sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Ainda W.G.Sebald


Um texto interessante, capturado em "Gymnopedies - Acordes assimétricos. Palpites dissonantes. Puro formalismo atonal".

Tempo dissoluto, descaminhos da memória

Há em Os Emigrantes, de W.G. Sebald, um personagem, o pintor Max Aurach, que faz de tudo para que a poeira de seu ateliê nunca cesse de aumentar. “Como aplica grandes quantidades de tinta e sempre a raspa de novo da tela no curso do seu trabalho, o chão está coberto por uma massa de vários centímetros de altura já enrijecida, com uma crosta, misturada com pó de carvão e achatada nas beiras, parecendo um rio de lava, que Aurach diz ser o verdadeiro resultado de seus permanentes esforços e a mais evidente prova de seu fracasso (...) A poeira, disse ele, lhe era muito mais próxima do que a luz, o ar e a água”. Metafísico, o pintor acredita que “o tempo é um padrão pouco confiável, pois ele não passa de rumores da alma. Não existe nem um passado nem um futuro”.

Essas frases definem bem a experiência de penetrar um dos livros do autor alemão, tragicamente falecido em um acidente de carro em 2001, tendo lançado apenas quatro obras. Difícil é classificá-las: diário de viagem, ensaio, contos, romances, autobiografia... não dá para negar que se trata de um dos autores mais originais do século 20. É claro que dá para achar em Sebald elementos proustianos (no trato da memória e do passado, nos longos períodos e no estilo digressivo) e borgianos (na erudição do narrador, cheio de referências – como o caçador de borboletas que é ninguém menos que Nabokov – e na sua habilidade em transformar fatos ou biografias banais do passado em motivos grandiosos). Mas ele sem dúvida habita um território só seu, para o bem e para o bem.
Todos os personagens, os judeus exilados que compõem as quatro narrativas/contos/relatos de Os Emigrantes, estão como o ateliê de Max Aurach – cobertos por uma crosta, “parecendo um rio de lava”, prova de seu fracasso enquanto seres humanos. Todos deixaram para trás um pedaço de si – em forma de família, de amor, de religião, de princípios pessoais –, sucumbiram ante a Segunda Guerra e a pobreza, migraram para países desconhecidos e lá definharam, sonhando com o passado idealizado, enferrujando desassossegados sem notar que o tempo passa. Terminam ou no suicídio ou na insanidade. E enterrados pela areia do tempo de verdade: não encontramos aqui computadores, telefones celulares e outros acepipes modernos. Quase dá para sentir o cheiro de formol entre as linhas. E melancolia, melancolia. Nada de humor. Não faria sentido. Não é, como bem observou o New York Review Of Books, apenas "literatura do Holocausto". Além de fugidos da guerra, os personagens de Os Emigrantes são fugidos da vida (ou da vontade de dar seqüência/futuro a ela). Como nós. Somos todos emigrantes.
Sebald, que atua como narrador, permeia o texto com fotografias e imagens diversas (no que influenciou o americano Jonathan Safran Foer). Estou lendo agora seu outro livro lançado no Brasil, Os Anéis de Saturno. O homem é (era..) assustadoramente bom.

posted by Jonas Lopes
Já a foto que ilustra a capa da edição francesa de "Os Emigrantes" é muito mais atraente do que a da edição brasileira, não é?

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