quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Um pouco de liberdade

UM LUGAR PARA A LITERATURA

Ivan Luiz de Oliveira



Resumo: Partindo da consideração de que a literatura não é apenas a representação estética de determinado objeto, mas também uma prática discursiva capaz de legitimar novas significações culturais, este artigo tece argumentos que procuram justificar um lugar para a literatura como agente de transformação cultural.

Os estudos literários no século XX atingiram um nível de discussão que extrapola o campo da literatura e se confunde com o debate político-filosófico acerca das questões determinantes das relações sócio-culturais da sociedade contemporânea. Para verificar a intimidade entre os estudos literários e a busca pela afirmação de valores políticos que almejam alguma forma de poder, seguem-se alguns exemplos.

Os formalistas russos, por não se engajarem a uma ideologia política declarada, quando propuseram um estudo do texto literário independente de questões ideológicas, foram combatidos pelo sistema dominante por representarem uma “ameaça” contra o ideal revolucionário vigente. A proposta de desvincular o texto literário do seu caráter ideológico foi interpretada politicamente como uma tentativa de neutralizar a força do discurso ideológico revolucionista e, dessa forma, diminuir o poder de persuasão da propaganda
comunista sobre a sociedade russa.

O estruturalismo nos estudos literários, de seu lado, foi a conseqüência de um modo de ver a sociedade sob a perspectiva dos paradigmas estabelecidos pelo poder político estabelecido. Sua época foi marcada pela imposição de valores acerca do que era tido como certo ou errado numa sociedade ainda respirando a fumaça das bombas da segunda guerra mundial. Portanto, o clima não era muito adequado à promoção das liberdades individuais. Tanto que seu reflexo na literatura não extrapola aquilo que os formalistas já tinham discutido. No entanto, se os formalistas não evidenciavam uma intenção política em seus estudos, o estruturalismo não só evidencia as suas pretensões como de certa forma também as impõe. A noção de sistema que oferece não permite a contestação dos paradigmas estabelecidos na sociedade, apenas considera a possibilidade da reestruturação sintagmática dos diferentes modos de afirmá-los. Não se encontra nesses estudos, por exemplo, a abordagem do papel da mulher na literatura, visto que tal temática não pertencia ao rol dos paradigmas então aceitos. À crítica literária estruturalista coube a função de levar a cabo a classificação dos pormenores discursivos do texto literário, destacando, tal qual os formalistas, apenas seus aspectos modais, sem questionar a validade discursiva dos textos abordados.

Se na primeira metade do século XX os estudos literários detêm-se exclusivamente na abordagem formal do discurso, é na segunda metade do século – em específico a partir da década de sessenta, no momento em que se dá o início do rompimento dos paradigmas até então excludentes de grande parte da sociedade – que uma nova luta política se estabelece e da qual a crítica literária participou, dialeticamente, contribuindo para que ela acontecesse ao mesmo tempo em que redirecionava seus princípios em decorrência da influência que recebeu.

Talvez o momento mais significativo e, certamente, o que mais influenciou o pensamento atual acerca de um lugar para a literatura tenha sido a transição ocorrida nesse período, entre o estruturalismo e o que se convencionou chamar de Pós-estruturalismo. Esta corrente filosófica, cujo expoente mais significativo parece ser o filósofo francês Jacques Derrida, rompe com a noção de oposições binárias do estruturalismo e, sob a perspectiva do que se chamou “desconstrução”, dissemina uma nova visão da sociedade na qual é preciso “desconstruir” as verdades criadas pela cultura estruturalista dominante e permitir que outros valores culturais possam participar do debate político constitutivo das relações de poder. É o momento em que a crítica literária se volta para a literatura como elemento capaz de formar a consciência crítica do leitor sobre os rumos do mundo. O negro, a mulher, o homossexual, o pobre, que sempre estiveram presentes nas obras literárias mas não eram o foco do debate, visto que o que valia era a forma organizacional e não a temática discursiva dos textos, passaram a ter presença certa na literatura: a literatura sai da academia e vai para as ruas...

No entanto, se alguns críticos literários – dentre eles Roland Barthes – fizeram parte da transição do estruturalismo para o pós-estruturalismo, e souberam equilibrar os aspectos positivos da análise literária estruturalista e seus correspondentes pós-estruturalistas, isto é, apresentar a possibilidade de vínculo entre forma e conteúdo discursivos do texto literário, hoje em dia há o risco de que a literatura venha a se tornar um mero artefato cultural, de modo que uma obra valha mais pelo que diz do que pela forma como diz o que diz. O debate entre o cânone e o popular, nesse aspecto, parece ser mais um problema da crítica do que da própria literatura, pois o advento de novas obras literárias no atual contexto não deve ser entendido como simples representação dos interesses políticos de uma determinada forma de cultura. Se tal obra não apresentar em sua forma discursiva o elemento estético constituinte daquilo que os formalistas definiram como literariedade, não terá que ser classificada como literatura. Caberá não apenas à crítica esse julgamento mas, sobretudo, ao leitor. A literatura é aquilo que diz e a forma como diz o que diz, não uma ou outra coisa.

As considerações acima mostram claramente como a literatura não está isenta de determinar e ser determinada pelas práticas políticas estabelecidas na sociedade. Ela permite o dialogismo entre aquilo que se pensa a respeito da sociedade e aquilo que se faz por ela. De acordo com Terry Eagleton, ao tratar sobre o pós-estruturalismo em seu livro Teoria da Literatura: uma introdução, os preceitos desconstrutivistas disseminados por Derrida não alcançaram o êxito desejado na esfera política, visto que os momentos marcantes de tentativas de rompimento dos paradigmas vigentes à época não vigoraram. O famoso mês de maio de 1968 na França não foi capaz de derrubar o poder. Por isso, se na prática o ideal de abertura política não se concretizou, coube à literatura, ou melhor, à crítica literária pós-estruturalista, assegurar a validade e a permanência daquele ideal. É no campo da linguagem que o pós-estruturalismo cria suas raízes:

O pós-estruturalismo foi produto dessa fusão de euforia e decepção, libertação e dissipação, carnaval e catástrofe, que se verificou no ano de 1968. Incapaz de romper as estruturas do poder estatal, (...) viu ser possível, em lugar disso, subverter as estruturas da linguagem. (p. 195)

Desde então, a sociedade tem se transformado muito rapidamente. Todo o teor do discurso pós-estruturalista preservado e desenvolvido pela crítica literária não é mais novidade para ninguém. A mulher, o negro, os pobres e os homossexuais estão em toda parte e, apesar do preconceito que ainda sofrem, todos sabem da sua existência. E a literatura, ao lidar com esses temas que refletem preconceitos sociais, mesmo que o faça de maneira artística, não pode deixar de ser interpretada como um artifício ao mesmo tempo de contestação política e de afirmação cultural. Pois, como já se disse acima, se no caso do pós-estruturalismo ela reflete o pensamento de uma época que valoriza as culturas marginalizadas, da mesma forma ela atua como agente de conscientização de que tais preconceitos culturais não devem existir. É sob esse aspecto de ser também um agente de transformação político-cultural que a literatura é considerada neste artigo.

Os estudos culturais são um importante meio de investigação sobre como se formam as relações de poder da sociedade. O próprio termo evidencia a ampla perspectiva de seus objetivos: estudar culturas num universo repleto de diversidades culturais.

Toda ação e toda forma de linguagem, independentemente do que façam ou do que digam, são representações culturais. E os estudos culturais, por sua vez, investigam e fundamentam o maior número possível de informações capazes de justificar os fatores determinantes de tais ações ou formas de linguagem. Essa atitude reflete uma antiga ambição de se alcançar uma teoria e uma prática que dêem conta das relações humanas como um todo, sem privilegiar um ou outro seguimento visto que todas as áreas do saber estão contempladas na perspectiva dos estudos culturais.

Considerar a literatura como prática dos estudos culturais não é torná-la menos artística, mas mais atuante quanto à sua capacidade de investigação das relações de poder estabelecidas nas sociedades. Enquanto elemento de recriação da realidade, por meios que lhe são peculiares, ela desempenha o mesmo papel que pretendem os estudos culturais, ou seja, o questionamento da validade das práticas culturais existentes. Nessa perspectiva, ela não é apenas uma forma de organização estética do discurso, mas também uma força política, capaz de fazer com que as sociedades pensem a respeito de si mesmas e questionem a validade de suas ações.

Apesar de todas as contradições que a globalização apresenta, em especial no campo econômico, os estudos culturais, neste contexto, apontam para a valorização de todas as culturas, sem exceção. Contra o pensamento conservador preconceituoso, cujos interesses particulares evidenciam o temor de se promover a abertura cultural, os estudos culturais apresentam-se como o elemento de revalorização de grupos sociais excluídos não só do campo artístico mas também das relações de poder mais objetivas que, entre outras coisas, determinam qual grupo morrerá de fome e qual morrerá pelo consumismo descontrolado.

Uma espécie de órgão regulador da democracia, os estudos culturais podem mostrar, mesmo a quem não quer ver, que há mais questões a se tratar no mundo do que questões econômicas.

Neste ponto, talvez fique mais evidente a importância de se considerar a literatura como parte dos estudos culturais. Enquanto arte, cabe a ela o papel de traduzir as experiências de grupos sociais que nunca tiveram voz na cultura universal. Pela arte, ela pode reconduzir muitas formas de cultura a seu devido lugar porque permite a possibilidade metafórica de driblar a censura de poderes políticos dominantes. E, por isso, neste percurso, ela se apresenta mais original do que a história, visto que esta geralmente é contada por aqueles próximos ao poder. A literatura, pelo contrário, desde os seus níveis mais elementares aos mais complexos, está presente no dia-a-dia de cada indivíduo da sociedade, denunciando o que deve ser denunciado, afirmando o que deve ser afirmado, enfim, formando indivíduos críticos e sensíveis para a necessidade de valorização e socialização da arte. Entre outras coisas, também lhe cabe a função mostrar que as culturas existentes se fazem não apenas de números e estatísticas mas, principalmente, de indivíduos com diferentes experiências de vida e diferentes formas de expressão dessas experiências.

Há a precaução, ou até um certo conservadorismo, da parte de alguns estudiosos da literatura, quando se relaciona literatura com estudos culturais. Dessa relação, há o receio de que a literatura perca sua posição autônoma na cultura para tornar-se mero instrumento de estudos culturais. No entanto, a literatura não é senão uma prática cultural, portanto, um objeto dos estudos culturais. Dessa relação, ao invés de se considerar uma perda de autonomia para a literatura, entende-se que é dela o papel de afirmar os estudos culturais como uma prática autônoma. A literatura é um elemento de afirmação da cultura e, de maneira alguma, tal característica deve ser vista como algo menor.

A partir das implicações dos estudos culturais em literatura, surge a necessidade de se rever os limites entre o erudito e o popular, o literário e o não-literário. Quando propõem a valorização de culturas marginais, os estudos culturais permitem o surgimento de formas de expressão que reivindicam um lugar na literatura sem que, necessariamente, tais formas de expressão encontrem acomodação no campo estético literário. Aí talvez resida o problema: os estudos culturais não levam devidamente em conta o caráter estético da obra literária para afirmá-la enquanto instrumento de transformação político-cultural; já para a crítica literária, o caráter estético da literatura não pode ser dissociado do seu conteúdo discursivo, visto que ambos é que permitem a expressividade capaz de transformar a cultura. Nem toda forma de expressão pretensamente artístico-literária poderá ser aceita sem passar pelo crivo da crítica, ao passo que, para os Estudos Culturais, não ocorre esse tipo de censura: toda forma de expressão é um produto e um agente da cultura, e aí reside sua importância, independentemente de que tal expressão se dê pelo viés literário ou não.

Acerca da questão sobre quem ganha ou perde, na relação entre estudos culturais e literatura, Jonathan Culler, em seu livro Teoria literária: uma introdução, argumenta que os estudos literários podem ganhar quando a literatura é estudada como uma prática cultural específica e as obras são relacionadas a outros discursos (p.52). Faz referência, ainda, ao fato de que autores como Shakespeare nunca foram tão estudados sob tão diversas perspectivas quanto agora. Para os estudos culturais, a literatura vale mais pelo teor dos diferentes modos discursivos que apresenta do que pela forma com que tais discursos são construídos. Embora não sejam poucos os trabalhos que versem sobre a relação entre a linguagem literária e outras formas de linguagem (outras formas de cultura), como o cinema e a pintura, por exemplo, uma característica comum entre eles é a abordagem da linguagem como elemento recriador de realidades, enquanto elemento estético. Aos estudos culturais, não se objetiva o enfoque meramente estético da literatura, do cinema ou da pintura, mas o papel que estas formas artísticas representam num contexto mais amplo, em que o que se pretende é o acréscimo de discursos capazes de produzir novas significações culturais em uma sociedade tão carente de transformações culturais como é a sociedade em que vivemos.

Ao apresentar situações verossímeis, mas sem correlato objetivo na vida real, a literatura faz com que o leitor vislumbre a possibilidade de uma nova forma de organização da sociedade. E, nesse processo, ela representa o propósito dos estudos culturais: alertar para a não-gratuidade das relações de poder estabelecidas. Por isso, em sua função estético-representativa, ela é também instrumento de transformação cultural.

Quando João Ubaldo Ribeiro, em O diário do farol, apresenta um narrador condenando o celibato, por exemplo, traz à tona todo o jogo de interesses sócio-político-culturais envolvidos no processo determinante de tal prática. Se a obra evidencia a falência dessa prática, caberá ao leitor a construção de uma nova forma de pensar a sociedade sem o celibato. Neste exercício, o que se faz é justamente questionar a validade das práticas culturais vigentes, pela literatura.

Dessa forma, se cabe a ressalva de que os estudos literários não podem se fechar à perspectiva político-cultural da literatura, do mesmo modo deve-se argumentar que os estudos culturais não podem ignorar a existência da literariedade como parte constituinte do processo discursivo literário. Se se tomar como exemplo O diário do farol, verificar-se-á que a força discursiva que apresenta, capaz de questionar a prática cultural do celibato, não pode ser analisada isoladamente, como um discurso não-literário. É também o modo como o discurso é organizado que permitirá a inserção do leitor no processo de construção de um novo significado cultural.

No atual contexto sócio-cultural, tão repleto de apelos midiáticos sensacionalistas e da propagação de uma cultura cada vez mais empresarial e menos letrada, a crescente pluralidade verbal causada pelos avanços desenfreados da tecnologia tem feito com que tanto a literatura (microcosmo) quanto os estudos culturais (macrocosmo) não dêem conta de tamanha pluralidade.

Ao mesmo tempo em que é possível vislumbrar uma força transformadora na literatura, vive-se um momento crítico em que cada vez mais parecem diminuir os espaços de aceitação do artefato literário. Na sociedade pragmática atual, o tempo que se leva para ler uma obra literária é tido, para muitos, como desperdício. Preferem a comodidade das novas tecnologias eletrônicas da informação do que o esforço que é ler um livro; e talvez isso explique a inconsistência discursiva da sociedade moderna, na qual tudo é transitório e prevalece o ceticismo em vez da definição de diretrizes que objetivem superar o caos social estabelecido.

Ainda que defendamos o resgate da utopia, em virtude da recente presença de vozes culturais até então marginalizadas, a romper o domínio das formas tradicionais de pensamento e atitude, é também sabido que o horizonte tampouco se apresenta como definido. Enquanto isso, o lugar da literatura continuará sendo todos e, ao mesmo tempo, nenhum. Toda investigação acerca do artefato literário continuará sendo crítica ou estudo cultural, ao mesmo tempo em que também será um exercício de autocrítica da própria literatura.

O que se pode dizer é que a literatura ainda é um dos poucos lugares em que se pode encontrar um pouco de liberdade. E, para que se possa fazer valer seu caráter libertário perante uma sociedade mais ampla, é preciso que todos os educadores que lidam com a literatura se proponham a evidenciar a sua validade enquanto agente de transformação cultural. Espera-se que os estudos literários não se fechem para esse aspecto tão evidente em sua prática. Àqueles que não admitem outra finalidade para a literatura senão uma espécie de arte para se colocar na moldura, a única coisa que se tem a dizer é que a literatura não mudou em sua essência, o seu caráter de (des) (re) construção da realidade, pela arte, permanece. Mas o contexto cultural vigente, também em constante processo de (des) (re) construção, pede que se a considere como algo mais amplo, capaz de promover a humanização de todos os indivíduos carentes não só de fantasia, mas também de realidade.

BIBLIOGRAFIA

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