quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

TRANSTEXTUALIDADE

TRANSTEXTUALIDADE
Segundo Gérard Genette, em Palimpsestes [1] cinco são os tipos de relações transtextuais:

1. Intertextualidade, considerada como a presença efetiva de um texto em outro texto. É a copresença entre dois ou vários textos: citação[2], plágio[3], alusão[4]. Estudar a intertextualidade é analisar os elementos que se realizam dentro do texto (inter).

2. Paratextualidade, representada pelo título, subtítulo, prefácio[5], posfácio[6], notas marginais, epígrafes[7], ilustrações... Este campo de relações é muito vasto e inclui as notas marginais, as notas de rodapé, as notas finais, advertências, e tantos outros sinais[8] que cercam o texto, como a própria formação da palavra está a indicar.

3. Metatextualidade, vista como a relação crítica, por excelência. É a relação de comentário que une um texto a outro texto.

4. Arquitextualidade, que estabelece uma relação do texto com o estatuto a que pertence – incluídos aqui os tipos de discurso, os modos de enunciação, os gêneros literários etc. em que o texto se inclui e que tornam cada texto único.

5. Hipertextualidade. Toda relação que une um texto (texto B – hipertexto) a outro texto (texto A – hipotexto).

Genette esclarece que seu conceito de transtextualidade alcança “tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”, ou seja, aquilo que ele chama de relações transtextuais.

Não se pode considerar, por outro lado, que as várias formas de transtextualidade apareçam como classes estanques, sem comunicação. Ao contrário, elas atuam de forma muitas vezes conjunta e complementar, sendo essas relações numerosas e decisivas na construção textual.

Vejamos algumas possibilidades:

a arquitextualidade constitui-se quase sempre por meio da imitação;

a aparência arquitextual de muitas obras é, com freqüência, demonstrada por meio de indicadores paratextuais;

tais indicadores são, por sua vez, pequenas formas de metatexto;

o paratexto, prefacial ou outro, inclui diferentes formas de comentário;

o hipertexto tem também valor de comentário;

o metatexto crítico somente se realiza com a inclusão de citações (intertextos citacionais);

o hipertexto realiza-se por meio de alusões textuais ou paratextuais.

Hipertexto seria, para Genette, todo texto derivado de um outro texto – que lhe é anterior –, por transformação simples, direta, ou, de forma indireta, por imitação. Engloba uma classe de gêneros, como a paródia, o pastiche, as fantasias [travestissement] (tudo é transformação: certas epopéias, certos romances, certas tragédias, certas comédias, certos poemas líricos, ao mesmo tempo, pertencem a seu gênero textual e são, também, hipertextos de outros textos já existentes). Muitas vezes, no próprio hipertexto está a marca paratextual que o liga ao hipotexto (veja-se como os títulos dados às muitas versões criadas a partir da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, anunciam desde logo a aproximação entre elas existentes). Essa marca (esteja ela no título ou em outro recurso que aponte para o leitor a relação entre os textos) é um indicativo paratextual que o autor remete a seu leitor.

As várias formas de transtextualidade são aspectos da textualidade. Considere-se a textualidade como a característica que identifica o texto – um texto só existe por sua textualidade, ou seja, pelas características que o tornam um texto. Dessas características, fazem parte os recursos transtextuais. Mesmo transtextuais, os textos podem ser relacionados aos gêneros a que pertencem. Por exemplo, embora seja um recurso transtextual, o prefácio é um gênero reconhecido em si mesmo.

Cabe aqui um aprofundamento nas práticas englobadas no termo hipertextualidade. Genette considera a hipertextualidade como um aspecto universal da literaridade. Afirma que não há obra literária que não evoque, de alguma forma, alguma outra. Nesse sentido, todas as obras seriam hipertextuais. Destaca, no entanto, aquelas que, segundo ele, são massiva, manifesta e explicitamente uma retomada de outras.

A paródia é recurso encontrado com freqüência na literatura. Reside na retomada de um texto, trabalhado com novas e diferentes intenções daquelas com que foi criado por seu autor. Encontramos paródias humorísticas, críticas, poéticas.

Detendo-se na etimologia da palavra, Genette nos faz lembrar que ode é canto, canção e para, aquilo que se desenvolve ao longo de, ao lado de. Logo, a paródia seria um contracanto, uma canção transposta.

Genette destaca três possibilidades de paródias representadas na tradição literária:

1. a aplicação de um texto nobre, modificado ou não, a um diferente assunto, geralmente vulgar;

2. a transposição de um texto nobre para um estilo vulgar;

3. o emprego de um estilo nobre (epopéia) de uma obra singular a um assunto vulgar ou não-heróico.

A forma mais rigorosa de paródia consiste na retomada de um texto conhecido para lhe dar um novo sentido ou mesmo desligá-lo de seu contexto e de seu nível de dignidade. Ela se faz, nesse caso, paródia de umas poucas frases, textos curtos, provérbios, ditos históricos tomados em outro sentido que não o original. Com essas características, funciona elegantemente como um ornamento dentro do texto que a abriga.

Encontram-se paródias que consistem em mudar uma letra em uma palavra; outras trocam uma palavra de um verso; outras ainda, sem qualquer alteração textual, suprimem o sentido de uma citação, ao dar-lhes um novo contexto. Existem aquelas que compõem toda uma obra nos moldes de outra, modificando-lhe o assunto ou o sentido mediante alteração de certas expressões.

Uma outra forma de paródia, que se caracteriza por desenvolver textos de acordo com o gosto e o estilo de autores pouco aceitos, é vista por Genette como imitação estilística com função crítica ou ridicularizante. Essa paródia de aspecto caricatural recebe a denominação específica de pastiche.

Mencionando Proust, Genette afirma que o pastiche é “a crítica em ação”. (p.15)

Genette destaca também uma outra forma de hipertexto – a fantasia [travestissement] burlesca –. Essa fantasia burlesca modifica o estilo sem modificar o assunto, ou seja, embora retome assuntos consagrados, sua forma é vulgar, burlesca, aproximando-se dos gêneros cômicos, ao contrário da paródia que modifica o assunto sem modificar o estilo. Resume o autor: “a paródia modifica o assunto sem modificar o estilo, e isso de duas maneiras possíveis: seja conservando o texto nobre para aplicá-lo o mais literariamente possível a um assunto vulgar (real e atual): é a paródia estrita; seja forjando, por meio da imitação estilística um novo texto nobre para aplicá-lo a um assunto vulgar: é o pastiche herói-cômico”. [9]

Buscando tornar mais exato o emprego dos termos que designam as várias formas de hipertextualidade, Genette propõe duas classificações: uma classificação funcional e uma classificação estrutural.

A primeira delas (classificação funcional) estabelece as funções satírica (incluindo a paródia, a fantasia [travestissement] e a charge) e não-satírica em que se situa o pastiche.

A segunda (classificação estrutural) prende-se à forma de relação hipertextual. Aqui, a paródia e o travestissement são considerados textos que mantêm com seu texto-matriz (hipotexto) uma relação de transformação; sendo a charge e o pastiche vistos como textos de imitação.

Acrescenta Genette que, se a paródia for definida apenas por sua função burlesca, nela não podem ser incluídas obras como o Ulisses de Joyce. Assim, propõe uma terceira forma de classificação das práticas hipertextuais que incluam as transformações e imitações sérias. Para as transformações sérias, propõe o termo transposição, neutro e de grande abrangência. Para as imitações sérias, sugere forgerie. (p.43)

Termina, dessa forma, Genette por estabelecer seis grandes categorias de hipertextos. Nessas categorias, incluem-se todos os textos construídos por transformação de outros textos.

Assim, numa relação de transformação, a paródia está incluída como produção lúdica; a fantasia, como produção satírica; a transposição, como produção séria. Na relação de imitação, o pastiche é considerado como produção lúdica; a charge, como produção satírica; e a forgerie, como produção séria.

Um hipertexto pode ser lido em si mesmo ou em sua relação com o hipotexto. Essa leitura palimpsêstica, um verdadeiro jogo, permite ao leitor o prazer do encontro entre o texto e seus pré-textos.

Acrescente-se aqui a paráfrase[10], que não pode confundir-se com o plágio[11], já que se trata de um exercício de retomada de um texto com o objetivo de reproduzir-lhe as idéias, de explicitá-las, para tomá-las em consideração.


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[1] O uso de escrever-se em pergaminhos fez com que o couro de animais utilizado para a escrita fosse, muitas vezes, reaproveitado, apagando-se a escrita antiga, para, sobre ela, colocar-se a nova escritura. Era o palimpsesto, no qual a nova escritura recobrindo a escritura anterior deixava entrever os traços da primeira. Daí vem a denominação palimpsesto para os textos escritos em cima de outros, retomando-os e revelando-os nessa retomada. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982.

[2] A citação é a utilização de um texto, ou parte dele, dentro de outro texto. Sendo esse texto normalmente de autor renomado, é empregado como recurso ilustrativo ou argumentativo.

[3] Plágio é a apropriação indevida de um texto, ou seja, aquela que não se reporta ao autor e é apresentada como de autoria da pessoa que o utiliza.

[4] A alusão remete a outro texto, citação, adágio, provérbio conhecido. É integrada ao texto como uma rápida menção àquilo que já se conhece, estabelecendo paralelos, aproximações, reforçando uma afirmativa ou argumentação. Pressupõe um conhecimento prévio comum sobre o conteúdo da alusão entre quem lê e quem redige.

[5] O prefácio antecede o texto propriamente dito. Pode ser elaborado pelo próprio autor, pelo editor ou por alguém escolhido por seu conhecimento no assunto.

[6] O posfácio aparece como um esclarecimento colocado à parte ao final de um texto.

[7] As epígrafes são sentenças ou textos que antecedem um escrito ou seus capítulos. Seu conteúdo está diretamente ligado ao que vai ser encontrado a seguir, servindo como chamado ao leitor.

[8] Os sinais de seda que Raquel Vandelli tão bem destaca em sua dissertação, na análise do Dicionário Kazar, do iugoslavo Milorad Pávitch

[9] GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982, p.35.

[10] A paráfrase é a retomada de um texto contado com outras palavras que não as originais, mas sem a intenção de modificá-lo ou dar-lhe diferente abordagem. É retomada pura e simples, com o objetivo de comentário posterior ou de registro que por qualquer razão se faça necessário.

[11] O plágio se caracteriza como a apropriação de um texto ou parte dele, sem citação da fonte ou reconhecimento da autoria.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

De como a escuridão pode surpreender e abrir caminhos

Vivian Rangel

Mersault, protagonista de O estrangeiro, de Alberto Camus, acreditava ser possível passar 100 anos numa prisão, pois, se um homem houvesse vivido um único dia, teria recordações suficientes para não se entediar. Mas, e se esta prisão não fosse uma limitação de espaço e sim o encarceramento na própria memória pela perda da visão? Jorge Luis Borges, James Joyce e João Cabral de Melo Neto foram grandes escritores forçados a enfrentar a cegueira, lidar com a impossibilidade de ler e a necessidade de reinventar o ato de escrever antes feito de palavras, rabiscos e versões em papel. Os três são protagonistas de Histórias de literatura e cegueira, do jovem escritor paulista Julián Fuks.

Ensaio, memórias, conto, intertextualidade e pesquisa jornalística mesclam-se em cada um dos textos semi-ficcionais, impossíveis de serem classificados entre os gêneros literários tradicionais. Para Fuks, os textos definem-se como ensaios narrativos que partem do real - ou do que se chama de real - passam pelo verossímil, o mundo do provável e possível, e só então abraçam a ficção, como recurso último.

Entregue a divagações, Borges é o primeiro a ser abordado imerso numa ausência em tom amarelado e divagando sobre o vermelho e o negro de Stendhal, as cores de que mais sente falta. Não, os cegos não estão imersos no preto absoluto. João Cabral está dormindo no momento em que a chuva "aprisiona um dia ingrato", tão ingrato que um jornalista está prestes a tocar a campainha em busca de uma entrevista. O pequeno Joyce deseja se casar com Eileen, uma protestante, e é imediatamente reprimido por sua mãe. Ela garante: seu pensamento será punido pela visita de uma águia devoradora de olhos, caso não se desculpe.

- Não fiz testes como vendar meus olhos e caminhar ou tentar escrever, a cegueira foi um pretexto, uma maneira de encontrar algo para começar a escrever - explica Fuks.- Vargas Llosa diz que escreve para espantar os fantasmas. Talvez eu precise pegar emprestado fantasmas alheios.

No capítulo sobre Borges, Fuks utilizou-se principalmente de suas conferências e encontros com amigos. Um texto repleto de pensatas borgianas sobre a visão, as palavras e a construção do real, mais estranho que a ficção "que somos nós que fazemos, enquanto a realidade é feita por Deus".

- A perda da visão fez com que Borges se tornasse um mestre da literatura oral em conferências memoráveis, além de produzir mais ensaios e poesia - lembra o escritor. - Se enxergasse, talvez tivesse ficado restrito aos contos fantásticos, e não teria o papel que tem hoje, o do velho sábio, culto, erudito, que sem ler citava de memória trechos literários.

João Cabral ganha prosa mais seca, uma entrevista repleta de pausas e silêncios, e também de versos derradeiros, "em chão de pedra que faz o leitor tropeçar". Versos de quem acreditava estar, no pudor e nas horas intermináveis de procura, a força da poesia.

- João Cabral é um caso à parte, deixou de produzir quando perdeu a visão, à exceção de alguns poemas mais simples e diretos que ele afirma ter escrito para desfazer a capacidade de escrever - destaca Fuks.

O pastiche chega ao ápice na narrativa de trechos da vida e da obra de James Joyce. É quando Fuks sai em busca das epifanias, palavras-valise e estilo inconfundível do irlandês. Ao leitor mais ansioso em descobrir os trechos originais utilizados, vale o artifício de consultar as referências bibliográficas no fim do volume, mas boa parte do divertimento está em se deixar levar pela prosa, reconhecendo o universo joyceano.

- Era impossível para mim escrever sobre Joyce sem emular seu estilo - afirma Fuks. - O reflexo da cegueira de James Joyce em sua obra é talvez o mais polêmico. Sempre me pergunto se ele escreveu de forma tão peculiar porque tinha essa duplicidade em relação à escrita: uma aproximação e ao mesmo tempo um apartamento das palavras. E como ignorar tantas referências à falta da visão, como em Finnegans Wake , em que ele põe a linguagem nas trevas?

Da escuridão imposta pela morte de um sentido, os três escritores apelam para a memória e seus meandros, forçam novos caminhos. Borges tinha uma memória incrível, andava pelas ruas criando e recitando poemas que decorava para ditar à mãe. João Cabral recebia visitas da filha, que lia em voz alta - o que na verdade era um sofrimento, pois o poeta não conseguia organizar o pensamento por meio da audição. Joyce suportou múltiplas cirurgias e fez da reduzida visão necessidade para o encontro da realidade da experiência.

- Escrever é lidar com essa flacidez da memória, tentar recuperar o que se perdeu no tempo, o que a cegueira força ao extremo - define o escritor. - Vivemos no império da visão, com predomínio desse sentido sobre os outros, inclusive no infinito de expressões como à primeira vista, olhar apurado ou a muleta acadêmica vale observar. Quando o escritor pode dar atenção a outros fatores que podem ser cheirados, esquecidos, tocados, o leitor ganha amplitude de sentidos. E talvez seja essa capacidade que determine a diferença entre os grandes escritores e os óbvios.

JB - Idéias 01/12/2007