, personagem criado por Machado de Assis, aparece na obra. A personagem “baixa” na história depois de os “autores/narradores/personagens” do livro se concentrarem em um rito sobrenatural, recorrendo às forças do além para que os ajudem a concluir o livro. Após esse episódio, o narrador tenta prosseguir a narrativa, no entanto, ela é interrompida mais uma vez. Isso se deve porque ele perde o fio da meada e busca a ajuda de um investigador particular.

Percebemos, através do relato acima, que a narrativa rompe com todos os padrões romanescos estabelecidos até então. Há grandes quebras na seqüência linear: começo, meio e fim. Verificamos com clareza a presença da fragmentação, ou seja, do corte no decorrer da narrativa. Observamos que o sentido da história não se encontra no todo e sim nas partes, pois não temos uma história única, temos várias histórias sobrepostas.

A falta de sentido é uma constante na obra; primeiro, porque o enredo traz uma história escrita por “sete autores” e os mesmos não conseguem iniciar a narrativa; segundo, pelo súbito aparecimento de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis; terceiro, porque os autores/narradores/personagens perdem o fio da meada, tendo que pedir ajuda a um investigador particular, Philip Marlowe, para dar continuidade à fabulação:

- Bem – disse o autor -, acontece que eu perdi o fio da meada.
- Pois então retome-o – disse Marlowe. – Não tenha pressa...
- Temo que o senhor não entendeu – disse o Autor, em tradução de tevê.
- Então comece pelo princípio – disse Marlowe.
- Sim, pelo princípio – disse o Autor, lembrando-se de que o princípio era a chave de tudo. – É exatamente esse o problema, Mr. Marlowe. Meu editor, e suponho que meus leitores também, espera um novo original de minha autoria, e no meio do caminho, ou no princípio, como o senhor disse, perdi e não consegui achar mais o fio da meada, entende? (OEAF, p.68).

Há, ainda, em O equilibrista do arame farpado, um traço que caracteriza a literatura contemporânea: a metaficção. Ela está presente em obras que refletem conscientemente sobre sua própria condição de ficção, acentuando a figura do autor e o ato de escrever. Em O equilibrista do arame farpado, o narrador faz interrupções constantes para refletir sobre a elaboração dessa obra: “(...) este é o livro que está sendo feito, ao ritmo dos passos bêbados do autor-narrador-personagem de cabeça de filósofo e alma de sambista, ao som do mar profundo cadenciando na praia e na vida tudo aquilo que sobra e tudo aquilo que falta: este é o livro do que nos falta” (OEAF, p.111).

Destacamos também o fato de o narrador insuflar a imaginação do leitor, deixando que o mesmo elabore o capítulo da maneira que lhe convier (sirvam de exemplo os capítulos “Fragmentos de uma Cena Familiar” e “Três pontinhos, ou o Menor Capítulo da Literatura Mundial”).

Outro aspecto a ser ressaltado é o fato de o leitor, algumas vezes, ser convidado a fazer parte da construção da narrativa, tornando-se, desta forma, co-autor do livro: “Se alguém tiver uma idéia de como poderia ser o enredo, favor escrever ou telefonar. Seremos eternamente gratos (OEAF, p.24)”. Esse recurso reforça a nítida dificuldade do narrador em prosseguir com a fabulação.

Atualmente, uma das discussões que está sempre em pauta é a crise de identidade do sujeito. Outrora, o homem tinha uma identidade bem definida e localizada no mundo social e cultural. Hoje, em conseqüência das profundas mudanças econômicas, sociais e culturais que acontecem em nossa sociedade, encontramos um sujeito em crise.

Inserido nesse contexto, encontra-se o personagem principal de O Equilibrista do Arame Farpado, de nome Francisco, mas também conhecido por Chiquinho, Seu-cara-de-todos-os-bichos e, por fim, Capitão Poeira[2]. Diferentemente do romance convencional, cujo personagem principal é caracterizado como herói, Chiquinho assume características de um anti-herói..

Conforme Bakhtin (1997, p.170), “A aspiração de glória organiza a vida do herói (...). Aspirar à glória é ter consciência de pertencer à história da humanidade cultural (grifo do autor)”. No caso de Capitão Poeira, não detectamos essa aspiração pela glória. As aventuras realizadas por ele e que conseqüentemente o levam à fama em Pedra Ramada, sua cidade natal, nem sempre são premeditadas, ao contrário, muitas acontecem por acaso. Aliás, o acaso exerce grande papel na vida de Capitão Poeira, pois é ele o responsável pelo envolvimento do nosso herói nas lutas contra a ditadura militar e pelo seu encontro com Geny (sua mãe) no final da narrativa. Capitão Poeira também é individualista. Faz o que deseja e o que gosta, sem preocupações sociais. Ele não dispõe de um objetivo na vida, por isso vive a angústia de um projeto pessoal. Esse tipo de sujeito, segundo Hall, é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. Hall (1998, p.9) ainda acrescenta:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós
próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é
chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito.

No começo da obra, a descrição feita de Capitão Poeira, ao nascer, já nos fornece um perfil de como será o garoto no futuro: “Haveriam de dizer que, ainda no colo da parteira, se parteira houvesse, assim que abriu os olhos o bebê pôs-se a passar a mão em seus – dela, parteira – fartos seios (OEAF, p.31)”. E mais adiante, quando o pai lhe proíbe de sair de casa por causa da aventura do rio Avanhandava. Como não tem o que fazer, aborrece a cozinheira, D. Benta: “Enquanto isso, implicava com D. Benta – ‘Sai, capeta! Benza Deus!’ – e era só descuidar e lá estava ele no quintal, assustando galinhas, patos e marrecos (OEAF p.45)”.

Outro ponto relevante na obra é o fato de ela não se adequar em nenhuma classificação convencional. O Equilibrista do Arame Farpado sofre a angústia de classificação, sendo perceptível nas reflexões do narrador:

(...) essa é a minha história, essa é a história de nós todos:
romance?
autobiografia?
memórias?
ensaios?
relatos?
relatório?
lenda?
fantasia?
depoimento?
Pois eu e os fantasmas de mim não nos damos bem com as classificações – mesmo assim existimos (OEAF, p.114).

Também destacamos nessa obra, a presença da carnavalização, ou seja, a transposição para a arte do espírito do carnaval. Sem dúvida a vertente satírica e burlesca de O Equilibrista do Arame Farpado pode ser compreendida como uma literatura do riso. Tomemos como exemplo o fato de a história ter sido escrita por “sete autores”: Kid Skizofrenik (narra a maior parte da narrativa), Antônio Carlos Patto (filho da Patta e da PUC), Bustrefedón Infante Gatica (ex-cantor de guarânias no interior de São Paulo, conhecido como Paraguaio, embora peruano), Cláudio C. (o humanista), Capitão Poeira (personagem principal do enredo), Flávio Vian (o intelectual anglo-saxofônico) e Wittgenstein de Oliveira (filósofo de Quixeramobim). “Em discussão crescente, retomamos os trabalhos preliminares – e eram sete autores à procura de um personagem! Sete Édipos, sete Sísifos, sete Narcisos, sete cavaleiros do Apocalipse? (OEAF, p.25)” [3]. Percebemos o tom de galhofa na descrição dos “autores”, trazendo cada nome uma característica que provoca riso. É feita inclusive uma alusão ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.

Outro momento da obra em que o leitor dificilmente controlará o riso diz respeito ao surgimento do espírito de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis. Ele aparece no capítulo intitulado “Prólogo à moda antiga”, parodiando o prólogo na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas:

(...) A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te
não agradar, pago-te com um piparote, e adeus (Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.16).

(...) Sim, pois o livro é tudo em si mesmo, caro e preclaro leitor – que ele bem lhe
agrade. Do contrário, encontrar-me-ei convosco à meia-noite em ponto de uma sexta-feira, em vossa própria morada ou numa encruzilhada qualquer da cidade (OEAF, p.60).

Para “anarquizar” mais ainda o fluxo da narrativa, os “autores-narradorores-personagens” perdem a sua lógica, a sua estrutura causal/temporal. Abrem então o capítulo “Em busca do fio da meada”. Os autores-narradores-personagens” tentam contratar um detetive particular para reaver a urdidura perdida da história. A literatura policial é parodiada ao mesmo tempo em que há uma reflexão sobre a arte de construir uma ficção. Sobre esse lado cômico da obra, Lucas (1996, p.9 e 10) escreve:

O Equilibrista do Arame Farpado de Flávio Moreira da Costa não chega a ser o
memorial de um louco, embora subverta o romance por dentro e por fora. Falta-lhe a
lógica dos predicados, refúgio do discurso esquizofrênico. (...) Não se iluda leitor com
o caráter lúdico, quase picaresco do romance. Ele é armado para divertir, como um
circo. E diverte. E, como um circo (ou uma corte), traz dentro de si um palhaço (ou
um bobo-do-rei), ou seja, uma vítima da chalaça e, igualmente, um trocista, um
vagabundo, um implacável acusador.

A narrativa em O Equilibrista do Arame Farpado é plurifacetada, ou seja, várias vozes culturais dialogam, num processo contínuo de intertextualidade. O autor monta a narrativa com base nessa estrutura dialógica, fazendo referência à arte fílmica, utilizando nome de novela para nomear seus capítulos (“O Direito de Nascer”), citando músicas (“Diane”, de Paul Anka e “A deusa da minha rua”, de Nelson Rodrigues) e bandas famosas (Beatles e Rolling Stones), usando frases conhecidas de grandes filósofos (Nietzsche e Marx), além da intertextualidade com escritores como Drummond, Olavo Bilac, Edgar Allan Poe, James Joyce e, principalmente, Machado de Assis, que é mencionado, primeiramente, na dedicatória do livro:

Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes do cadáver
de
Joaquim Maria Machado de Assis
dedicamos
com saudosa lembrança
este
ROMANÇÁRIO PÓS-ANTIGO (OEAF, p.5)

A literatura carnavalizante tem como recurso fundamental de expressão a paródia. Esse discurso paródico, pleno de inversões, ironias, ambivalências, reverte para a literatura as formas sincréticas do espetáculo carnavalesco, estudado com profundidade por Bakhtin em seu livro sobre Rabelais.

De acordo com Machado (1995, p.138), a paródia acontece quando “O autor serve-se do discurso do outro e muda-lhe a intenção. O discurso se transforma numa composição para duas vozes, uma não esconde nem elimina a outra”. No romance em discussão, verificamos a utilização do discurso paródico, principalmente no que diz respeito à atualização dos provérbios: “O pior cego é aquele que não quer usar lente de contato”(OEAF, p.18), “Pretensão e água benta batem até que furam”(OEAF, p.19) e “(...) quem é viúvo sempre aparece (...)”(OEAF, p.24)

Enquanto considerações finais, O Equilibrista do Arame Farpado caracteriza-se por apresentar uma narrativa anticonvencional e também pela diversidade de temas a serem investigados, sem que se chegue a esgotá-los. Enveredamos na ficção de Flávio Moreira da Costa, numa tentativa de explicar uma obra que, inicialmente, apresenta-se complexa e sem sentido. Porém, com a repetição das leituras, tornamo-nos parceiros da mesma esquizofrenia.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 28ª ed. São Paulo: Ática, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
COSTA, Flávio Moreira da. O Equilibrista do Arame Farpado. Rio de Janeiro: Record, 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
LUCAS, Fábio. As entranhas expostas do romance. In: COSTA, Flávio Moreira da. O Equilibrista do Arame Farpado. Rio de Janeiro: Record, 1996.
MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago Ed., São Paulo: FAPESP, 1995.

[1] Convencionamos a sigla OEAF, seguida do devido número de página, para aludir, daqui por diante, à obra O Equilibrista do Arame Farpado conforme indicação bibliográfica.

[2] Poeira: indivíduo brigão, irritadiço.

[3] Notamos a ênfase ao numeral “sete”, visto como um número cabalístico.

Elisalene Alves é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará - UFC e Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA.

Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo


Crítica Cultural, volume 2, número 1, jul./dez. 2007
Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo

Antonio Carlos Santos #

Resumo: O ensaio correlaciona a imagem ao mito e à narrativa para, através da leitura do mito de Narciso tal como aparece nas Metamorfoses de Ovídio, pensar a questão do duplo para além da representação. A partir do sentido de imagem como “representação fiel”, por um lado, e como “falsificação”, por outro, procura-se problematizar a relação entre os dois elementos (“cópia” e “original”) para lançá-los na disseminação do múltiplo com Nietzsche, Deleuze e Derrida.

Palavras-chave: teoria literária; imagem e mito.


Espelhos: com saber ninguém descreveu ainda

O que sois em essência.

Vós, intervalos de tempo,

De todo preenchidos como vazios de peneiras.



Vós, ainda perdulários da sala vazia -,

Ao cair da noite, como florestas distantes...

E o lustre atravessa vossa integridade,

Como um cervo de dezesseis galhas.



Às vezes sois cobertos de pinturas.

Algumas parecem incorporadas -,

Outras, dispensastes acanhadamente.



Porém, a mais bonita há de ficar -, até

Que lá em cima tenha penetrado em

Suas faces contidas o Narciso claro e livre.

(Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu)


Gostaria de começar lembrando a etimologia de imagem: imago, forma contrata de imitago - imitare que pode ter o sentido de “reproduzir ou tentar reproduzir fielmente algo, procurar reproduzir o estilo, inspirar-se em, copiar”, como “produzir com a intenção de passar a cópia por verdadeira, falsificar, plagiar, ter a falsa aparência de, assemelhar-se a”, ou seja, tanto traduzir com fidelidade, quanto simular, copiar, parodiar, etc. É importante perceber esse caráter dúplice de imitar: é, ao mesmo tempo, reproduzir fielmente e falsificar, parodiar. Jacques Rancière, que distingue as imagens comuns, que operam pela semelhança, das imagens da arte, que jogam com a dessemelhança, fala em uma dupla poética da imagem no regime estético da arte: em um primeiro momento, a imagem é a significação das coisas inscrita diretamente sobre seus corpos, sua linguagem visível a ser decifrada; logo, a imagem é o enigma, aquilo que se cala, aquilo que não tem significação. É assim, diz ele, que a fotografia se tornou uma arte: colocando seus recursos a serviço desta poética dúplice, fazendo falar duas vezes o rosto dos anônimos, como testemunhas mudas de uma condição inscrita diretamente em seus traços, hábitos, nível de vida, e como detentores de um segredo que jamais saberemos (puros blocos de visibilidade impermeáveis a toda narrativização – não é isso que aparece em algumas teorias da fotografia como, por exemplo, a de Roland Barthes?). Ou seja, a uma imagem tagarela se contrapõe uma outra muda. Podemos ver como em A tagarela, de 1893, Belmiro de Almeida, que já havia pintado então um quadro impressionista, Efeitos de sol (Itália), incorpora essa idéia: é uma tela realista que nos apresenta uma mulher prestes a desatar a falação, a tagarelar. Ela está sentada no meio do retângulo (128 por 83 cm), as cores predominantes são escuras, preto, marrom; a exceção é o avental branco; do lado superior direito, dois girassóis; do inferior esquerdo, a vassoura; entre ambos, um pouco mais próximo dos girassóis, o rosto iluminado da mulher, os olhos bem abertos, a boca esboçando um sorriso; sentada, ela está levemente inclinada para frente, com as mãos unidas entre os joelhos e os cotovelos apoiados nas coxas; o chão é quadriculado, marrom e preto; ao fundo, à direita, vê-se o móvel que sustenta o vaso de girassóis; nele há um brilho, reflexo talvez de uma janela, de onde vem a luz que ilumina o rosto da mulher; é uma empregada doméstica que parou o trabalho para tagarelar (ou interrompeu o trabalho e a falação para posar, para ocupar esse vácuo, esse intervalo); Belmiro a congela exatamente antes dela entrar no fluxo do discurso; por isso, ela aparece como pura potência, no instante em que junta o ar nos pulmões para entrar no jogo, nesse mesmo instante em que o lance de dados é definido. É uma mulher comum, ou seja, a marca de ruptura que o realismo traz para as artes. No canto superior esquerdo, a assinatura e a data. A Tagarela é a dupla poética da imagem e poderia ser vista também como a imagem da potência da narração. Alguém prestes a contar uma história.

E uma história é um mito. Os mitos têm muitas versões, muitas variações[1]. Vamos seguir, nesse caso, os versos de Públio Ovídio Naso, que contou a história de Narciso no livro III de As metamorfoses. Como diz o título, Ovídio narra em seus 15 livros, com 12 mil versos, sempre alguma transformação: homens que se transformam em animais, em flor, em pedra, ninfas que se transformam em voz, homens que se transformam em mulheres, objetos que se transformam em ouro com o simples toque, etc. É a idéia mesma de transformação que dá unidade ao poema de Ovídio. Augusto de Campos, em um dos capítulos de verso reverso controverso, de 1978, chamava a atenção para o caráter cinematográfico das Metamorfoses: “Nas Metamorfoses tudo é kinema, movimento puro, ação feita poesia. (...) As Metamorfoses são, na verdade, o grande thriller cinemascópico (em 15 livros) da literatura latina (191).” Temos aí, portanto, um mito, ou mais, uma costura, uma montagem, de muitos mitos, escritos em versos, uma longa narrativa que vai desde o caos dos primeiros tempos à época de Augusto. Se a narrativa, o relato, é uma grande metáfora, ou seja, a capacidade de compreender em uma imagem, muitas outras imagens, então é um processo de metamorfose (pois não é a metáfora um outro que é o mesmo?). E o relato narra sempre uma transformação, ou uma transfiguração. Gostaria de lembrar que um mito é um relato, uma narrativa. Está lá na Poética de Aristóteles – “É portanto necessário que sejam seis as partes da Tragédia que constituam a sua qualidade, designadamente: mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e Melopéia” (39). E: “Ora, o mito é imitação de ações; por ‘Mito’ entendo a composição dos atos...” (idem). E o mito é também, para Kerényi, a aparição de uma imagem com a qual todo um mundo vem a ser, uma icofania. Como se pode ver, vamos aqui colecionando algumas palavras-guia como imagem, mito, narrativa ou relato, icofania e figura. É esta última que aparece nos livros de Franco Rella, Pensare per figure, ou Miti e figure del moderno, ou Metamorfosis que nos ajudam a levar adiante uma reflexão com as imagens (o jogo dos espelhos – mise en abîme). E é em torno dela também que gira o ensaio erudito de Erich Auerbach, “Figura”, que investiga os usos e sentidos da palavra ‘figura’ desde Terêncio até a noção de prefiguração desenvolvida pelos padres da igreja católica (ler o Velho Testamento como prefiguração do Novo Testamento). Um exemplo delicioso do trabalho da velha filologia que Nietzsche, no Prólogo a Aurora, chama de “a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento – como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento”. Bom, voltando ao ensaio de Auerbach, temos, desde a primeira linha, a família de ‘figura’: da mesma raiz de fingere (fingir, de onde vem ficção, vale lembrar Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”), figulus, aquele que mexe com barro, escultor, fictor, estatuário, escultor, criador, artífice, autor, e effigies, representação, figura, imagem, retrato, forma, estátua, etc.

Vamos começar então com um mito da imagem, da beleza, o mito de Narciso, o relato da metamorfose de um belo jovem, que havia desviado toda sua libido para si mesmo, em uma flor.

Filho do rio Céfiso (Kéfisos, o que banha, o que inunda) com a ninfa Liríope (de voz macia como um lírio), Narciso nasce extremamente belo, o que faz a mãe ficar temerosa, pois uma tal beleza, na Grécia, podia despertar a hybris, o descomedimento, e provocar o ultrapassamento do métron – reparem que Narciso nasce sob o signo das águas[2]. Narciso era mais belo que os imortais. Preocupada, Liríope procura Tirésias, o famoso adivinho, o cego que vê o futuro, aquele mesmo que aparece na tragédia de Édipo. Todos conhecem a história de Tirésias. Seu nome significa “aquele que tem capacidade e visão”, era um vates, um profeta, dotado do vaticinium, do dom da adivinhação, da mantéia. O mito nos conta que, ao chegar à adolescência, Tirésias subiu o monte Citerão e lá viu duas serpentes que se enroscavam. O jovem as separou, ou matou a fêmea (as variações). Resultado: virou mulher. Sete anos depois, voltou ao monte Citerão e viu novamente duas serpentes transando: matou o macho e readiquiriu a forma masculina. O profeta, portanto, era alguém que tinha a experiência dos dois sexos. Um dia, Zeus e Hera discutiam sobre quem tinha mais prazer no amor. Zeus dizia que maior é o prazer das mulheres (“Maior vestra profecto est, quam quae contingit maribus, dixisse, voluptas”) e, como Hera discordasse, resolveram chamar Tirésias para decidir quem tinha razão, já que conhecia os dois lados. Sem hesitar, Tirésias responde que se o ato de amor tivesse 10 partes, nove caberiam à mulher. Hera fica furiosa, pois, por um lado, ele havia revelado o segredo das mulheres, por outro, o argumento decretava a superioridade do homem, causa do prazer feminino. Cega-o com um raio e Zeus, para compensar a perda da visão, lhe dá o dom da mantéia, o poder de adivinhar, de prever o futuro.

Pois bem, é ele que Liríope interpela para saber do futuro de seu belo filho: Narciso viverá muitos anos? Resposta do “fatidicus vates 'si se non noverit’”. (Met. III 248). Percebam que tanto Tirésias quanto Narciso estão cercados por um problema que concerne à visão e ao conhecimento. Narciso cresce e todos se apaixonam por ele, até mesmo Eco, uma ninfa tão tagarela que foi condenada por Hera à repetição, ou seja, ela não mais falaria, mas apenas poderia repetir uma outra fala. O encontro de Eco e Narciso aparece assim nos versos de Ovídio, na tradução para o português de Antonio Feliciano de Castilho:

“Dos sócios seus na caça extraviado

Narciso brada: Olá! Ninguém me escuta?

Escuta, lhe responde a amante ninfa.

Ele pasma: em redor estira os olhos;

E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;

Convite igual ao seu parte dela.

Volta-se, nada vê. Por que me foges?

Clama; por que me foges, lhe respondem.

Da mútua voz deluso, insiste ainda:

Juntemo-nos aqui. Frase mais doce,

Nem lhe espera, nem quer; delira, e logo,

Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias

De o pôr por obra; da espessura rompe,

Vem de braços abertos, anelando,

Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo.

Ele foge; fugindo, ilude o abraço,

E antes, diz, morrerei, que amor nos una.

Ela, imóvel, co’a vista o vai seguindo,

E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una.”

Assim como Tirésias, Eco também acaba castigada pela mulher de Zeus e morre de amor, vivendo seus últimos dias reclusa, em uma caverna, até se transformar em um rochedo. Mas a voz havia ficado (“uma voz que vive entre os morros”).

Na próxima cena, Narciso encontra uma fonte de água pura que nunca havia sido tocada por nada, nem por ninguém e, encantado pelo lugar, resolve matar a sede. Mas ao mesmo tempo em que aplaca a sede, uma outra (“dumque sitim sedare cupit, sitis altera crevit”) mais poderosa aparece (cf. Junito p. 180). A imagem de seu rosto refletida nas águas puras da fonte o paralisa: fica totalmente apaixonado pela imagem, preso a ela como uma estátua no momento mesmo em que a conhece; não consegue se mexer, desviar os olhos desse fantasma dele mesmo; ele é ao mesmo tempo o amante e o objeto amado (“se cupit” – deseja a si mesmo). Aqui o motivo da repetição retorna (como no episódio de Eco): Narciso conta à floresta em seu redor seu drama de amor. “Se te estendo meus braços, tu estendes os teus; tu ris se eu rio e choras se eu choro”[3]. Narciso morre – “ele deixa então sua cabeça cair na relva: a noite eterna cobre seus olhos tomados por sua beleza. Mas sua paixão o segue no caminho das sombras, e ele ainda procura sua imagem nas águas escuras do Estige – e vira uma flor amarela cujo centro era circundado por pétalas brancas. Assim como Édipo, Narciso se aniquila, se perde, no momento mesmo da anagnórisis (na Poética, de Aristóteles: “O reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer”.). O mito de Narciso apaixonado pela própria imagem ressurge, por exemplo, com o nome poeticamente alterado, Metaformose, agregado a uma viagem pelo imaginário grego, no texto assinado por Paulo Leminski, publicado em 95 e escrito em 1986-87. No reordenamento que Leminski dá ao texto de Ovídio, que por sua vez é também um refazer de outras antologias e assim por diante, montagem, articulação de partes, novamente quem pontua a narrativa costurando os fragmentos de mitos que se intercalam é exatamente Narciso.

Tabu contra a vaidade, contra um auto-amor excessivo, horror ao solipsismo, ao eu como única realidade, fuga do mundo, rompimento da relação sujeito-objeto, a imago e a umbra, ou seja, a sombra, a alma sombra, dos mundos subterrâneos, do Hades, esse parece ser o núcleo do mito. Mas os neoplatônicos o entendiam de outra forma: em vez de rejeição do mundo, eles viam em Narciso o oposto: um elo preso ao mundo, uma fascinação sem esperança pelo mundo da matéria e das aparências.

Há em todas essas histórias, estórias, uma relação com o duplo: Tirésias era dois (homem e mulher, cego e vidente), Eco estava condenada a ser segunda, a repetir, Narciso era o amante e o objeto amado. A imagem também é sempre segunda (“imagens são superfícies que pretendem representar algo” Vilém Flusser). E essa obsessão pelo duplo é o que opõe, por exemplo, a tradição metafísica que se funda no um, na unidade, na identidade, a um pensamento do múltiplo, que se funda na diferença, no corpo, no rastro imotivado, no rizoma. Representar é apresentar de novo e, assim como repetir, pressupõe algo que lhe é anterior, que garanta sua possibilidade. A imagem representa algo, diz Flusser. Mas o que ela nos apresenta é uma semelhança ou uma dessemelhança? Há graus de semelhança? Como se funda uma hierarquia da semelhança? Para a metafísica, a semelhança pressupõe uma identidade que se reconhece a si enquanto presença, uma unidade, uma origem, um princípio que funda toda a cadeia que se dirige a um telos e ordena o mundo em pares de opostos. Para Derrida, a noção de rastro/traço (trace) vem acompanhada do adjetivo imotivado, ou seja, sem origem, sem fundamento, sem um primeiro, para chamar a atenção para uma outra lógica em que a origem não conta, apenas a différance. Portanto, a imagem é apenas imagem de imagem (é assim que Deleuze lê Bergson em sua reflexão com o cinema sobre imagem e movimento. Vale lembrar os primeiros passos do texto deleuziano, na verdade uma aula: “... não há dualidade entre imagem e movimento, como se a imagem estivesse na consciência e o movimento nas coisas. O que há? Há apenas imagens-movimento. (...) Um universo de imagens-movimento. Imagens-movimento, é isso o universo.” É uma aula tão bela que a um certo momento Deleuze diz do texto de Bergson: C’est beau comme un roman). Não é assim também que lemos o signo depois das releituras de Derrida e Lacan das teses de Saussure? O significante apenas desliza, dissemina, se conecta a outro significante, máquinas que se acoplam para fazer passar o fluxo.

Portanto, no mito de Narciso se interconectam os temas da visão, da repetição, da imagem, do reflexo, mas também de uma certa desmesura que é própria de Dionisos. Vale lembrar o esquema trágico (o caminhar do anthropos, simples mortal, que ao ultrapassar o métron, a sua medida, torna-se herói e acaba nos braços da Moira, do destino cego: métron/ hybris/némesis/áte/ Moira, dá para ver aí o percurso de Narciso). O vaticínio de Tirésias era: viveria muito tempo se não se conhecesse, ou seja, se não seguisse o lema de Apolo: conhece-te a ti mesmo. Se consultarmos o mito de Dionisos, veremos que um dos epítetos do deus da metamorfose é Zagreu, o Grande Caçador. Era filho de Zeus e Perséfone e tão querido pelo mais poderoso dos deuses que estava destinado a sucedê-lo. Para evitar os ciúmes de Hera (Juno), deixa-o aos cuidados de Apolo que o esconde nas florestas do Parnaso. Mas a implacável Hera o descobre e manda seus Titãs matá-lo. Os gigantes o atraem então com brinquedos que representam as coisas do mundo, entre eles um espelho. Enquanto olha sua própria imagem, Dionisos-Zagreu é despedaçado pelos Titãs e devorado. Com o corpo destruído, o deus das transformações está pronto para a série infinita de reencarnações. Narciso é dessa linhagem.

Vale lembrar ainda o Estádio do espelho, texto que dá conta da concepção de Lacan sobre a constituição do ‘eu’; texto, aliás, umbilicalmente ligado às reflexões de Freud sobre o Narcisismo (Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914). As conseqüências de uma tal investigação são a destruição de uma idéia de essência humana, de um centro primordial, de uma natureza divina, e a elaboração do sujeito enquanto vazio, cheio de ficção, ou seja, o sujeito não é apenas a consciência do cogito cartesiano, é também o inconsciente, o corpo, é múltiplo como Fernando Pessoa que chegou a ser 72, sendo quatro deles grandes poetas, ou Mário de Andrade que era 350, ou o Dionisos dos gregos. Para concluir, há também as estórias de Machado e Guimarães, ambas intituladas “O espelho”, essa superfície polida que reflete a luz que incide sobre si, objeto mágico, ligado à série que iniciamos com imagem e que se desdobra nos espectros, nos fantasmas, no simulacro, etc. O espelho povoa a literatura: basta lembrar aqui duas narrativas, a de Branca de Neve (Sneewittchen), história recolhida pelos irmãos Grimm, e Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, de Lewis Carrol, um matemático que adorava fotografar meninas em poses sensuais. Poderíamos ler aqui dois problemas: a questão da representação e a da essência do ‘eu’, ou seja, da ontologia desenvolvida pela metafísica ocidental.

Em Diferença e repetição, Deleuze diz que...

a representação deixa escapar o mundo afirmado da diferença. A representação tem apenas um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade; ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação: já um quadro, uma escultura são ‘deformadores’ que nos forçam a fazer o movimento, isto é, a combinar uma visão rasante a uma visão mergulhante ou a subir e descer no espaço na medida em que se avança. Basta multiplicar as representações para se obter um tal ‘efeito’? A representação infinita compreende, precisamente, uma infinidade de representações, seja porque assegura a convergência de todos os pontos de vista sobre um mesmo objeto ou um mesmo mundo, seja porque faz de todos os momentos as propriedades de um mesmo Eu. Mas ela guarda, assim, um centro único que recolhe e representa todos os outros como uma unidade de série que ordena, que organiza uma vez por todas os temas e suas relações. É que a representação infinita não é separável de uma lei que a torna possível: a forma do conceito como forma de identidade que constitui ora o em-si do representado (A é A), ora o para-si do representante (Eu = Eu). O prefixo RE-, na palavra representação, significa a forma conceitual do idêntico que subordina as diferenças. Portanto, não é multiplicando as representações e os pontos de vista que se atinge o imediato definido como ‘sub-representativo’. Ao contrário, cada representação componente é que deve estar deformada, desviada, arrancada de seu centro. É preciso que cada ponto de vista seja ele mesmo a coisa ou que a coisa pertença ao ponto de vista. É preciso, pois, que a coisa nada seja de idêntico, mas que seja esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade do objeto visto quanto a do sujeito que vê. É preciso que a diferença se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras diferenças que nunca a identificam, mas que a diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo. Sabe-se que a obra de arte moderna tende a realizar estas condições: neste sentido, ela se torna um verdadeiro teatro feito de metamorfoses e de permutações. Teatro sem nada fixo ou labirinto sem fio (Ariadne se enforcou). A obra de arte abandona o domínio da representação para tornar-se ‘experiência’, empirismo transcendental ou ciência do sensível. (106-107)

Estamos, portanto, instalados em plena crise da representação, da idéia de representação (não é à toa que a política tradicional revela sinais de um cansaço, de uma exaustão que só produz a desconfiança, a descrença, etc. e que também possibilita outras práticas políticas, desde os movimentos antiglobalização às lutas de moradores das cidades e de camponeses sem terra). Tudo isso tem a ver com o rompimento do pacto mimético que marca a modernidade ou, como diz Rancière, com a mudança do regime mimético para o regime estético. Se as imagens são como os textos, significantes de significantes, como ler? Se as imagens não valem mais do que mil palavras porque também só ‘fazem sentido’ ao serem articuladas com outras, como ler? Com Nietzsche, vimos que ler é atribuir um sentido (Sinn hinlegen), que o sentido é o que vem depois, é aquilo que se articula, o movimento de uma série. O sentido é, também, resultado de uma dinâmica de forças e toda força é apropriação, dominação, exploração de uma quantidade de realidade. Um fenômeno não é uma aparência, mas um signo e descobrir o sentido desse fenômeno é descobrir que forças operam nele.

Referências

ARISTÓTELES. Poética/PERI POIHTIKHS. Trad. Eudoro de Souza (Ed. Bilíngüe). São Paulo: Ars Poética, 1992.

AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997.

CAMPOS, Augusto. verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978.

DELEUZE, Gille. Nietzsche et la philosophie. Paris: Quadrige / Presse Universitaires de France, 1997.

_________. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Trad. do autor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível / estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org. / Ed 34, 2005.

RELLA, Franco. Pensare per figure. Freud, Platone, Kafka, il postumano. Roma: Fazi Editore, 2004. Miti e figure del moderno. Letteratura, arte e filosofia. Milano: Feltrinelli, 2003. Metamorfosis / Imágenes del pensamiento. Madrid: Espasa-Calpe, 1989.

[1] Nos diz o Diccionario Enciclopédico de la Música, de D. Carlos José Melcior, publicado em Lerida, na Espanha, em 1859: “Entendemos por este nombre las diferentes maneras de variar el canto de una aria, de un romance, de un tema o motivo por medio de ciertos adornos. Sean estos mas o menos complicados, es menester que al través de ellos se divise el motivo principal, y que cada variación tenga una novedad tal, que mantenga la atención y evite el fastidio.” Variações, portanto, diferença e repetição, pois variar é mudar um tema, preservando-o, repetir, diferindo.

[2] Vale consultar Brandão, Junito. Mitologia Grega. Vol 1. Petrópolis: Vozes, p. 265.

[3] Tradução para o português de Antonio Feliciano de Castilho, publicada em 1841.




#Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina. Doutor em Literatura.

domingo, 28 de outubro de 2007

Armadilhas ficcionais: modos de desarmar

Jornal do Brasil / Data: 10/4/2004
Lições para desarmar armadilhas da literatura
Ensaios analisam a ficção, de Mann a João Ubaldo

CLÁUDIA NINA

Armadilhas ficcionais: modos de desarmar é um apurado exercício de
investigação. O ''crime'' é supostamente aquele cometido por um
algoz que é também - e sobretudo - vítima de suas próprias
emboscadas: o narrador contemporâneo. Os instrumentos para ''desarmá-
lo'' são as teorias e a perspicácia com que os críticos destrincham
a ordem engenhosa, por vezes irônica e dissimulada, das complexas
estruturas de romances e contos da atualidade. Coletânea de ensaios,
Armadilhas reúne textos de seis professoras de Letras da Uerj e é
organizado por Carlinda Fragale Pate Nuñez .

Os autores analisados são de várias linhagens: de Thomas Mann a
Bernardo Carvalho, passando por Hilda Hilst, Graciliano Ramos, João
Ubaldo e Haroldo de Campos. O que orienta todas as leituras, como
diz Carlinda Nuñez na apresentação, não é o embuste ou a traquinada,
mas a inteligência astuciosa que preside a organização de cada um
dos textos investigados.

Entre os desafios, está o de investigar a narrativa de autores
jovens, que ainda não tiveram sua obra devidamente ''desarmada''
pela crítica acadêmica. É o caso, por exemplo, de Bernardo Carvalho
e seu romance Nove noites , que ganha na leitura de Sílvia Regina
Pinto, em ''Demarcando territórios ficcionais: aventuras e
perversões do narrador'', uma estimulante abordagem. Especialista em
literatura contemporânea, Sílvia se lança ao desafio de pensar a
obra de Carvalho como um território ficcional forrado de areia
movediça. Nada é o que parece ser. Mesmo trabalhando com verdades
históricas, explica, ''o autor perturba e dispersa a noção do
sujeito individual'', criando, no limite entre fronteiras
deslizantes, sujeitos ''performáticos e simulacros'' que narram a
trama mas não solucionam nenhuma das questões que levantam, deixando
ao leitor a tarefa de completar a história.

Sílvia relembra a classificação de Walter Benjamin dos tipos de
narrador - o clássico, o moderno e o jornalista - acrescentando a
estes o narrador ''performático'', aquele que ''põe em prática uma
encenação narrativa de referências e identidades perdidas,
transitando muitas vezes pela simulação e pelo simulacro'', sendo os
narradores de Bernardo Carvalho encenadores irônicos por excelência.
Como escreve Sílvia: ''Em Nove noites (...) o leitor se descobre
transportado para um mundo que parece realista, porque regido pelas
mesmas regras e princípios que o mundo real, o que na verdade é
apenas uma 'pista falsa' (...) A performance desses narradores
encontra-se na capacidade de construir armadilhas ilusórias que
jogam com o real, simulam, mas não deixam que ele seja realmente
captado.''

Hilda Hilst e seu Caderno rosa de Lori Lamby é o objeto de estudo do
ensaio ''Lori lambe a memória da língua'', de Ana Cristina Chiara,
autora de Pedro Nava: um homem no limiar (EdUerj). O narrador aqui é
duplamente simulado: uma menina de 8 anos, a Lori do título, que
oscila entre a candura e a corrupção sexual. Em seu caderno cor-de-
rosa ela registra cenas de escandalizar libertinos. A partir do
relato de Lori, Hilda constrói a ficção dentro da ficção numa
magistral habilidade em manipular as artimanhas do texto, colocando
a ''inocência'' a serviço das experimentações da linguagem. Como
escreve a professora: ''O sexo tematizado no Caderno rosa põe a nu
as possibilidades e impossibilidades de a palavra conferir imagens
estáveis de realidade e evidencia o
caráter 'artificial', 'artístico' do como dizer.''

É também a linguagem o interesse de Ana Lúcia de Oliveira no
ensaio ''Sobre a configuração babel-barroca da prosa minada de
Haroldo de Campos'', em que os fragmentos de Galáxias têm espaço
numa leitura que aproxima o poeta, segundo as pistas deixadas pelo
próprio autor, da estética seiscentista. Aprofundando a abordagem
com exemplos retirados de Galáxias , Ana Lúcia, autora de Por quem
os sinos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas (Eduerj), faz a
ligação entre um universo e o outro; o antigo e o contemporâneo se
unem em uma série de experimentações de linguagem, como a ''dobra'',
traço do barroco e também elemento crucial na arte de Haroldo de
Campos.

Em seu texto, explica Ana Lúcia, ''urde-se uma superfície plissada,
em que os mesmos motivos se cobrem e se descobrem, à maneira do
origami japonês (...). Num arabesco irônico, a escritura se volta
sobre si mesma, leque a dobrar-se e desdobrar-se, desenvolvendo suas
séries permutantes e suas estruturas circulares.'' As palavras
fundidas, ou palavras-valise, são alguns dos exemplos do virtuosismo
caro ao poeta concretista.

Diálogos inusitados surgem no artigo de Fátima Cristina Dias
Rocha, ''São Bernardo e Sargento Getúlio: vozes e gestos em
contraponto'', que articula a interação entre romances que
permaneceram meio ''isolados'' no campo da crítica, mas que, apesar
de escritos em épocas distintas, têm em comum, além da prosa áspera,
a afinidade entre os narradores e suas respectivas estratégias.
Fátima pede o auxílio teórico de Jean Starobinski e de uma série de
outros autores para sua investigação.

O livro se completa com dois outros ensaios: o de Maria Antonieta
Jordão de Oliveira Borba, intitulado ''Construção do objeto
estético: as relações entre mímeses/performance e schema/correção'',
uma reflexão sobre as idéias de Wolfgang Iser; e de Carlinda
Nuñez, ''Jogos fictícios na Veneza de Thomas Mann'', que faz uma
ponte entre o autor e a tradição, unindo marcadores do dramático e
da teatralidade ao discurso contemporâneo de Mann.

Embora sejam pequenos em extensão, os ensaios de Armadilhas
ficcionais são peças importantes na compreensão da narrativa
contemporânea ou mesmo de autores já consagrados, mas que recebem,
numa aproximação crítica inusitada, um novo olhar, ''armado'' - como
deve ser o de toda boa crítica.