terça-feira, 4 de dezembro de 2007

De como a escuridão pode surpreender e abrir caminhos

Vivian Rangel

Mersault, protagonista de O estrangeiro, de Alberto Camus, acreditava ser possível passar 100 anos numa prisão, pois, se um homem houvesse vivido um único dia, teria recordações suficientes para não se entediar. Mas, e se esta prisão não fosse uma limitação de espaço e sim o encarceramento na própria memória pela perda da visão? Jorge Luis Borges, James Joyce e João Cabral de Melo Neto foram grandes escritores forçados a enfrentar a cegueira, lidar com a impossibilidade de ler e a necessidade de reinventar o ato de escrever antes feito de palavras, rabiscos e versões em papel. Os três são protagonistas de Histórias de literatura e cegueira, do jovem escritor paulista Julián Fuks.

Ensaio, memórias, conto, intertextualidade e pesquisa jornalística mesclam-se em cada um dos textos semi-ficcionais, impossíveis de serem classificados entre os gêneros literários tradicionais. Para Fuks, os textos definem-se como ensaios narrativos que partem do real - ou do que se chama de real - passam pelo verossímil, o mundo do provável e possível, e só então abraçam a ficção, como recurso último.

Entregue a divagações, Borges é o primeiro a ser abordado imerso numa ausência em tom amarelado e divagando sobre o vermelho e o negro de Stendhal, as cores de que mais sente falta. Não, os cegos não estão imersos no preto absoluto. João Cabral está dormindo no momento em que a chuva "aprisiona um dia ingrato", tão ingrato que um jornalista está prestes a tocar a campainha em busca de uma entrevista. O pequeno Joyce deseja se casar com Eileen, uma protestante, e é imediatamente reprimido por sua mãe. Ela garante: seu pensamento será punido pela visita de uma águia devoradora de olhos, caso não se desculpe.

- Não fiz testes como vendar meus olhos e caminhar ou tentar escrever, a cegueira foi um pretexto, uma maneira de encontrar algo para começar a escrever - explica Fuks.- Vargas Llosa diz que escreve para espantar os fantasmas. Talvez eu precise pegar emprestado fantasmas alheios.

No capítulo sobre Borges, Fuks utilizou-se principalmente de suas conferências e encontros com amigos. Um texto repleto de pensatas borgianas sobre a visão, as palavras e a construção do real, mais estranho que a ficção "que somos nós que fazemos, enquanto a realidade é feita por Deus".

- A perda da visão fez com que Borges se tornasse um mestre da literatura oral em conferências memoráveis, além de produzir mais ensaios e poesia - lembra o escritor. - Se enxergasse, talvez tivesse ficado restrito aos contos fantásticos, e não teria o papel que tem hoje, o do velho sábio, culto, erudito, que sem ler citava de memória trechos literários.

João Cabral ganha prosa mais seca, uma entrevista repleta de pausas e silêncios, e também de versos derradeiros, "em chão de pedra que faz o leitor tropeçar". Versos de quem acreditava estar, no pudor e nas horas intermináveis de procura, a força da poesia.

- João Cabral é um caso à parte, deixou de produzir quando perdeu a visão, à exceção de alguns poemas mais simples e diretos que ele afirma ter escrito para desfazer a capacidade de escrever - destaca Fuks.

O pastiche chega ao ápice na narrativa de trechos da vida e da obra de James Joyce. É quando Fuks sai em busca das epifanias, palavras-valise e estilo inconfundível do irlandês. Ao leitor mais ansioso em descobrir os trechos originais utilizados, vale o artifício de consultar as referências bibliográficas no fim do volume, mas boa parte do divertimento está em se deixar levar pela prosa, reconhecendo o universo joyceano.

- Era impossível para mim escrever sobre Joyce sem emular seu estilo - afirma Fuks. - O reflexo da cegueira de James Joyce em sua obra é talvez o mais polêmico. Sempre me pergunto se ele escreveu de forma tão peculiar porque tinha essa duplicidade em relação à escrita: uma aproximação e ao mesmo tempo um apartamento das palavras. E como ignorar tantas referências à falta da visão, como em Finnegans Wake , em que ele põe a linguagem nas trevas?

Da escuridão imposta pela morte de um sentido, os três escritores apelam para a memória e seus meandros, forçam novos caminhos. Borges tinha uma memória incrível, andava pelas ruas criando e recitando poemas que decorava para ditar à mãe. João Cabral recebia visitas da filha, que lia em voz alta - o que na verdade era um sofrimento, pois o poeta não conseguia organizar o pensamento por meio da audição. Joyce suportou múltiplas cirurgias e fez da reduzida visão necessidade para o encontro da realidade da experiência.

- Escrever é lidar com essa flacidez da memória, tentar recuperar o que se perdeu no tempo, o que a cegueira força ao extremo - define o escritor. - Vivemos no império da visão, com predomínio desse sentido sobre os outros, inclusive no infinito de expressões como à primeira vista, olhar apurado ou a muleta acadêmica vale observar. Quando o escritor pode dar atenção a outros fatores que podem ser cheirados, esquecidos, tocados, o leitor ganha amplitude de sentidos. E talvez seja essa capacidade que determine a diferença entre os grandes escritores e os óbvios.

JB - Idéias 01/12/2007

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