quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Uma HQ inusitada (2)


Vencedor do Eisner-07 narra relação de lésbica com pai, gay enrustido
EDUARDO SIMÕES
da Folha de S.Paulo - 29/11/2007
O enredo do álbum de quadrinhos "Fun Home" (lar da diversão), que acaba de sair no Brasil, soa como o da série de TV "A Sete Palmos": uma família "disfuncional", espécie de "A Família Addams" com filho gay, vive dentro de uma casa que funciona como funerária.

Mas o livro autobiográfico da quadrinista norte-americana Alison Bechdel, 47, vencedor do Eisner Award de Não-Ficção 2007, o mais importante das HQs, é mais insólito.

"Fun Home" (o nome também é um jogo de palavra com funeral home, casa funerária em inglês) redesenha a relação de Alison, lésbica, com o pai, Bruce, um homossexual enrustido, que vive numa cidade provinciana. Bruce ora sublima seu desejo (e afetação) na decoração quase museológica da mórbida casa. Ora realiza-o, nos caracóis do musculoso Roy, o baby-sitter de seus filhos.

A barra às vezes pesa, mas Bechdel colore sua narrativa, cheia de flashbacks e em parte baseada nos obsessivos diários que escreveu na infância e adolescência, com diversos alívios cômicos.

"Uma das partes mais engraçadas do livro é a cena em que meu pai tenta me levar a um bar gay e o leão-de-chácara nos barra porque eu sou menor. É uma situação absurda e também um tanto trágica. O humor e a tristeza estão sempre entrelaçados para mim. Daí o subtítulo "uma tragicomédia em família'", escreve a quadrinista à Folha, por e-mail.

Bechdel diz que sua família se divertia muito. Não apesar da disfunção, da anormalidade, mas "somada a ela, em paralelo". "Acho que o título do livro demonstra muito bem o estilo de humor levemente tolo e mórbido da minha família. Nós realmente nos referíamos à nossa casa funerária como o "lar da diversão'", diz Bechdel.

Coadjuvante

Os Bechdel, no entanto, acharam que a moça estava louca quando resolveu esquadrinhar os bastidores de seu lar. A mãe chegou a sugerir que ela fizesse algo fictício. Mas a quadrinista não abriu mão até de dar nome aos bois. No livro, Bechdel recorda como, pouco depois de revelar à família que era gay, recebeu um telefonema em que sua mãe disparou: o pai teve casos com homens.

Perplexa, sua personagem pondera: "Eu fora eclipsada, rebaixada de protagonista do meu drama pessoal a alívio cômico da tragédia dos meus pais".

Nem mesmo as suspeitas circunstâncias em que seu pai morre, aos 44 anos, atropelado por um caminhão, saem a salvo do humor peculiar de Bechdel.

No funeral de Bruce em "Fun Home", um senhor tenta consolá-la, dizendo que "a vontade divina às vezes é um mistério". Como paira a suspeita do suicídio, Bechdel pensa em responder: "Não é nenhum mistério!
Ele se matou porque era um veado maníaco-depressivo no armário que não agüentou mais um segundo nessa cidade pequena de gente obtusa".

Sexo

A Alison saindo do armário se surpreende com afirmações de lésbicas iniciadas, na linha "feminismo é a teoria, lesbianismo é a prática", e acaba se envolvendo com Joan, uma poeta "matriarquista". Salvo uma ou outra página com pele e pêlo à vista, a quadrinista é econômica nas "cenas eróticas". Diz que sua vida não foi "nenhuma orgia ininterrupta". E que a proporção das passagens sexuais explícitas, em relação às outras, é representativa da maioria da vida das pessoas.

"Sexo é importante, certamente, mas passamos muito mais tempo fazendo outras coisas." A estrutura de "Fun Home" é quase uma homenagem ao berço literário, e não à toa recheado de referências gays, de Bechdel. Ambos professores de inglês, seus pais aparecem no livro lendo um monte de clássicos da literatura. Os capítulos aludem a obras de Oscar Wilde ("O Marido Ideal"), Marcel Proust ("À Sombra das Raparigas em Flor"), Albert Camus ("A Morte Feliz") etc.

E Alison até costura histórias pessoais daqueles autores, como a de Oscar Wilde, com a do pai. Tal qual o escritor britânico, Bruce vai parar num tribunal por conta de uma conduta criminosa com um menor de idade. Bechdel diz que demorou para se dar conta, no entanto, de que os livros estavam formando a estrutura do álbum.

"Eu estava tentando escrever sobre o meu pai, mas não sabia muito sobre ele. Filhos têm uma perspectiva distorcida dos seus pais. A proximidade atrapalha que se enxergue claramente. Então comecei a buscar pistas da personalidade do meu pai nestes livros que ele amava.

E aos poucos eles começaram a rastejar para dentro da minha história", diz Bechdel. "Primeiro, como citações. Mas aí comecei a encontrar paralelos nas vidas dos autores e, por fim, num certo ponto, percebi que estava construindo cada capítulo em torno de um certo livro ou autor."

Bechdel não se livrou de psicanalismos de botequim. Justamente porque seus pais eram apaixonados por literatura, ela diz que passou quase toda a vida adulta negando ser escritora. Até optar pelos quadrinhos, que eram "um meio de expressão inferior". "E, mais importante, um meio para o qual meus pais não tinham critérios estéticos. Por isso, eles não podiam me julgar. É um pouco irônico que os quadrinhos estejam finalmente sendo levados a sério, pois é justamente sua natureza não-literária, popular, que inicialmente me atraiu."

Blog

Alison Bechdel mantém o blog "Dykes to Watch Out For" (sapatas com as quais se deve tomar cuidado), mesmo nome de tirinhas que desenha desde 1983, já publicadas em livro. O endereço: www.dykestowatchoutfor.com.

FUN HOME - UMA TRAGICOMÉDIA EM FAMÍLIA
Autora: Alison Bechdel
Tradução: André Conti
Editora: Conrad
Quanto: R$ 42,90 (234 págs.)

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