quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

TRANSTEXTUALIDADE

TRANSTEXTUALIDADE
Segundo Gérard Genette, em Palimpsestes [1] cinco são os tipos de relações transtextuais:

1. Intertextualidade, considerada como a presença efetiva de um texto em outro texto. É a copresença entre dois ou vários textos: citação[2], plágio[3], alusão[4]. Estudar a intertextualidade é analisar os elementos que se realizam dentro do texto (inter).

2. Paratextualidade, representada pelo título, subtítulo, prefácio[5], posfácio[6], notas marginais, epígrafes[7], ilustrações... Este campo de relações é muito vasto e inclui as notas marginais, as notas de rodapé, as notas finais, advertências, e tantos outros sinais[8] que cercam o texto, como a própria formação da palavra está a indicar.

3. Metatextualidade, vista como a relação crítica, por excelência. É a relação de comentário que une um texto a outro texto.

4. Arquitextualidade, que estabelece uma relação do texto com o estatuto a que pertence – incluídos aqui os tipos de discurso, os modos de enunciação, os gêneros literários etc. em que o texto se inclui e que tornam cada texto único.

5. Hipertextualidade. Toda relação que une um texto (texto B – hipertexto) a outro texto (texto A – hipotexto).

Genette esclarece que seu conceito de transtextualidade alcança “tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”, ou seja, aquilo que ele chama de relações transtextuais.

Não se pode considerar, por outro lado, que as várias formas de transtextualidade apareçam como classes estanques, sem comunicação. Ao contrário, elas atuam de forma muitas vezes conjunta e complementar, sendo essas relações numerosas e decisivas na construção textual.

Vejamos algumas possibilidades:

a arquitextualidade constitui-se quase sempre por meio da imitação;

a aparência arquitextual de muitas obras é, com freqüência, demonstrada por meio de indicadores paratextuais;

tais indicadores são, por sua vez, pequenas formas de metatexto;

o paratexto, prefacial ou outro, inclui diferentes formas de comentário;

o hipertexto tem também valor de comentário;

o metatexto crítico somente se realiza com a inclusão de citações (intertextos citacionais);

o hipertexto realiza-se por meio de alusões textuais ou paratextuais.

Hipertexto seria, para Genette, todo texto derivado de um outro texto – que lhe é anterior –, por transformação simples, direta, ou, de forma indireta, por imitação. Engloba uma classe de gêneros, como a paródia, o pastiche, as fantasias [travestissement] (tudo é transformação: certas epopéias, certos romances, certas tragédias, certas comédias, certos poemas líricos, ao mesmo tempo, pertencem a seu gênero textual e são, também, hipertextos de outros textos já existentes). Muitas vezes, no próprio hipertexto está a marca paratextual que o liga ao hipotexto (veja-se como os títulos dados às muitas versões criadas a partir da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, anunciam desde logo a aproximação entre elas existentes). Essa marca (esteja ela no título ou em outro recurso que aponte para o leitor a relação entre os textos) é um indicativo paratextual que o autor remete a seu leitor.

As várias formas de transtextualidade são aspectos da textualidade. Considere-se a textualidade como a característica que identifica o texto – um texto só existe por sua textualidade, ou seja, pelas características que o tornam um texto. Dessas características, fazem parte os recursos transtextuais. Mesmo transtextuais, os textos podem ser relacionados aos gêneros a que pertencem. Por exemplo, embora seja um recurso transtextual, o prefácio é um gênero reconhecido em si mesmo.

Cabe aqui um aprofundamento nas práticas englobadas no termo hipertextualidade. Genette considera a hipertextualidade como um aspecto universal da literaridade. Afirma que não há obra literária que não evoque, de alguma forma, alguma outra. Nesse sentido, todas as obras seriam hipertextuais. Destaca, no entanto, aquelas que, segundo ele, são massiva, manifesta e explicitamente uma retomada de outras.

A paródia é recurso encontrado com freqüência na literatura. Reside na retomada de um texto, trabalhado com novas e diferentes intenções daquelas com que foi criado por seu autor. Encontramos paródias humorísticas, críticas, poéticas.

Detendo-se na etimologia da palavra, Genette nos faz lembrar que ode é canto, canção e para, aquilo que se desenvolve ao longo de, ao lado de. Logo, a paródia seria um contracanto, uma canção transposta.

Genette destaca três possibilidades de paródias representadas na tradição literária:

1. a aplicação de um texto nobre, modificado ou não, a um diferente assunto, geralmente vulgar;

2. a transposição de um texto nobre para um estilo vulgar;

3. o emprego de um estilo nobre (epopéia) de uma obra singular a um assunto vulgar ou não-heróico.

A forma mais rigorosa de paródia consiste na retomada de um texto conhecido para lhe dar um novo sentido ou mesmo desligá-lo de seu contexto e de seu nível de dignidade. Ela se faz, nesse caso, paródia de umas poucas frases, textos curtos, provérbios, ditos históricos tomados em outro sentido que não o original. Com essas características, funciona elegantemente como um ornamento dentro do texto que a abriga.

Encontram-se paródias que consistem em mudar uma letra em uma palavra; outras trocam uma palavra de um verso; outras ainda, sem qualquer alteração textual, suprimem o sentido de uma citação, ao dar-lhes um novo contexto. Existem aquelas que compõem toda uma obra nos moldes de outra, modificando-lhe o assunto ou o sentido mediante alteração de certas expressões.

Uma outra forma de paródia, que se caracteriza por desenvolver textos de acordo com o gosto e o estilo de autores pouco aceitos, é vista por Genette como imitação estilística com função crítica ou ridicularizante. Essa paródia de aspecto caricatural recebe a denominação específica de pastiche.

Mencionando Proust, Genette afirma que o pastiche é “a crítica em ação”. (p.15)

Genette destaca também uma outra forma de hipertexto – a fantasia [travestissement] burlesca –. Essa fantasia burlesca modifica o estilo sem modificar o assunto, ou seja, embora retome assuntos consagrados, sua forma é vulgar, burlesca, aproximando-se dos gêneros cômicos, ao contrário da paródia que modifica o assunto sem modificar o estilo. Resume o autor: “a paródia modifica o assunto sem modificar o estilo, e isso de duas maneiras possíveis: seja conservando o texto nobre para aplicá-lo o mais literariamente possível a um assunto vulgar (real e atual): é a paródia estrita; seja forjando, por meio da imitação estilística um novo texto nobre para aplicá-lo a um assunto vulgar: é o pastiche herói-cômico”. [9]

Buscando tornar mais exato o emprego dos termos que designam as várias formas de hipertextualidade, Genette propõe duas classificações: uma classificação funcional e uma classificação estrutural.

A primeira delas (classificação funcional) estabelece as funções satírica (incluindo a paródia, a fantasia [travestissement] e a charge) e não-satírica em que se situa o pastiche.

A segunda (classificação estrutural) prende-se à forma de relação hipertextual. Aqui, a paródia e o travestissement são considerados textos que mantêm com seu texto-matriz (hipotexto) uma relação de transformação; sendo a charge e o pastiche vistos como textos de imitação.

Acrescenta Genette que, se a paródia for definida apenas por sua função burlesca, nela não podem ser incluídas obras como o Ulisses de Joyce. Assim, propõe uma terceira forma de classificação das práticas hipertextuais que incluam as transformações e imitações sérias. Para as transformações sérias, propõe o termo transposição, neutro e de grande abrangência. Para as imitações sérias, sugere forgerie. (p.43)

Termina, dessa forma, Genette por estabelecer seis grandes categorias de hipertextos. Nessas categorias, incluem-se todos os textos construídos por transformação de outros textos.

Assim, numa relação de transformação, a paródia está incluída como produção lúdica; a fantasia, como produção satírica; a transposição, como produção séria. Na relação de imitação, o pastiche é considerado como produção lúdica; a charge, como produção satírica; e a forgerie, como produção séria.

Um hipertexto pode ser lido em si mesmo ou em sua relação com o hipotexto. Essa leitura palimpsêstica, um verdadeiro jogo, permite ao leitor o prazer do encontro entre o texto e seus pré-textos.

Acrescente-se aqui a paráfrase[10], que não pode confundir-se com o plágio[11], já que se trata de um exercício de retomada de um texto com o objetivo de reproduzir-lhe as idéias, de explicitá-las, para tomá-las em consideração.


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[1] O uso de escrever-se em pergaminhos fez com que o couro de animais utilizado para a escrita fosse, muitas vezes, reaproveitado, apagando-se a escrita antiga, para, sobre ela, colocar-se a nova escritura. Era o palimpsesto, no qual a nova escritura recobrindo a escritura anterior deixava entrever os traços da primeira. Daí vem a denominação palimpsesto para os textos escritos em cima de outros, retomando-os e revelando-os nessa retomada. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982.

[2] A citação é a utilização de um texto, ou parte dele, dentro de outro texto. Sendo esse texto normalmente de autor renomado, é empregado como recurso ilustrativo ou argumentativo.

[3] Plágio é a apropriação indevida de um texto, ou seja, aquela que não se reporta ao autor e é apresentada como de autoria da pessoa que o utiliza.

[4] A alusão remete a outro texto, citação, adágio, provérbio conhecido. É integrada ao texto como uma rápida menção àquilo que já se conhece, estabelecendo paralelos, aproximações, reforçando uma afirmativa ou argumentação. Pressupõe um conhecimento prévio comum sobre o conteúdo da alusão entre quem lê e quem redige.

[5] O prefácio antecede o texto propriamente dito. Pode ser elaborado pelo próprio autor, pelo editor ou por alguém escolhido por seu conhecimento no assunto.

[6] O posfácio aparece como um esclarecimento colocado à parte ao final de um texto.

[7] As epígrafes são sentenças ou textos que antecedem um escrito ou seus capítulos. Seu conteúdo está diretamente ligado ao que vai ser encontrado a seguir, servindo como chamado ao leitor.

[8] Os sinais de seda que Raquel Vandelli tão bem destaca em sua dissertação, na análise do Dicionário Kazar, do iugoslavo Milorad Pávitch

[9] GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982, p.35.

[10] A paráfrase é a retomada de um texto contado com outras palavras que não as originais, mas sem a intenção de modificá-lo ou dar-lhe diferente abordagem. É retomada pura e simples, com o objetivo de comentário posterior ou de registro que por qualquer razão se faça necessário.

[11] O plágio se caracteriza como a apropriação de um texto ou parte dele, sem citação da fonte ou reconhecimento da autoria.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

De como a escuridão pode surpreender e abrir caminhos

Vivian Rangel

Mersault, protagonista de O estrangeiro, de Alberto Camus, acreditava ser possível passar 100 anos numa prisão, pois, se um homem houvesse vivido um único dia, teria recordações suficientes para não se entediar. Mas, e se esta prisão não fosse uma limitação de espaço e sim o encarceramento na própria memória pela perda da visão? Jorge Luis Borges, James Joyce e João Cabral de Melo Neto foram grandes escritores forçados a enfrentar a cegueira, lidar com a impossibilidade de ler e a necessidade de reinventar o ato de escrever antes feito de palavras, rabiscos e versões em papel. Os três são protagonistas de Histórias de literatura e cegueira, do jovem escritor paulista Julián Fuks.

Ensaio, memórias, conto, intertextualidade e pesquisa jornalística mesclam-se em cada um dos textos semi-ficcionais, impossíveis de serem classificados entre os gêneros literários tradicionais. Para Fuks, os textos definem-se como ensaios narrativos que partem do real - ou do que se chama de real - passam pelo verossímil, o mundo do provável e possível, e só então abraçam a ficção, como recurso último.

Entregue a divagações, Borges é o primeiro a ser abordado imerso numa ausência em tom amarelado e divagando sobre o vermelho e o negro de Stendhal, as cores de que mais sente falta. Não, os cegos não estão imersos no preto absoluto. João Cabral está dormindo no momento em que a chuva "aprisiona um dia ingrato", tão ingrato que um jornalista está prestes a tocar a campainha em busca de uma entrevista. O pequeno Joyce deseja se casar com Eileen, uma protestante, e é imediatamente reprimido por sua mãe. Ela garante: seu pensamento será punido pela visita de uma águia devoradora de olhos, caso não se desculpe.

- Não fiz testes como vendar meus olhos e caminhar ou tentar escrever, a cegueira foi um pretexto, uma maneira de encontrar algo para começar a escrever - explica Fuks.- Vargas Llosa diz que escreve para espantar os fantasmas. Talvez eu precise pegar emprestado fantasmas alheios.

No capítulo sobre Borges, Fuks utilizou-se principalmente de suas conferências e encontros com amigos. Um texto repleto de pensatas borgianas sobre a visão, as palavras e a construção do real, mais estranho que a ficção "que somos nós que fazemos, enquanto a realidade é feita por Deus".

- A perda da visão fez com que Borges se tornasse um mestre da literatura oral em conferências memoráveis, além de produzir mais ensaios e poesia - lembra o escritor. - Se enxergasse, talvez tivesse ficado restrito aos contos fantásticos, e não teria o papel que tem hoje, o do velho sábio, culto, erudito, que sem ler citava de memória trechos literários.

João Cabral ganha prosa mais seca, uma entrevista repleta de pausas e silêncios, e também de versos derradeiros, "em chão de pedra que faz o leitor tropeçar". Versos de quem acreditava estar, no pudor e nas horas intermináveis de procura, a força da poesia.

- João Cabral é um caso à parte, deixou de produzir quando perdeu a visão, à exceção de alguns poemas mais simples e diretos que ele afirma ter escrito para desfazer a capacidade de escrever - destaca Fuks.

O pastiche chega ao ápice na narrativa de trechos da vida e da obra de James Joyce. É quando Fuks sai em busca das epifanias, palavras-valise e estilo inconfundível do irlandês. Ao leitor mais ansioso em descobrir os trechos originais utilizados, vale o artifício de consultar as referências bibliográficas no fim do volume, mas boa parte do divertimento está em se deixar levar pela prosa, reconhecendo o universo joyceano.

- Era impossível para mim escrever sobre Joyce sem emular seu estilo - afirma Fuks. - O reflexo da cegueira de James Joyce em sua obra é talvez o mais polêmico. Sempre me pergunto se ele escreveu de forma tão peculiar porque tinha essa duplicidade em relação à escrita: uma aproximação e ao mesmo tempo um apartamento das palavras. E como ignorar tantas referências à falta da visão, como em Finnegans Wake , em que ele põe a linguagem nas trevas?

Da escuridão imposta pela morte de um sentido, os três escritores apelam para a memória e seus meandros, forçam novos caminhos. Borges tinha uma memória incrível, andava pelas ruas criando e recitando poemas que decorava para ditar à mãe. João Cabral recebia visitas da filha, que lia em voz alta - o que na verdade era um sofrimento, pois o poeta não conseguia organizar o pensamento por meio da audição. Joyce suportou múltiplas cirurgias e fez da reduzida visão necessidade para o encontro da realidade da experiência.

- Escrever é lidar com essa flacidez da memória, tentar recuperar o que se perdeu no tempo, o que a cegueira força ao extremo - define o escritor. - Vivemos no império da visão, com predomínio desse sentido sobre os outros, inclusive no infinito de expressões como à primeira vista, olhar apurado ou a muleta acadêmica vale observar. Quando o escritor pode dar atenção a outros fatores que podem ser cheirados, esquecidos, tocados, o leitor ganha amplitude de sentidos. E talvez seja essa capacidade que determine a diferença entre os grandes escritores e os óbvios.

JB - Idéias 01/12/2007

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A Ambivalência de Homi Bhabha

Interrogando a identidade

Homi K. Bhabha

Comentário: Sabine Mabordi (UBC - University of British Columbia)

Tradução do comentário: Mariana Lustosa (UFRGS)

A Ambivalência de Homi Bhabha

"Se o epistemológico inclina-se a uma 'representação' de seu referente, antes que à performatividade, o enunciativo tende repetidamente a 'reescrever' e a resituar a reivindicação à prioridade cultural e antropológica (Alta/Baixa; Nossa/Deles) no ato de revisão e hibridação das hierarquias sentenciosas estabelecidas, da localidade e das expressões do cultural" (BHABHA, 1985, p.57).

Homi Bhabha, que nasceu na Índia e leciona na Inglaterra e nos Estados Unidos, desenvolveu sua noção de hibridismo nos seus trabalhos sobre o discurso colonial. Em seu texto mais importante sobre o assunto, Signs Taken for Wonders: Questions of Ambivalence and Authority under a Tree Outside Delhi, May 1817 , o autor reconhece influências de Foucault, Derrida, Freud e Fanon, mas não menciona nem por uma vez Bakhtin, de quem o conceito de hibridismo foi claramente emprestado (1). Em um artigo publicado oito anos antes, Culture's in Between, Bhabha ocasionalmente revela estar ciente do hibridismo na obra de Bakhtin e nos permite inferir, indiretamente, a influência deste no seu desenvolvimento do conceito (BHABHA, 1993, p.212).

O hibridismo de Bhabha parece implicar os dois: uma condição e um processo. É uma condição do discurso colonial na sua enunciação, dentro da qual a autoridade colonial/cultural é construída em situações de confronto político entre posições de poderes desiguais. É também um processo de negociação cultural (como posteriormente García Canclini demonstra), ou, no que poderia ser entendido como um lapso foucaultiano e freudiano/lacaniano, "um modo de apropriação e de resistência, do pré-determinado ao desejado" (BHABHA, 1994, p.120).

Para Bhabha, o hibridismo é uma ameaça à autoridade cultural e colonial, subvertendo o conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante através da ambivalência criada pela negação, variação, repetição e deslocamento. É também uma ameaça porque é imprevisível. Mas o autor adverte, em trabalhos posteriores, que não é nem o Eu, nem o Outro. Bhabha repete numerosas vezes essa descrição intrigante do hibridismo: "é menos que um, e o dobro", provavelmente referindo-se às suas características discursivas como parciais, mas reafirmando-as no sentido bakhtiniano. Esses traços do hibridismo fazem com que este transgrida todo o projeto do discurso dominante e exija o reconhecimento da diferença, questionando e deslocando "o valor do símbolo para o sinal" do discurso autoritário (BHABHA, 1994, p.113).

Provavelmente a característica mais marcante e problemática do hibridismo de Bhabha é a sua ambivalência, a qual não permite que o mesmo solucione tensões entre culturas, assim como o híbrido bakhtiniano não soluciona o conflito entre as duas consciências no enunciado. O conceito de ambivalência permeia os escritos teóricos de Bhabha, e sua análise é baseada numa clara distinção entre a diversidade cultural - definida como uma categoria - e a diferença cultural - definida como um processo.

"Se a diversidade cultural é uma categoria da ética, da estética ou da etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual enunciados sobre ou em uma cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 1994, p.34).

Tendo Bhabha estabelecido que está interessado no conceito de diferença cultural, e não no de diversidade, ele sugere que "se focalize o problema da ambivalência da autoridade cultural" (BHABHA, 1994, p.34). Essa ambivalência, ou pensamento ambíguo,
"... é tornada viável somente através da estratégia de contradição ... a qual requer uma teoria da 'hibridação' de discurso e de poder que é ignorada por teóricos que se ocupam da luta por 'poder', mas o fazem simplesmente como os puristas da diferença” (BHABHA, 1994, p.111). (2)

Numa discussão importante sobre as contribuições de Bhabha para a teoria crítica, na qual ele analisa a ambivalência da crítica indiana, Robert Young pergunta, com o seu inimitável senso de humor, se ela está "sendo usada como um modelo, ou ... uma forma de imitação, hibridismo, duplicação fantasmagórica e imaterial que personifica a duplicidade do próprio nome de Bhabha?" (YOUNG, p.156).

O próprio Young oferece uma crítica ambivalente do trabalho de Bhabha. Ele o acusa de mover conceitos como o fetichismo para a imitação, hibridação e paranóia, mas, em seguida, parece elogiá-lo por não permitir a retificação desses conceitos. Young acredita que Bhabha é negligente ao indicar tanto as fontes teóricas desses termos (assim como o próprio elo teórico entre eles) quanto as culturas aos quais eles se aplicam. Há um progresso político e teórico no trabalho de Bhabha, sugere Young, com a introdução da hibridação - um avanço no conceito de imitação -, uma vez que esta "permite uma forma de subversão ... que transforma as condições discursivas de domínio no princípio da intervenção" (YOUNG, p.112).

Mas se a hibridação tornou-se agora o ponto de resistência, Young prevê a volta do problema da intervenção individual enquanto essência estática, a qual Bhabha criticou na obra de Edward Said, Orientalism . O conceito "imitação" sugerido por Bhabha substituiu o de intervenção, transformando-o em ambivalente, incerto, impossível de se definir. Entretanto, agora que Bhabha introduz o "nós" com a asserção da resistência ("Então as palavras do mestre transformam-se no lugar da hibridação - o sinal subordinado e guerreiro do nativo -, então poderemos não só ler as entrelinhas mas também buscar mudar a freqüentemente coerciva realidade que elas claramente contêm) (BHABHA, 1994, p.121). Young questiona o "quem" e o "quando" do "nós". Quando a resistência tornou-se articulada, pergunta ele: naquele momento, ou mais tarde, quando o crítico lê o texto colonial? Há consciência por parte dos colonizados quanto ao potencial subversivo da hibridação e, portanto, habilidade para ele/ela agir, ou apenas o crítico pode percebê-lo e avaliá-lo? Young mostra que prefere a ambivalência anterior da intervenção na imitação àquilo a que ele se refere como este "topos politicamente mais convencional", o qual ele atribui à hibridação (YOUNG, p.149). O autor critica a hibridação porque encontra contradições na sua teorização, já que a ambivalência é tanto a condição como o efeito da situação colonial.

Além disso, Young sugere que, por implicação, tanto o conhecimento do colonizador quanto o do colonizado são "puros", e, entretanto, isso contradiz a ambivalência encontrada na condição do colonial. Ele presume que essas dificuldades acarretaram o desaparecimento da hibridação no trabalho de Bhabha, concluindo com uma aparente aprovação da ambivalência de Bhabha, não só como uma característica da condição colonial - a qual produz uma negação da autoridade colonial -, como também como um princípio teorizante, que desestabiliza e rejeita a autoridade e a historicidade do discurso ocidental hegemônico. Seja como um tributo, como sua própria estratégia de subversão, ou como o resultado da complexidade e/ou confusão na obra de Bhabha, Young consegue ser tão ambivalente quanto o objeto ambivalente de sua crítica.

Em 1993, três anos após a publicação de White Myhtologies , Bhabha escreveu um pequeno artigo para a revista Artforum , onde seu conceito de hibridismo - o qual Young pensou estar morto em função das dificuldades teóricas não resolvidas - reapareceu numa discussão sobre multiculturalismo. Nesse artigo, Bhabha resume a elaboração do híbrido de Bakhtin e, então, a sua própria noção de hibridismo. Numa aparente resposta ao questionamento de Young quanto à especificidade do texto colonial, a autoridade colonial aqui foi substituída pela "autoridade cultural" como um todo (BHABHA, 1993, p.212). Entretanto, com essa substituição, Bhabha cai numa generalização ainda maior. Esta mudança gera uma preocupação que é compartilhada por Ania Loomba - uma crítica indiana que leciona neste mesmo país - e Young: a elaboração de uma teoria geral do colonialismo baseada em eventos específicos (3). Loomba adverte que "o hibridismo da enunciação expande-se até se tornar a característica definitiva de toda (a ênfase é minha) autoridade colonial; em qualquer lugar, a qualquer hora" (LOOMBA, p.309).

No mesmo parágrafo dedicado ao hibridismo, Bhabha toca aparentemente, mais uma vez, em outro importante aspecto do questionamento crítico de Young: estratégia e intervenção. Ele define hibridação como uma estratégia de negociação (discursiva). Mas esta nem aparece diferente de descrições prévias, nem mostra sinais mais claros de eficiência. Quanto às intervenções, estas são criadas a partir daquele processo de negociação e caracterizadas como intervenções espaçadas, "as quais encontram sua voz numa dialética que não busca supremacia ou soberania cultural" (BHABHA, 1993, p.212) (4). Resta saber se esta caracterização elimina qualquer essencialismo possível e restitui a ambivalência à intervenção, e se acaba com quaisquer dúvidas que Young pode ter sobre o assunto.

Se a linguagem de Bakhtin é, por algumas vezes, pesada e confusa, o discurso de Homi Bhabha é extraordinariamente difícil e enganoso (5). Enquanto Arik Dirlik refere-se a Bhabha como "um mestre da mistificação política e da ofuscação teórica," (6) Robert Young sugere que Bhabha produz "desorientação e confusão", provavelmente "imitando" o discurso colonial como sua própria estratégia de negação da sua autoridade e a do próprio autor (7).

REFERÊNCIAS:

*BHABHA, Homi. "Signs Taken for Wonders: Questions of Ambivalence and Authority under a Tree Outside Delhi , May 1817", in Critical Inquiry , 12, 1985.

____ . "Culture's in Between". Artforum , September, 1993: 167-214.

____ . The Location of Culture . London : Routledge, 1994.

* LOOMBA, Ania. "Overworlding the ' Third World '." Patrick Willimas and Laura Chrisman eds. Colonial Discourse and Post-Colonial Theory . New York : Columbia University Press, 1994: 305-323.

* YOUNG, Robert. White Mythologies: Writing History and the West . London: Routledge, 1990.


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(1)Esse artigo apareceu primeiramente na publicação da Universidade de Chicago, Critical Inquiry , em 1985, sendo reproduzido com algumas mudanças no livro The Location of Culture , de Bhabha, publicado em 1994. Irei, portanto, retirar citações do livro e não do artigo prévio.

(2)É interessante notar que aqui Bhabha substituiu o objeto de seu ataque, os "pós-estruturalistas ocidentais" do seu artigo original de 1985, pela palavra mais generalizada "teóricos".

(3)Ver o artigo Overworlding the ' Third World ' , de Ania Loomba.

(4)A introdução da palavra "dialética", aqui, é intrigante. Para Bakhtin, como James Clifford salienta em The Predicament of Culture (p.43): "dialógico ... não é reduzível de dialética". Estará Bhabha utilizando os termos alternadamente? Ou o termo "hibridismo" estará sendo usado para solucionar diferenças?

(5)Numa conferência, em 1990, ele respondeu a um comentário vindo da platéia sobre a "repulsiva dificuldade" de sua palestra: "Eu não posso me desculpar pelo fato de que você achou meu artigo completamente impenetrável. Eu o escrevi com plena consciência: eu tinha um problema e o resolvi. E se algumas pessoas entenderam o que estou dizendo, eu fico feliz". Em Cultural Studies , 1992, p.67.

(6)Ver The Postcolonial Aura: Third World Criticism in the Age of Global Capitalism (1994, p.333, n.6). Ania Loomba é mais específica na sua crítica à mistificação de Bhabha. Ela salienta, além de outros aspectos questionáveis de seu trabalho, que: "... a incerteza de sua linguagem e de sua construção ... está em si aberta à crítica ao trabalho que intenciona ser político e intervencionista" (1994a, p.308).

(7)Ver White Mythologies (1990, p.156).

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Uma geografia da diferença

por Roberto Machado - Revista Cult 108

Na base do pensamento de Gilles Deleuze está a idéia de que a Filosofia é produção ou, mais propriamente, criação de pensamento, tal como são as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não. Mas se o pensamento não é privilégio da Filosofia, isto é, se filósofos, cientistas e artistas são, antes de tudo, pensadores, isso não quer dizer que Deleuze assimile os diferentes domínios de pensamento. A distinção das formas de criação que caracterizam os vários saberes foi formulada de modo sistemático em O que é a filosofia?, quando ele assinalou o fundamental da diferença constitutiva do saber filosófico: enquanto a ciência cria funções e a arte cria agregados sensíveis, a Filosofia cria conceitos.

Partindo da posição de que, para Deleuze, fazer filosofia é criar conceitos, podemos perguntar: como são criados os conceitos de sua filosofia? Procurando responder a essa questão cheguei à seguinte conclusão: sua filosofia é um sistema de relações entre conceitos oriundos da própria Filosofia, isto é, de filósofos por ele privilegiados em suas leituras, e conceitos suscitados pela relação entre conceitos filosóficos e elementos não-conceituais - funções e sensações - provenientes de domínios exteriores à Filosofia.

A característica mais elementar da relação entre a filosofia de Deleuze e os pensamentos filosóficos, científicos e artísticos é o fato de ela se propor mais como uma geografia do que como uma história, isto é, o fato de ela considerar o pensamento não por intermédio de uma dimensão histórica linear e progressiva, mas privilegiando a constituição de espaços, de tipos não apenas heterogêneos, mas sobretudo antagônicos.

Assim, a relação entre criação de conceitos e tradição filosófica, como a realiza Deleuze, consiste em erigir o modelo, ou mais propriamente, o processo de pensamento de determinados filósofos como condição de seu modo singular de filosofar. Isto significa construir um "espaço ideal" em que seja possível criar, a partir de filósofos passíveis de entrar em relação, em comunicação, em ressonância em um mesmo espaço, conceitos que expressem ou tornem possível um novo pensamento. Assim, ao privilegiar determinados filósofos para constituir sua própria filosofia, o objetivo de Deleuze é sempre contrapor um espaço do pensamento sem imagem, "intempestivo", que é pluralista, heterodoxo, ontológico, ético, trágico, ao espaço da imagem do pensamento que é dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional... O espaço do pensamento sem imagem é o espaço da diferença; o da imagem do pensamento é o da representação.

Neste sentido, Deleuze é um curioso historiador da Filosofia que ousou pensar filosoficamente em seu próprio nome ou que encontrou no próprio discurso filosófico conceitos como síntese disjuntiva, diferenciador da diferença, gênese, intensidade... A partir dos quais foi possível estruturar sua filosofia como um pensamento diferencial.

A importância dessa temática explica porque, por um lado, alguns filósofos estão em geral excluídos do espaço em que ele situa seu pensamento. Este é o caso, sobretudo, de Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, os grandes representantes da imagem da Filosofia como filosofia da representação, isto é, como aquela que reduz a diferença à identidade. Isso se nota, por exemplo, quando Deleuze analisa a origem da representação em Platão, defendendo que a dualidade entre mundo sensível e mundo inteligível existe em função da distinção entre a boa cópia, a cópia bem- fundada, o "ícone", que é uma imagem dotada de semelhança, e a má cópia, a cópia que implica uma perversão, o "simulacro-fantasma", que é uma imagem sem semelhança. Se Platão é um filósofo da representação é porque sua postura metafísica privilegia a cópia-ícone como imagem fundada pela semelhança interna com a identidade superior da idéia.

Por outro lado, a temática expressa por conceitos como síntese disjuntiva, diferenciador da diferença, gênese, intensidade... Explica a aliança de Deleuze com filósofos que, em maior ou menor grau, estabelecem a relação entre termos, ou entre séries, como a de uma diferença que reúne imediatamente o que distingue. Daí, para dar o exemplo de um de seus primeiros livros, o privilégio que ele concede a Bergson e ao método que decompõe um misto impuro, empírico, espaciotemporal, em dois tipos de multiplicidade qualitativamente diferentes - a duração e o espaço considerados como o virtual e o atual -, mas também os relaciona geneticamente, mostrando que esse dualismo é proveniente da diferenciação ou da atualização dessa virtualidade, segundo linhas divergentes que diferem por natureza. Daí também, para dar o exemplo de um de seus últimos livros, porque, partindo da definição do barroco como dobra infinita, incomensurável, Deleuze valoriza dois princípios básicos da filosofia de Leibniz: a distinção de níveis ou séries, as mônadas consideradas como dobras da alma e os corpos considerados como dobras materiais extrínsecas; mas também a existência de uma relação interna complexa (as dobras do mundo), elemento genético diferenciador da diferença, que articula os dois níveis da alma e do corpo.

Poderia dar ainda os exemplos de Hume, Nietzsche, Espinosa, Foucault etc. Prefiro, no entanto, salientar que, para compreender o pensamento de Deleuze em toda sua amplitude e relevância não se pode ignorar seus importantes estudos sobre domínios exteriores à Filosofia: sobretudo as artes e a literatura. Na verdade, a relação entre saberes sempre foi muito intensa no procedimento filosófico de Deleuze e não é, de modo algum, lateral ou circunstancial, pois o objetivo principal de sua filosofia é definir o que seja pensar, e o pensamento não é exclusividade da Filosofia.

Assim, vendo na Filosofia o domínio do conceito, Deleuze irá elaborar sua filosofia não só incorporando conceitos provenientes de outras filosofias, que situa no espaço da diferença, mas também criando conceitos a partir daquilo que foi pensado, com seus próprios elementos - funções científicas, sensações artísticas - em outros domínios. Deste modo, ao pensar a literatura e as artes, Deleuze está realizando seu projeto filosófico de constituição de uma filosofia da diferença, sem que haja uma diferença essencial entre esses estudos e os estudos dos textos tecnicamente filosóficos.

É assim, por exemplo, que ele interpreta Em busca do tempo perdido, de Proust, como uma busca inconsciente e involuntária da verdade, mostrando que ela não só constitui um sistema de pensamento, mas também se contrapõe ao pensamento da identidade e da representação. O que faz do livro de Proust, e, sobretudo, da correlação que ele estabelece entre o signo e o sentido, um instrumento para a formulação da filosofia da diferença. Pois a importância que Deleuze dá aos signos - e depois dará à intensidade - deve-se a que são eles que forçam o pensamento a pensar em seu exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental, fazendo-o buscar o sentido, ou a essência considerada como diferença última e absoluta.

É assim também que ele distingue três elementos básicos na pintura de Bacon, três elementos pictóricos simultâneos, sempre presentes em seus quadros: o plano monocromático, o contorno e a imagem. E o que se nota de mais importante nesse livro sobre a lógica da sensação, do ponto de vista do exercício do pensamento de um pintor como Bacon, é o seguinte: se o grande plano monocromático é a estrutura material espacializante e a imagem é a figura, a forma, por sua vez o contorno redondo é o limite entre os dois outros elementos em tensão, limite que assegura a comunicação entre eles de tal modo que a figura, com suas deformações, como corpo intenso, intensivo, torna visíveis forças invisíveis que povoam o mundo e das quais o plano dá testemunho.

Mas é assim também que ele retoma esse esquema interpretativo, generalizando-o, ao explicar, em O que é a filosofia?, o pensamento artístico pela relação entre "compostos de sensação", ou compostos de perceptos e afetos, em coexistência e complementariedade com um "plano de consistência", relação que se deve a "figuras estéticas" que são a condição sob a qual as artes produzem sensações - perceptos e afetos - sobre o plano de composição.

Acredito assim que é possível detectar nas leituras realizadas por Deleuze um procedimento filosófico que privilegia pensadores e os considera aliados a partir da relação diferencial que eles estabelecem entre termos ou séries. Mas isso não significa que essas leituras reduzam filósofos, cientistas e artistas ao mesmo, no sentido de encontrar uma identidade que os assimile. Pois não só a diferença entre esses pensadores persiste, cada um conservando sua singularidade, sua individualidade própria, como também Deleuze não se identifica com nenhum deles totalmente, nem mesmo com Nietzsche, sua inspiração fundamental, aquele que atingiu o ápice de uma filosofia da diferença. Sua leitura de Nietzsche é a criação de mais uma máscara e, neste sentido, não só a leitura de outros filósofos ou não-filósofos incide sobre o seu Nietzsche, como também a dos comentadores, que, de um modo geral, têm uma importância muito grande nas interpretações deleuzianas. Como é o caso de Klossowski e Blanchot no que diz respeito a Nietzsche.

Por outro lado, o seu projeto de explicitar relações diferenciais em todos os pensadores que privilegiou pode ser considerado o invariante nas variações dos autores e dos temas por ele estudados, isto é, o diferencial de sua própria filosofia. Neste sentido, a filosofia de Deleuze me parece uma suma de pensamentos que se relacionam por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença. Ela incorpora seus conceitos, veste sua linguagem, mas, ao proceder à repetição como uma modificação e uma inflexão no sentido de sua própria maneira de pôr a questão do exercício diferencial do pensamento, também está criando a diferença.

Roberto Machado é doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor, entre outros, de Zaratustra, tragédia nietzschiana (Zahar, 1997), Nietzsche e a verdade (Graal, 1999), Foucault, a filosofia e a literatura (Zahar, 2000), e do recente O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Zahar, 2006)

Uma HQ inusitada (2)


Vencedor do Eisner-07 narra relação de lésbica com pai, gay enrustido
EDUARDO SIMÕES
da Folha de S.Paulo - 29/11/2007
O enredo do álbum de quadrinhos "Fun Home" (lar da diversão), que acaba de sair no Brasil, soa como o da série de TV "A Sete Palmos": uma família "disfuncional", espécie de "A Família Addams" com filho gay, vive dentro de uma casa que funciona como funerária.

Mas o livro autobiográfico da quadrinista norte-americana Alison Bechdel, 47, vencedor do Eisner Award de Não-Ficção 2007, o mais importante das HQs, é mais insólito.

"Fun Home" (o nome também é um jogo de palavra com funeral home, casa funerária em inglês) redesenha a relação de Alison, lésbica, com o pai, Bruce, um homossexual enrustido, que vive numa cidade provinciana. Bruce ora sublima seu desejo (e afetação) na decoração quase museológica da mórbida casa. Ora realiza-o, nos caracóis do musculoso Roy, o baby-sitter de seus filhos.

A barra às vezes pesa, mas Bechdel colore sua narrativa, cheia de flashbacks e em parte baseada nos obsessivos diários que escreveu na infância e adolescência, com diversos alívios cômicos.

"Uma das partes mais engraçadas do livro é a cena em que meu pai tenta me levar a um bar gay e o leão-de-chácara nos barra porque eu sou menor. É uma situação absurda e também um tanto trágica. O humor e a tristeza estão sempre entrelaçados para mim. Daí o subtítulo "uma tragicomédia em família'", escreve a quadrinista à Folha, por e-mail.

Bechdel diz que sua família se divertia muito. Não apesar da disfunção, da anormalidade, mas "somada a ela, em paralelo". "Acho que o título do livro demonstra muito bem o estilo de humor levemente tolo e mórbido da minha família. Nós realmente nos referíamos à nossa casa funerária como o "lar da diversão'", diz Bechdel.

Coadjuvante

Os Bechdel, no entanto, acharam que a moça estava louca quando resolveu esquadrinhar os bastidores de seu lar. A mãe chegou a sugerir que ela fizesse algo fictício. Mas a quadrinista não abriu mão até de dar nome aos bois. No livro, Bechdel recorda como, pouco depois de revelar à família que era gay, recebeu um telefonema em que sua mãe disparou: o pai teve casos com homens.

Perplexa, sua personagem pondera: "Eu fora eclipsada, rebaixada de protagonista do meu drama pessoal a alívio cômico da tragédia dos meus pais".

Nem mesmo as suspeitas circunstâncias em que seu pai morre, aos 44 anos, atropelado por um caminhão, saem a salvo do humor peculiar de Bechdel.

No funeral de Bruce em "Fun Home", um senhor tenta consolá-la, dizendo que "a vontade divina às vezes é um mistério". Como paira a suspeita do suicídio, Bechdel pensa em responder: "Não é nenhum mistério!
Ele se matou porque era um veado maníaco-depressivo no armário que não agüentou mais um segundo nessa cidade pequena de gente obtusa".

Sexo

A Alison saindo do armário se surpreende com afirmações de lésbicas iniciadas, na linha "feminismo é a teoria, lesbianismo é a prática", e acaba se envolvendo com Joan, uma poeta "matriarquista". Salvo uma ou outra página com pele e pêlo à vista, a quadrinista é econômica nas "cenas eróticas". Diz que sua vida não foi "nenhuma orgia ininterrupta". E que a proporção das passagens sexuais explícitas, em relação às outras, é representativa da maioria da vida das pessoas.

"Sexo é importante, certamente, mas passamos muito mais tempo fazendo outras coisas." A estrutura de "Fun Home" é quase uma homenagem ao berço literário, e não à toa recheado de referências gays, de Bechdel. Ambos professores de inglês, seus pais aparecem no livro lendo um monte de clássicos da literatura. Os capítulos aludem a obras de Oscar Wilde ("O Marido Ideal"), Marcel Proust ("À Sombra das Raparigas em Flor"), Albert Camus ("A Morte Feliz") etc.

E Alison até costura histórias pessoais daqueles autores, como a de Oscar Wilde, com a do pai. Tal qual o escritor britânico, Bruce vai parar num tribunal por conta de uma conduta criminosa com um menor de idade. Bechdel diz que demorou para se dar conta, no entanto, de que os livros estavam formando a estrutura do álbum.

"Eu estava tentando escrever sobre o meu pai, mas não sabia muito sobre ele. Filhos têm uma perspectiva distorcida dos seus pais. A proximidade atrapalha que se enxergue claramente. Então comecei a buscar pistas da personalidade do meu pai nestes livros que ele amava.

E aos poucos eles começaram a rastejar para dentro da minha história", diz Bechdel. "Primeiro, como citações. Mas aí comecei a encontrar paralelos nas vidas dos autores e, por fim, num certo ponto, percebi que estava construindo cada capítulo em torno de um certo livro ou autor."

Bechdel não se livrou de psicanalismos de botequim. Justamente porque seus pais eram apaixonados por literatura, ela diz que passou quase toda a vida adulta negando ser escritora. Até optar pelos quadrinhos, que eram "um meio de expressão inferior". "E, mais importante, um meio para o qual meus pais não tinham critérios estéticos. Por isso, eles não podiam me julgar. É um pouco irônico que os quadrinhos estejam finalmente sendo levados a sério, pois é justamente sua natureza não-literária, popular, que inicialmente me atraiu."

Blog

Alison Bechdel mantém o blog "Dykes to Watch Out For" (sapatas com as quais se deve tomar cuidado), mesmo nome de tirinhas que desenha desde 1983, já publicadas em livro. O endereço: www.dykestowatchoutfor.com.

FUN HOME - UMA TRAGICOMÉDIA EM FAMÍLIA
Autora: Alison Bechdel
Tradução: André Conti
Editora: Conrad
Quanto: R$ 42,90 (234 págs.)

Uma HQ inusitada (1)


Pai e filha colocam a conversa em dia na hq autobiográfica "Fun home"

Revista Time elege HQ como livro do ano
Eis a justificativa: "O improvável sucesso literário de 2006 é uma atordoante autobiografia sobre uma garota crescendo em uma pequena cidade com seu enigmático e perfeccionista pai e lentamente percebendo que a) ela é gay e b) ele também é. Oh, e é uma história em quadrinhos em que o texto empolgantemente inteligente de Bechdel casa com desenhos eloqüentes. Esqueça gênero e orientação sexual, esta é uma obra-prima sobre duas pessoas que vivem na mesma casa, mas em mundos diferentes, e suas misteriosas obrigações um com o outro."
A vitória de Bechdel a coloca ao lado de grandes autores já premiados de forma literária por seus quadrinhos como Art Spiegelman com o Pulitzer por "Maus" em 1992, Chris Ware e seu Guardian First Book Award de 2001 para "Jimmy Corrigan e Alan Moore com "Watchmen" na lista da mesma revista Time dos cem melhores romances do século XX. Curioso é que "Fun home" e a obra-prima "Blankets", de Craig Thompson, envolveram-se em uma polêmica este ano: ambos foram taxados de pornográficos por um dos membros do conselho da biblioteca pública de Marshall, no estado americano do Missouri, e, depois de muita discussão, retirados do acervo até segunda ordem.
Telio Navega - 29/12/2006
Gibizada - O Globo

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Alguma Prosa

Alguma Prosa faz um balanço da ficção brasileira de hoje. Jovens críticos analisam jovens autores. Dezesseis críticos, dezesseis autores. E o resultado é interessante, principalmente se pensarmos na peculiaridade do atual cenário literário brasileiro.

Porque o Brasil vive um momento que pode ser considerado bom – na produção ficcional, claro, porque no resto... Mas um “bom” que merece relativização. O que é bom na literatura atual não é necessariamente o que a crítica jornalística ou a publicidade dos grupelhos influentes alardeia como tal. Ao contrário: faz tempo que a maior parte de nossos suplementos culturais se tornou extensão e caixa de ressonância dos mecanismos de divulgação das grandes editoras. Já a academia, do alto de seu paquidérmico Olimpo, quase sempre demora demais para avaliar a escrita presente.

Por isso, o livro organizado por Giovanna Dealtry, Masé Lemos e Stefania Chiarelli é importante: ele assegura uma abordagem ampla, que reúne autores desiguais, mas que, de alguma forma, têm presença na cena literária brasileira de hoje. E, principalmente, os textos acham o tom certo para falar com o leitor: nem a superficialidade da abordagem às pressas, nem o hermético jargão universitário. Os dezesseis críticos vêm da academia, mas sabem da restrita capacidade de comunicação do texto acadêmico e conseguem contorná-la.

Claro que o leitor sente falta de alguns autores: Ricardo Lisias, Adriana Lunardi e Miguel Sanches Neto – três de nossos melhores ficcionistas – não estão lá. E sempre é possível questionar a presença de outros autores, menos expressivos (literariamente), embora cercados de atenção midiática – casos óbvios são André Sant’Anna e Marcelino Freire. Mas o título da coletânea já explica: Alguma Prosa, não toda. E o critério de seleção, não de todo arbitrário, respeita a especialidade e o objeto de pesquisa direta ou aproximada dos críticos. Nada, portanto, a reclamar.

Interessante, sobretudo, é notarmos como algumas matrizes fortes da ficção brasileira, derivadas dos anos 1970, não são mais hegemônicas. A influência aterradora da ficção de Ignacio Loyola Brandão ou Rubem Fonseca, expressa em vários dos autores analisados, se dilui no confronto com a prosa fascinante de Cíntia Moscovich, abordada num bonito ensaio de Virgínia Leal, na tensão entre ficção e realidade de Bernardo Carvalho (bem estudado por Celiza Soares) ou na mitologia peculiar da escrita incomparável de Milton Hatoum, cuja “biblioteca” é analisada por Stefania Chiarelli, por meio de um método “pigliano” de estudo das leituras e dos leitores. Também chamam atenção os textos sobre Amílcar Bettega Barbosa (por Masé Lemos), Luiz Ruffato (por Giovanna Dealtry), ou sobre o Budapeste, de Chico Buarque (por Alexandre Faria).

O resultado que Alguma Prosa oferece é o de uma literatura bastante plural, composta por variadas vertentes. É isso que é “bom” nela. Há altos e baixos, claro, entre os autores analisados, mas a boa qualidade é unânime nos estudos críticos da coletânea. Diante da escassa bibliografia sobre a maioria das obras enfocadas e dada a amplidão de sua lente, Alguma Prosa é um necessário balanço da ficção brasileira atual.

Escrito por Júlio Pimentel Pinto

Só o aforismo, a paródia e o paradoxo nos unem


Uma das cenas iniciais do filme The Edukators (2004)

Por Silvio Mieli - http://www.imediata.com/devir/aforismo/index.html
No filme The Edukators (2004), dirigido por Hans Weingartner, há um ritual que se repete. Dois jovens ativistas escolhem casas da alta burguesia berlinense e, graças ao bloqueio dos aparatos de vigilância, invadem as mansões, mudam tudo de lugar e deixam uma mensagem grafitada: "os dias de fartura estão chegando ao fim; assinado: edukators". Em seguida, partem sem nada levar. Não se trata de uma ameaça ou uma revolta contra o sistema. A dupla de "educadores", Jan e Peter, propõe uma pedagogia baseada na construção de um contra-senso, de um absurdo, de um disparate. A ação é clara: criar uma instabilidade dos sujeitos e dos objetos. O mundo do bom-senso e do senso comum, expresso na ordem e no gosto das casas burguesas abastadas, uma vez revirado pelo avesso, se torna instável e estranho (aparelhos de som na geladeira, porcelanas chinesas no vaso sanitário, móveis empilhados, o sofá boiando na piscina…).

O ato de invadir propriedades particulares é considerado ilegal. Mas no contexto de um estado de exceção, quando os direitos estão suspensos no ar, o que fazer? Embaralhar os códigos. Criar um pensamento que passe por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as (Deleuze, 1985, p. 59). "A contestação hoje ficou um pouco mais complicada", diz Jan à amiga Jule num dos diálogos do filme. Posteriormente, através da intervenção da própria Jule, emerge um choque de gerações inevitável. The Edukators coloca frente a frente a geração 68 e os ativistas do novo milênio.

Nômades, libertários e anarquistas, de ontem e de hoje, têm em comum o fato de instalarem o paradoxo no pensamento e na vida política. O paradoxo tem uma função desautomatizadora da percepção do mundo, na medida em que transforma a permanência em puro devir. E se por um lado é tão difícil tratar historicamente os movimentos paradoxais, ao mesmo tempo podemos aproximar muitos teóricos que nunca se definiram anarquistas (Nietzsche, Foucault, Deleuze) da "máquina de guerra" anárquica contra o poder.

Inspirado pela pedagogia dos Edukators, pretende-se aqui apenas e tão somente mapear algumas reverberações paradoxais de matriz nietzscheana nas manifestações contemporâneas de midiativismo, termo assim definido por Matteo Pasquinelli:

O midiativismo não é só um fenômeno social e político, representa um laboratório de inovações e experimentações que veremos surgir na sociedade do futuro. Trata-se de um protótipo ou de uma oficina de uma nova cultura e de uma nova mentalidade: dos fóruns sociais ao hacktivismo, do orçamento participativo à economia solidária, da desobediência social à intervenção pacífica nos territórios da guerra global. É uma nova atitude, um modelo cultural, uma forma mental que consideramos central no humanismo do mundo que está por vir. Um protótipo mental que ainda é embrionário, mas carregado de potencialidades radicalmente inovadoras, que já arranharam a superfície das pirâmides imperiais do poder, dos meios de comunicação, da economia…(Pasquinelli, 2002, p. 12)

Comecemos por uma pista fornecida por Michel Foucault, em 1973, numa inusitada entrevista concedida à Revista Manchete. Foucault, em sua segunda e última visita ao Brasil, autodefinia-se um jornalista. "O que me interessa é a atualidade, o que se passa em nosso redor, o que somos, o que acontece no mundo" (Leite, 1973, p.147), declarou. Em seguida, arrematou:

"A filosofia, até Nietzsche, tinha como razão de ser a eternidade. O primeiro filósofo-jornalista foi Nietzsche. Ele introduziu o hoje no campo da filosofia. Antes, o filósofo conhecia o tempo e a eternidade. Mas Nietzsche tinha uma obsessão pela atualidade. Penso que o futuro somos nós que fazemos. O futuro é a maneira como reagimos ao que se passa, é a maneira como transformamos em verdade um movimento, uma dúvida. Se nós quisermos ser mestres do nosso futuro, devemos colocar fundamentalmente a questão do hoje. Por isso, para mim, a filosofia é uma espécie de jornalismo radical". (Leite, 1973, p.147)

Ora, o projeto mais geral de Nietzsche, ensina-nos Gilles Deleuze, consiste em introduzir no universo filosófico os conceitos de sentido (a relação de alguma coisa para com a força que dela se apodera) e valor (a hierarquia de forças que se exprimem no objeto). É como se o "hoje" e a "atualidade" de que nos fala Foucault na citação acima passassem a ganhar um novo sentido e um renovado valor (ou transvalor), que só podem ser entendidos diante de uma crítica radical do jogo de forças contemporâneas. Uma filosofia, conforme Nietzsche dizia, realizada a "marteladas". Mas que tipo de jornalismo radical, ao mesmo tempo crítico e criativo, despontaria a partir das marteladas de Nietzsche?

Imediatismo

Posto que não se pode falar em jornalismo sem aludir a uma linguagem subjacente, trata-se de buscar em Nietzsche a novidade discursiva, uma nova narrativa, capaz de iluminar "a aurora de uma contracultura" (Deleuze, 1985, p.57) e de uma contrafilosofia. É exatamente isso que o filósofo Gilles Deleuze aprofunda na sua fala "Pensamento nômade", no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle (Normandia), durante o colóquio "Nietzsche hoje?", em julho de 1972.

Na tradição filosófica, a relação com o exterior sempre foi mediada e dissolvida numa interioridade (a alma, a consciência, a essência ou o conceito). Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escritura, sobre uma relação imediata com o exterior através do aforismo (sentença breve, máxima), da poesia, da paródia, da ironia e do paradoxo.

Miguel Angel de Barrenechea insiste na exaltação enfática que Deleuze faz do estilo nietzscheano:

"… o aforismo é saudado como uma nova forma de escrita, uma fala radical e revolucionária, oposta às construções tradicionais da filosofia. O aforismo, para Deleuze, possui um caráter absolutamente inovador, colocando em xeque todos os meios de expressão anteriores". (Barrenechea,2000,p.105)

Para Gilles Deleuze, conectar o pensamento ao exterior é o que os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política. Não basta falar do exterior para conectar o pensamento diretamente e imediatamente ao exterior. Os textos de Nietzsche são atravessados por um movimento que vem de fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro exterior e, o que é mais importante, abre-se para as pluralidades e diferenças deste exterior. "Friedrich Nietzsche afirmou que o habitat dos grandes problemas é a rua", anotou certa vez o escritor Oswald de Andrade. (Oswald de Andrade, apud Borges).

Este imediatismo Nietzscheano, inspirou, por exemplo, Hakim Bey, o codinome de Peter Lamborn Wilson, anarquista americano estudioso do sufismo (corrente mística do Islã). Bey é o teórico das Zonas Temporárias Autônomas, que seriam áreas ou dimensões sociais liberadas temporariamente do capitalismo globalitário. O conceito de TAZ, assim como as noções de "imediatismo", tiveram uma influência fundamental nas experiências telemáticas alternativas. Bey chegou a escrever um manifesto do imediatismo. Em seu oitavo item lê-se o seguinte:

Computadores, vídeo, rádio, impressoras, sintetizadores, máquinas de fax, gravadores de fita, fotocopiadoras - essas coisas representam bons brinquendos, mas terríveis vícios. Finalmente, nós percebemos que não podemos alcançar e tocar em ninguém que não esteja presente em carne e osso. Essas mídias podem ser úteis a nossa arte, mas elas não devem nos possuir, tampouco devem permanecer "entre", mediando ou nos separando de nosso "eu" anímico/animal. Nós queremos o controle de nossa mídia, não sermos controlados por ela. Gostaríamos de lembrar de certa arte marcial que acentua a idéia de que o corpo é, em si mesmo, a menos mediada de todas as mídias. (BEY, imediatismo, site Sabotagem/Contra-Cultura)

A atualização do jornalismo radical, imediato e aforístico de Nietzsche, nos compele a vivenciar a comunicação como uma prática ativa, ao invés de sermos meros receptores de informação. Ensina também que os meios de comunicação não são apenas MEIOS, mas campos de batalhas políticas, teatros do imaginário coletivo, espelhos de projeções da estrutura e da construção social (Pasquinelli, 2002, p.15). Não basta olhar para os meios pelo viés instrumental, assim como não é mais possível desconsiderar o fato de que estamos imersos numa midiascape (paisagem midiática).

Jogo de forças

Seguindo as características que Gilles Deleuze dá aos aforismos nietzscheanos, temos uma mapa, não para analisar ou categorizar a contracultura dos anos 60 ou 70 (que tem mais a ver com Freud e Marx), mas para continuar a estudar as ações paradoxais na esfera comunicacional, que emergem na era pós-Seattle (1999), e que parecem estabelecer um diálogo muito rico com Nietzsche.

Ora, num mundo onde, como bem demonstra Toni Negri, não existe mais o fora, Nietzsche sugere tratar o aforismo, esta centelha de linguagem, como um fenômeno à espera de novas forças que venham "subjugá-lo", ou fazê-lo funcionar, ou então fazê-lo explodir (Deleuze, 1985, p.62). Já sabemos que cada inovação estética, tecnológica e comunicacional é imediatamente absorvida pelo sistema. Mas, diante desse mar revolto de forças, é preciso mais do que nunca saber avaliar, pesar, conferir sentidos e significados. Talvez seja exatamente este o método nietzscheano,

"… que faz do texto de Nietzsche não mais alguma coisa a respeito da qual seria preciso se perguntar 'é fascista, é burguês, é revolucionário em si?', mas um campo de exterioridade onde se defrontam forças fascistas, burguesas e revolucionárias. E a resposta conforme ao método seria: encontre a força revolucionária (Quem é além-do-homem?)!". (Deleuze, 1985, p.62).

É preciso considerar este jogo de forças a partir da noção de sentido em Nietzsche:

Nós nunca encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico), se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou que nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência (imagem), nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra o seu sentido numa força atual. A inteira filosofia é uma sintomatologia e uma semiologia. As ciências são um sistema sintomatológico e semiológico. (Deleuze, 1997, p.3)

Leia-se o seguinte aforismo de Nietzsche:

"Não se baseia precisamente a divindade em haver deuses, e não deus?". (Nietzsche, 1977, p. 139).

A interpretação que Deleuze faz do aforismo merece destaque. Para ele, os deuses morreram, mas na verdade eles morreram de rir, quando ouviram um Deus falar que ele era o único. E a morte deste Deus que se dizia o único é, também, um evento plural: a morte de Deus é um acontecimento onde cada sentido é múltiplo. É PORQUE "NIETZSCHE NÃO ACREDITA NOS GRANDES EVENTOS RUIDOSOS, MAS NA PLURALIDADE SILENCIOSA DE SENTIDOS DE CADA EVENTO".

Se ouvirmos outro intérprete afiado de Nietzsche, o filósofo italiano Gianni Vattimo, perceberemos que, Nietzsche e Heidegger nos fizeram ver que devemos transformar a idéia de que a verdade não é objetiva numa disciplina do diálogo. Não existem princípios absolutos, objetivos, mas apenas opiniões, pontos de vista, forças. Se eu sei que a verdade não é definitiva, procuro um acordo, procuro escutar os outros, corrigir-me (Pinto, 2002).

Intensidades (qualidades)


A intensidade não remete nem a significados que seriam como a representação das coisas, nem a significantes que seriam como a representação das palavras. O aforismo é intenso porque nasce do fluxo vital de um indivíduo, concreto, encarnado, de um nome próprio, de um corpo próprio. Ele está presente em todas as manifestações midiativistas que clamam por um processo de reapropriação do corpo, do corpo público, do corpo social.

O aforismo procura intensidades e, por sua vez, intensidades são diferenças. Este conceito próprio da diferença Deleuze buscará mergulhando profundamente nas teorias do Eterno Retorno e da Vontade de Potência de Nietzsche. Pensando em termos de invenção e não de origem do conhecimento, entendendo sua relação de poder com as coisas a conhecer, tirando o papel de protagonista do sujeito do conhecimento, enfim, Nietzsche nos aproxima de uma forma de esquecimento revolucionária para a tradição da filosofia ocidental. É uma quebra desconcertante em relação ao que vinha sendo dogmatizado, ensinado, demonstrado, exemplificado e incutido: de que o conhecimento é semelhante à natureza humana e ao mundo, de que o mundo é perfeito, ordenado e imita o homem, de que tudo é belo, harmônico e tem uma origem que, invariavelmente, culminava no "E o Verbo era Deus..." Mas Nietzsche retira a figura deste Deus único (início e fim de tudo) do mundo, bem como a busca angustiada das origens das coisas; quer esquecer ambos os caminhos, já que representam um fardo pesado demais para se carregar. Seu mundo está além da moral, além do bem e do mal. Seu Universo é "um processo circular do todo", é a "Teoria do Eterno Retorno". Nesse anel, nesse círculo fechado que seria o universo, a quantidade de força existente seria determinada. Nele tudo é eterno, nada veio a ser. Diferentemente de outros cursos circulares, o do universo é uma lei originária onde os acontecimentos se repetem.

Decorre da Teoria do Eterno Retorno a Teoria da Vontade e Potência. Uma vontade mais forte leva a melhor; não há nenhum projeto anterior. É a teoria de um mundo que eternamente se cria e se destrói a si mesmo, um mundo de volúpia, sem objetivos:

"...força por toda parte...mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando". (Nietzsche, 1978, aforismo 1067, p. 97)

Não há equilíbrio, nada é definitivo. Nós mesmos somos, segundo Nietzsche, essa vontade de potência, e nada mais. A leitura que Gilles Deleuze faz do Eterno Retorno nietzscheano opõe o "caos-errância" à "coerência da representação", excluindo a possível pertinência de um sujeito que se representa indefinidamente e de um objeto representado, em nome de uma eterna repetição que receptaria uma potência informal, capaz de desfazer cada representação das coisa através da diferença:

"O díspar é o último elemento da repetição que se opõe à identidade da representação. O círculo do eterno retorno, o da diferença e da repetição (que desfaz o do idêntico e do contraditório), é um círculo tortuoso que só diz o Mesmo daquilo que difere". (DELEUZE, 1988, p.108)

Deleuze procurará nos despertar através do "Eterno Retorno" para toda e qualquer remoção dos entraves que mediatizam a relação entre o ser e a diferença dos fenômenos. Ao assumir a postura de que cada fenômeno é uma eterna cópia de outras cópias das quais não há uma origem, mas apenas eventos que só existem retornando, Deleuze abre-se para o simulacro como "o verdadeiro caráter ou a forma do que é 'o ente',quando o eterno retorno é a potência do ser (o informal)". A identidade, responsável pela modelação formal dos fenômenos em função de um ideal a ser representado, desfaz-se no simulacro, que longe de ser uma cópia, procurará experienciar o real a partir de uma seleção dos elementos divergentes, díspares:

"Com efeito, por simulacro não devemos entender uma simples imitação, mas sobretudo o ato pelo qual a própria idéia de um modelo ou de uma posição privilegiada é contestada, revertida. O simulacro é a instância que compreende uma diferença em si, como duas séries divergentes (pelo menos) sobre as quais ele atua, toda semelhança tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existência de um original e de uma cópia. É nesta direção que é preciso procurar as condições, não mais da experiência possível, mas da experiência real (seleção, repetição, etc). É aí que encontramos a realidade vivida de um domínio sub-representativo. Se é verdade que a representação tem a identidade como elemento e um semelhante como unidade de medida, a pura presença, tal como aparece no simulacro, tem o 'díspar' como unidade de medida, isto é, sempre uma diferença da diferença como elemento imediato". (Deleuze, 1988, p.124-125))

Este elogio da diferença, da intensidade e do simulacro soa hoje como um libelo contra as leis de patentes e o fundamentalismo das propriedades intelectuais.

O senso de humor e a ironia

É impossível não rir quando, no começo de The Edukators, a família chega de férias e encontra o mundo de cabeça para baixo. O humor é um exercício de dissecação da realidade tal como ela é e não como o bom senso ou o senso comum gostariam que ela fosse. No senso comum, os diferentes objetos igualizam-se "e os diferentes eus tendem a se uniformizar" (DELEUZE, 1988, p.360). Logo, o que Deleuze identifica no paradoxo como manifestação da filosofia (ao contrário do bom senso), é válido também para os efeitos paradoxais no humor:

"...o paradoxo quebra o exercício comum e leva cada faculdade diante do seu próprio limite, diante de seu incomparável, o pensamento diante do impensável que, todavia, só ele pode pensar, a memória diante do esquecimento, que é também seu imemorial, a sensibilidade diante do insensível, que se confunde com o seu intensivo".(DELEUZE, 1988, p.365)

Um aforismo é um jorro de riso e alegria. "É preciso ler Nietzsche rindo e gargalhando, caso contrário não há leitura de Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação à Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte da nossa contracultura" (DELEUZE, 1985, p.64). Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos (é exatamente isso que faz o subvertisement e as ações de culture jamming contemporâneas). O riso em Nietzsche remete sempre ao movimento exterior dos humores e das ironias e este movimento é o das intensidades, das qualidades, das diferenças exteriores que ressoam continuamente.

Aqui é preciso compreender que o humor e a ironia se contrapõe ao peso dos valores platônicos, judaico-cristãos: valores que condenaram a vida, postulando um utópico mundo do além (as idéias ou idealismo platônico). Portanto, nunca é demais ressaltar que um dos projetos de Nietzsche é demolir o castelo metafísico, armadilha na qual, segundo Oswaldo Giacoia Junior,

"Nossa alma ou espírito, nossa verdadeira essência, estaria prisioneira do nosso corpo. Os sentidos induziriam nossa verdadeira essência ao erro e ao engano pelos sentidos, que nos arrastam continuamente para o planos das aparências, desviando-nos do que seria a nossa verdadeira destinação: a contemplação das formas puras…Todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espécie de recordação do que outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre, contempláramos do verdadeiro e divino mundo das idéias. Um espírito, ou razão pura, e um bem em si constituem as referências metafísicas que dão sustentação tanto ao conhecimento científico quanto às ações morais do ser humano no mundo". (Giacoia Junior, 2000, p.23)



Máquina de guerra nomádica e intempestiva


Num trabalho recém-lançado, Viviane Mosé mostra como a nova política que nasce com Nietzsche passa por uma transvaloração da linguagem. Ou seja, a desautorização da linguagem, a desconstrução da lógica da identidade (leis e gramática) e o investimento numa relação afirmativa com os signos a partir de um novo campo de forças interpretativo.

Dentro deste contexto insere-se a questão do aforisma nomádico. Deleuze intuia que o problema político seria o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na organização despótica e burocrática do partido e do aparelho de Estado: uma máquina de guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o exterior, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Nesse sentido, a nova política que começa com Nietzsche inaugura uma máquina de guerra móvel (nomádica e intempestiva). François Zourabichvili dá uma interpretação prática ao conceito deleuziano de máquina de guerra:

"…em lugar de depositar uma fé intacta e não crítica na revolução, ou de convidar abstratamente para uma 'terceira via' revolucionária ou reformista, ela permite precisar as condições de uma política revolucionária não-bolchevique, sem organização de partido, que disporia ao mesmo tempo de uma ferramenta de análise para fazer face ao perigo de deriva 'fascista' próprio das linhas de fuga coletivas. (Zourabichvili, 2004, p.66)

Aqui as linhas de fuga nietzcheanas e anarquistas se encontram. Os aforismos nômades são aqueles que escapam aos códigos (os marginais, os excluídos, os pensadores malditos). O nômade não é necessariamente aquele que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar (a internet que o diga), viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes, ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos (Deleuze, 1985, p.66).

Para quem ainda não viu The edukators fica um aviso. No confronto entre a geração 68 e os ativistas do novo milênio não jogue todas as fichas na alienação da juventude contemporânea.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARRENECHEA, Miguel Angel de. "Pensamento nômade: a leitura deleuziana do aforismo de Nietzsche" in Nietzsche e Deleuze:intensidade e paixão. Daniel Lins, Sylvio de Sousa Gadelha Costa e Alexandre Veras organizadores. Rio de janeiro, Ed.Relume Dumará, 2000.

BEY, HAKIM. Imediatismo, in site Sabotagem/Contra-Cultura:

http://www.inventati.org/sabotagem/database/article.php?id_article=208

BORGES, FERNANDA CARLOS. "A Vontade de Mudança e o Medo da Queda", in http://www.sinte.com.br/modules.php?name=Content&pa=showpage&pid=26&page=1

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GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo, Publifolha, 2000.

LEITE, Ricardo Gomes. "O mundo é um grande hospício", in Revista Manchete, número 1104, de 16/06/73.

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NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo, Hemus, 1977.

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PASQUINELI, Matteo (org). Media Activism; strategie e pratiche della comunicazione indipendente/mappa internazionale e manuale d¢ uso. Roma, Derive Approdi, 2002. Para fazer download da versão original: http://www.rekombinant.org/media-activism/

PINTO, Manuel da Costa. "O niilismo como resistência", in Folha de S.Paulo, Caderno Mais, domingo, 02 de junho de 2002.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Experiência da Ficção: palestra de Bernardo Carvalho


Bernardo Carvalho fala de estilo e viagens literárias em conferência
quarta-feira, 7 de novembro de 2007 - UFMG
“Meus livros negam a prosa poética, a idéia tradicional de beleza na prosa. Quero criar uma outra beleza”, disse o jornalista e escritor Bernardo Carvalho, que falou hoje para a comunidade da UFMG em mais uma conferência do ciclo Sentimentos do Mundo, que comemora os 80 anos da Universidade. Ele vê em seus romances a combinação de uma “língua pobre com uma estrutura narrativa complexa”. a palestra Experiência da Ficção.

Bernardo Carvalho, considerado um dos autores mais originais do cenário literário brasileiro, já ganhou o Prêmio Jabuti, o da Associação Brasileira de Críticos de Arte (APCA) – ambos com Mongólia (2003) – e o Portugal Telecom de Literatura Brasileira, com Nove Noites, de 2002 (prêmio dividido com Pico na Veia, de Dalton Trevisan). Ele foi apresentado pelo professor Carlos Antonio Leite Brandão, diretor-presidente do IEAT – Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares, como mestre no “entrecruzamento de narrativas, temporalidades e visões”.
Bernardo definiu sua literatura como cerebral e lembrou o clichê que classifica esse gênero como menor, em oposição à literatura “de vísceras”. Disse que tem relação difícil com qualquer coletividade, e que também por isso, talvez, sua obra pretenda afirmar uma singularidade. “Quero uma literatura que só pode existir onde ela ainda não é chamada de literatura”, ele afirmou.
Viagens diferentes
Boa parte da conferência foi tomada por relatos de suas viagens, como à Mongólia e à Rússia – esta para projeto ainda não concluído. Bernardo Carvalho ressalta que seus deslocamentos pelo mundo não seguem a tradição dos escritores-viajantes que relatam o que viram, seja em forma de reportagem ou de romance. "Preciso ir, mas vou para ver o país distorcido. Do curto-circuito provocado pelo contato da minha subjetividade com o lugar, e não da compreensão desse lugar, é que vai sair alguma coisa”, explicou o escritor.
Carioca nascido em 1960, Bernardo Carvalho foi editor do suplemento de ensaios Folhetim, do jornal Folha de S. Paulo, e correspondente da publicação em Paris e Nova York. Além de Nove noites e Mongólia, ele lançou a coletânea de contos Aberrações (1993) e os romances Onze (1995), Os Bêbados e os Sonâmbulos (1996), Teatro (1998), As Iniciais (1999) e Medo de Sade (2000). Este ano, publicou O Sol se Põe em São Paulo.

Um pouco de liberdade

UM LUGAR PARA A LITERATURA

Ivan Luiz de Oliveira



Resumo: Partindo da consideração de que a literatura não é apenas a representação estética de determinado objeto, mas também uma prática discursiva capaz de legitimar novas significações culturais, este artigo tece argumentos que procuram justificar um lugar para a literatura como agente de transformação cultural.

Os estudos literários no século XX atingiram um nível de discussão que extrapola o campo da literatura e se confunde com o debate político-filosófico acerca das questões determinantes das relações sócio-culturais da sociedade contemporânea. Para verificar a intimidade entre os estudos literários e a busca pela afirmação de valores políticos que almejam alguma forma de poder, seguem-se alguns exemplos.

Os formalistas russos, por não se engajarem a uma ideologia política declarada, quando propuseram um estudo do texto literário independente de questões ideológicas, foram combatidos pelo sistema dominante por representarem uma “ameaça” contra o ideal revolucionário vigente. A proposta de desvincular o texto literário do seu caráter ideológico foi interpretada politicamente como uma tentativa de neutralizar a força do discurso ideológico revolucionista e, dessa forma, diminuir o poder de persuasão da propaganda
comunista sobre a sociedade russa.

O estruturalismo nos estudos literários, de seu lado, foi a conseqüência de um modo de ver a sociedade sob a perspectiva dos paradigmas estabelecidos pelo poder político estabelecido. Sua época foi marcada pela imposição de valores acerca do que era tido como certo ou errado numa sociedade ainda respirando a fumaça das bombas da segunda guerra mundial. Portanto, o clima não era muito adequado à promoção das liberdades individuais. Tanto que seu reflexo na literatura não extrapola aquilo que os formalistas já tinham discutido. No entanto, se os formalistas não evidenciavam uma intenção política em seus estudos, o estruturalismo não só evidencia as suas pretensões como de certa forma também as impõe. A noção de sistema que oferece não permite a contestação dos paradigmas estabelecidos na sociedade, apenas considera a possibilidade da reestruturação sintagmática dos diferentes modos de afirmá-los. Não se encontra nesses estudos, por exemplo, a abordagem do papel da mulher na literatura, visto que tal temática não pertencia ao rol dos paradigmas então aceitos. À crítica literária estruturalista coube a função de levar a cabo a classificação dos pormenores discursivos do texto literário, destacando, tal qual os formalistas, apenas seus aspectos modais, sem questionar a validade discursiva dos textos abordados.

Se na primeira metade do século XX os estudos literários detêm-se exclusivamente na abordagem formal do discurso, é na segunda metade do século – em específico a partir da década de sessenta, no momento em que se dá o início do rompimento dos paradigmas até então excludentes de grande parte da sociedade – que uma nova luta política se estabelece e da qual a crítica literária participou, dialeticamente, contribuindo para que ela acontecesse ao mesmo tempo em que redirecionava seus princípios em decorrência da influência que recebeu.

Talvez o momento mais significativo e, certamente, o que mais influenciou o pensamento atual acerca de um lugar para a literatura tenha sido a transição ocorrida nesse período, entre o estruturalismo e o que se convencionou chamar de Pós-estruturalismo. Esta corrente filosófica, cujo expoente mais significativo parece ser o filósofo francês Jacques Derrida, rompe com a noção de oposições binárias do estruturalismo e, sob a perspectiva do que se chamou “desconstrução”, dissemina uma nova visão da sociedade na qual é preciso “desconstruir” as verdades criadas pela cultura estruturalista dominante e permitir que outros valores culturais possam participar do debate político constitutivo das relações de poder. É o momento em que a crítica literária se volta para a literatura como elemento capaz de formar a consciência crítica do leitor sobre os rumos do mundo. O negro, a mulher, o homossexual, o pobre, que sempre estiveram presentes nas obras literárias mas não eram o foco do debate, visto que o que valia era a forma organizacional e não a temática discursiva dos textos, passaram a ter presença certa na literatura: a literatura sai da academia e vai para as ruas...

No entanto, se alguns críticos literários – dentre eles Roland Barthes – fizeram parte da transição do estruturalismo para o pós-estruturalismo, e souberam equilibrar os aspectos positivos da análise literária estruturalista e seus correspondentes pós-estruturalistas, isto é, apresentar a possibilidade de vínculo entre forma e conteúdo discursivos do texto literário, hoje em dia há o risco de que a literatura venha a se tornar um mero artefato cultural, de modo que uma obra valha mais pelo que diz do que pela forma como diz o que diz. O debate entre o cânone e o popular, nesse aspecto, parece ser mais um problema da crítica do que da própria literatura, pois o advento de novas obras literárias no atual contexto não deve ser entendido como simples representação dos interesses políticos de uma determinada forma de cultura. Se tal obra não apresentar em sua forma discursiva o elemento estético constituinte daquilo que os formalistas definiram como literariedade, não terá que ser classificada como literatura. Caberá não apenas à crítica esse julgamento mas, sobretudo, ao leitor. A literatura é aquilo que diz e a forma como diz o que diz, não uma ou outra coisa.

As considerações acima mostram claramente como a literatura não está isenta de determinar e ser determinada pelas práticas políticas estabelecidas na sociedade. Ela permite o dialogismo entre aquilo que se pensa a respeito da sociedade e aquilo que se faz por ela. De acordo com Terry Eagleton, ao tratar sobre o pós-estruturalismo em seu livro Teoria da Literatura: uma introdução, os preceitos desconstrutivistas disseminados por Derrida não alcançaram o êxito desejado na esfera política, visto que os momentos marcantes de tentativas de rompimento dos paradigmas vigentes à época não vigoraram. O famoso mês de maio de 1968 na França não foi capaz de derrubar o poder. Por isso, se na prática o ideal de abertura política não se concretizou, coube à literatura, ou melhor, à crítica literária pós-estruturalista, assegurar a validade e a permanência daquele ideal. É no campo da linguagem que o pós-estruturalismo cria suas raízes:

O pós-estruturalismo foi produto dessa fusão de euforia e decepção, libertação e dissipação, carnaval e catástrofe, que se verificou no ano de 1968. Incapaz de romper as estruturas do poder estatal, (...) viu ser possível, em lugar disso, subverter as estruturas da linguagem. (p. 195)

Desde então, a sociedade tem se transformado muito rapidamente. Todo o teor do discurso pós-estruturalista preservado e desenvolvido pela crítica literária não é mais novidade para ninguém. A mulher, o negro, os pobres e os homossexuais estão em toda parte e, apesar do preconceito que ainda sofrem, todos sabem da sua existência. E a literatura, ao lidar com esses temas que refletem preconceitos sociais, mesmo que o faça de maneira artística, não pode deixar de ser interpretada como um artifício ao mesmo tempo de contestação política e de afirmação cultural. Pois, como já se disse acima, se no caso do pós-estruturalismo ela reflete o pensamento de uma época que valoriza as culturas marginalizadas, da mesma forma ela atua como agente de conscientização de que tais preconceitos culturais não devem existir. É sob esse aspecto de ser também um agente de transformação político-cultural que a literatura é considerada neste artigo.

Os estudos culturais são um importante meio de investigação sobre como se formam as relações de poder da sociedade. O próprio termo evidencia a ampla perspectiva de seus objetivos: estudar culturas num universo repleto de diversidades culturais.

Toda ação e toda forma de linguagem, independentemente do que façam ou do que digam, são representações culturais. E os estudos culturais, por sua vez, investigam e fundamentam o maior número possível de informações capazes de justificar os fatores determinantes de tais ações ou formas de linguagem. Essa atitude reflete uma antiga ambição de se alcançar uma teoria e uma prática que dêem conta das relações humanas como um todo, sem privilegiar um ou outro seguimento visto que todas as áreas do saber estão contempladas na perspectiva dos estudos culturais.

Considerar a literatura como prática dos estudos culturais não é torná-la menos artística, mas mais atuante quanto à sua capacidade de investigação das relações de poder estabelecidas nas sociedades. Enquanto elemento de recriação da realidade, por meios que lhe são peculiares, ela desempenha o mesmo papel que pretendem os estudos culturais, ou seja, o questionamento da validade das práticas culturais existentes. Nessa perspectiva, ela não é apenas uma forma de organização estética do discurso, mas também uma força política, capaz de fazer com que as sociedades pensem a respeito de si mesmas e questionem a validade de suas ações.

Apesar de todas as contradições que a globalização apresenta, em especial no campo econômico, os estudos culturais, neste contexto, apontam para a valorização de todas as culturas, sem exceção. Contra o pensamento conservador preconceituoso, cujos interesses particulares evidenciam o temor de se promover a abertura cultural, os estudos culturais apresentam-se como o elemento de revalorização de grupos sociais excluídos não só do campo artístico mas também das relações de poder mais objetivas que, entre outras coisas, determinam qual grupo morrerá de fome e qual morrerá pelo consumismo descontrolado.

Uma espécie de órgão regulador da democracia, os estudos culturais podem mostrar, mesmo a quem não quer ver, que há mais questões a se tratar no mundo do que questões econômicas.

Neste ponto, talvez fique mais evidente a importância de se considerar a literatura como parte dos estudos culturais. Enquanto arte, cabe a ela o papel de traduzir as experiências de grupos sociais que nunca tiveram voz na cultura universal. Pela arte, ela pode reconduzir muitas formas de cultura a seu devido lugar porque permite a possibilidade metafórica de driblar a censura de poderes políticos dominantes. E, por isso, neste percurso, ela se apresenta mais original do que a história, visto que esta geralmente é contada por aqueles próximos ao poder. A literatura, pelo contrário, desde os seus níveis mais elementares aos mais complexos, está presente no dia-a-dia de cada indivíduo da sociedade, denunciando o que deve ser denunciado, afirmando o que deve ser afirmado, enfim, formando indivíduos críticos e sensíveis para a necessidade de valorização e socialização da arte. Entre outras coisas, também lhe cabe a função mostrar que as culturas existentes se fazem não apenas de números e estatísticas mas, principalmente, de indivíduos com diferentes experiências de vida e diferentes formas de expressão dessas experiências.

Há a precaução, ou até um certo conservadorismo, da parte de alguns estudiosos da literatura, quando se relaciona literatura com estudos culturais. Dessa relação, há o receio de que a literatura perca sua posição autônoma na cultura para tornar-se mero instrumento de estudos culturais. No entanto, a literatura não é senão uma prática cultural, portanto, um objeto dos estudos culturais. Dessa relação, ao invés de se considerar uma perda de autonomia para a literatura, entende-se que é dela o papel de afirmar os estudos culturais como uma prática autônoma. A literatura é um elemento de afirmação da cultura e, de maneira alguma, tal característica deve ser vista como algo menor.

A partir das implicações dos estudos culturais em literatura, surge a necessidade de se rever os limites entre o erudito e o popular, o literário e o não-literário. Quando propõem a valorização de culturas marginais, os estudos culturais permitem o surgimento de formas de expressão que reivindicam um lugar na literatura sem que, necessariamente, tais formas de expressão encontrem acomodação no campo estético literário. Aí talvez resida o problema: os estudos culturais não levam devidamente em conta o caráter estético da obra literária para afirmá-la enquanto instrumento de transformação político-cultural; já para a crítica literária, o caráter estético da literatura não pode ser dissociado do seu conteúdo discursivo, visto que ambos é que permitem a expressividade capaz de transformar a cultura. Nem toda forma de expressão pretensamente artístico-literária poderá ser aceita sem passar pelo crivo da crítica, ao passo que, para os Estudos Culturais, não ocorre esse tipo de censura: toda forma de expressão é um produto e um agente da cultura, e aí reside sua importância, independentemente de que tal expressão se dê pelo viés literário ou não.

Acerca da questão sobre quem ganha ou perde, na relação entre estudos culturais e literatura, Jonathan Culler, em seu livro Teoria literária: uma introdução, argumenta que os estudos literários podem ganhar quando a literatura é estudada como uma prática cultural específica e as obras são relacionadas a outros discursos (p.52). Faz referência, ainda, ao fato de que autores como Shakespeare nunca foram tão estudados sob tão diversas perspectivas quanto agora. Para os estudos culturais, a literatura vale mais pelo teor dos diferentes modos discursivos que apresenta do que pela forma com que tais discursos são construídos. Embora não sejam poucos os trabalhos que versem sobre a relação entre a linguagem literária e outras formas de linguagem (outras formas de cultura), como o cinema e a pintura, por exemplo, uma característica comum entre eles é a abordagem da linguagem como elemento recriador de realidades, enquanto elemento estético. Aos estudos culturais, não se objetiva o enfoque meramente estético da literatura, do cinema ou da pintura, mas o papel que estas formas artísticas representam num contexto mais amplo, em que o que se pretende é o acréscimo de discursos capazes de produzir novas significações culturais em uma sociedade tão carente de transformações culturais como é a sociedade em que vivemos.

Ao apresentar situações verossímeis, mas sem correlato objetivo na vida real, a literatura faz com que o leitor vislumbre a possibilidade de uma nova forma de organização da sociedade. E, nesse processo, ela representa o propósito dos estudos culturais: alertar para a não-gratuidade das relações de poder estabelecidas. Por isso, em sua função estético-representativa, ela é também instrumento de transformação cultural.

Quando João Ubaldo Ribeiro, em O diário do farol, apresenta um narrador condenando o celibato, por exemplo, traz à tona todo o jogo de interesses sócio-político-culturais envolvidos no processo determinante de tal prática. Se a obra evidencia a falência dessa prática, caberá ao leitor a construção de uma nova forma de pensar a sociedade sem o celibato. Neste exercício, o que se faz é justamente questionar a validade das práticas culturais vigentes, pela literatura.

Dessa forma, se cabe a ressalva de que os estudos literários não podem se fechar à perspectiva político-cultural da literatura, do mesmo modo deve-se argumentar que os estudos culturais não podem ignorar a existência da literariedade como parte constituinte do processo discursivo literário. Se se tomar como exemplo O diário do farol, verificar-se-á que a força discursiva que apresenta, capaz de questionar a prática cultural do celibato, não pode ser analisada isoladamente, como um discurso não-literário. É também o modo como o discurso é organizado que permitirá a inserção do leitor no processo de construção de um novo significado cultural.

No atual contexto sócio-cultural, tão repleto de apelos midiáticos sensacionalistas e da propagação de uma cultura cada vez mais empresarial e menos letrada, a crescente pluralidade verbal causada pelos avanços desenfreados da tecnologia tem feito com que tanto a literatura (microcosmo) quanto os estudos culturais (macrocosmo) não dêem conta de tamanha pluralidade.

Ao mesmo tempo em que é possível vislumbrar uma força transformadora na literatura, vive-se um momento crítico em que cada vez mais parecem diminuir os espaços de aceitação do artefato literário. Na sociedade pragmática atual, o tempo que se leva para ler uma obra literária é tido, para muitos, como desperdício. Preferem a comodidade das novas tecnologias eletrônicas da informação do que o esforço que é ler um livro; e talvez isso explique a inconsistência discursiva da sociedade moderna, na qual tudo é transitório e prevalece o ceticismo em vez da definição de diretrizes que objetivem superar o caos social estabelecido.

Ainda que defendamos o resgate da utopia, em virtude da recente presença de vozes culturais até então marginalizadas, a romper o domínio das formas tradicionais de pensamento e atitude, é também sabido que o horizonte tampouco se apresenta como definido. Enquanto isso, o lugar da literatura continuará sendo todos e, ao mesmo tempo, nenhum. Toda investigação acerca do artefato literário continuará sendo crítica ou estudo cultural, ao mesmo tempo em que também será um exercício de autocrítica da própria literatura.

O que se pode dizer é que a literatura ainda é um dos poucos lugares em que se pode encontrar um pouco de liberdade. E, para que se possa fazer valer seu caráter libertário perante uma sociedade mais ampla, é preciso que todos os educadores que lidam com a literatura se proponham a evidenciar a sua validade enquanto agente de transformação cultural. Espera-se que os estudos literários não se fechem para esse aspecto tão evidente em sua prática. Àqueles que não admitem outra finalidade para a literatura senão uma espécie de arte para se colocar na moldura, a única coisa que se tem a dizer é que a literatura não mudou em sua essência, o seu caráter de (des) (re) construção da realidade, pela arte, permanece. Mas o contexto cultural vigente, também em constante processo de (des) (re) construção, pede que se a considere como algo mais amplo, capaz de promover a humanização de todos os indivíduos carentes não só de fantasia, mas também de realidade.

BIBLIOGRAFIA

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BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

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CULLER, Jonathan. Literatura e Estudos Culturais. In: Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.

EAGLETON, Terry. O pós-estruturalismo. In: Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GIROUX, Henry A. Atos impuros: a prática política dos estudos culturais. Trad. Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2003.

MEDEIROS, Sérgio. Politeísmo Crítico. In: Dossiê sobre Estudos Culturais. Revista Cult, dezembro de 1998.

Antonio Manuel


Fantasma
1993

Do Speculum

26/10/2007
TODAS AS LIÇÕES DE UM MESTRE

Por Susan Sontag



De sua casa, em Nova York, onde se recuperava de um acidente automobilístico, a falecida escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag não queria ficar ausente dos debates, da inquietação. Sua admiração e seu respeito por Jorge Luís Borges se traduzem neste texto espirituoso, escrito em homenagem ao já então finado escritor argentino sob forma de carta. Desde 2002 Sontag faz companhia a Borges na “Biblioteca Total Celeste”.

12 de junho de 1996

Querido Borges:

Dado que sempre contemplaram sua literatura sob o signo da eternidade, não parece demasiado estranho enviar-lhe uma carta (Borges, faz dez anos). Se alguma vez algum contemporâneo pareceu destinado à imortalidade literária, este era o senhor. O senhor era em grande medida o produto de seu tempo, de sua cultura e, no entanto, sabia como transcender seu tempo, sua cultura, de uma forma que resulta bastante mágica. Isto tinha algo a ver com a abertura e a generosidade, próprias de sua atenção. Era o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores... e também o mais artístico. Também tinha algo a ver com uma pureza natural de espírito. Ainda que tenha vivido entre nós durante um tempo bastante prolongado, aperfeiçoou as práticas do fastio e da indiferença, que também o converteram num viajante-especialista mental em outras eras. Tinha um sentido do tempo diferente dos demais. As idéias comuns de passado, presente e futuro pareciam banais sob seu olhar. O senhor gostava de dizer que cada momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo assim como "o presente é o instante no qual o futuro se derruba no passado". Isso, sem dúvida, era expressão de sua modéstia: seu contentamento em encontrar suas idéias nas idéias de outros escritores.

Essa modéstia se inseria na segurança de sua presença. O senhor era um descobridor de novas alegrias. Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu, não necessitava da indignação. Melhor fosse inventivo... e o senhor era, sobretudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do ser que o senhor encontrou, são para mim exemplares. O senhor demonstrou de que maneira a infelicidade não precisa ser uma necessidade, ainda que a perspicácia e o esclarecimento não nos livrem do terror de tudo isso. Em algum momento o senhor disse que um escritor - acrescentando delicadamente: todas as pessoas - deve pensar que qualquer coisa que lhe suceda, será um recurso. (Estava falando da sua própria cegueira).

O senhor foi um grande recurso para outros escritores. Em 1982 – quer dizer, quatro anos antes de morrer (Borges, faz dez anos!) – eu disse numa entrevista: "Hoje não existe nenhum outro escritor vivente que importe mais a outros escritores que Borges. Muitos diriam que é o maior escritor vivente... São muito poucos escritores de hoje que dele não aprenderam ou o não o imitaram". E isso continua sendo assim. Ainda continuamos aprendendo com o senhor. Ainda continuamos a imitá-lo. O senhor ofereceu às pessoas novas maneiras de imaginar, ao mesmo tempo que reiterava, aqui e acolá, nossa dívida com o passado, sobretudo com a literatura. O senhor disse que devemos à literatura praticamente tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerão a história e também os seres humanos. Estou convencida de que tem razão. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Também nos fornecem o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é somente uma forma de escapismo: um escape do cotidiano "real" a um mundo imaginário, o mundo dos livros. Os livros são muito mais do que isso.

Lamento ter de dizer-lhe que a sorte do livro jamais esteve tão ameaçada por semelhante decadência. São cada vez mais os que alardeiam o grande projeto contemporâneo da destruição das condições que tornam a leitura capaz de repudiar o livro e seus efeitos. Imagine-se aconchegado na cama ou sentado num canto tranqüilo de uma biblioteca, folheando lentamente às páginas de um livro à luz de uma lâmpada, e à queima-roupa lhe dizem que daqui para a frente é nos “livros-tela” que deverá descarregar qualquer "texto" a pedido, e que poderá mudar sua aparência, formular perguntas, "interagir" com esse texto. Quando os livros se convertam em "textos", com os que "interagiremos" segundo os critérios de utilidade, a palavra escrita se terá convertido simplesmente em mais um aspecto de nossas realidades televisivas, regidas pela publicidade. Este é o glorioso futuro que se está criando – e que nos prometem - como algo mais "democrático". Obviamente o senhor e eu sabemos que isso não significa nada menos que a morte da introspecção... e do livro.

Esses tempos sequer exigem uma grande conflagração. Os bárbaros não têm que queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Querido Borges, entenda, por favor, que não me dá prazer queixar-me. Mas: a quem melhor poderiam estar dirigidas estas queixas sobre o destino dos livros - da leitura em si – senão ao senhor? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Sinto saudades do senhor. O senhor continua fazendo a diferença. Estamos ingressando em uma era estranha, o século XXI. Porá à prova a alma de maneiras inusitadas. Contudo, lhe prometo: entre nós alguns não abandonarão a Grande Biblioteca. E o senhor seguirá sendo nosso exemplo e nosso herói.

tradução do Espanhol: Frederico Füllgraf