domingo, 28 de outubro de 2007

Armadilhas ficcionais: modos de desarmar

Jornal do Brasil / Data: 10/4/2004
Lições para desarmar armadilhas da literatura
Ensaios analisam a ficção, de Mann a João Ubaldo

CLÁUDIA NINA

Armadilhas ficcionais: modos de desarmar é um apurado exercício de
investigação. O ''crime'' é supostamente aquele cometido por um
algoz que é também - e sobretudo - vítima de suas próprias
emboscadas: o narrador contemporâneo. Os instrumentos para ''desarmá-
lo'' são as teorias e a perspicácia com que os críticos destrincham
a ordem engenhosa, por vezes irônica e dissimulada, das complexas
estruturas de romances e contos da atualidade. Coletânea de ensaios,
Armadilhas reúne textos de seis professoras de Letras da Uerj e é
organizado por Carlinda Fragale Pate Nuñez .

Os autores analisados são de várias linhagens: de Thomas Mann a
Bernardo Carvalho, passando por Hilda Hilst, Graciliano Ramos, João
Ubaldo e Haroldo de Campos. O que orienta todas as leituras, como
diz Carlinda Nuñez na apresentação, não é o embuste ou a traquinada,
mas a inteligência astuciosa que preside a organização de cada um
dos textos investigados.

Entre os desafios, está o de investigar a narrativa de autores
jovens, que ainda não tiveram sua obra devidamente ''desarmada''
pela crítica acadêmica. É o caso, por exemplo, de Bernardo Carvalho
e seu romance Nove noites , que ganha na leitura de Sílvia Regina
Pinto, em ''Demarcando territórios ficcionais: aventuras e
perversões do narrador'', uma estimulante abordagem. Especialista em
literatura contemporânea, Sílvia se lança ao desafio de pensar a
obra de Carvalho como um território ficcional forrado de areia
movediça. Nada é o que parece ser. Mesmo trabalhando com verdades
históricas, explica, ''o autor perturba e dispersa a noção do
sujeito individual'', criando, no limite entre fronteiras
deslizantes, sujeitos ''performáticos e simulacros'' que narram a
trama mas não solucionam nenhuma das questões que levantam, deixando
ao leitor a tarefa de completar a história.

Sílvia relembra a classificação de Walter Benjamin dos tipos de
narrador - o clássico, o moderno e o jornalista - acrescentando a
estes o narrador ''performático'', aquele que ''põe em prática uma
encenação narrativa de referências e identidades perdidas,
transitando muitas vezes pela simulação e pelo simulacro'', sendo os
narradores de Bernardo Carvalho encenadores irônicos por excelência.
Como escreve Sílvia: ''Em Nove noites (...) o leitor se descobre
transportado para um mundo que parece realista, porque regido pelas
mesmas regras e princípios que o mundo real, o que na verdade é
apenas uma 'pista falsa' (...) A performance desses narradores
encontra-se na capacidade de construir armadilhas ilusórias que
jogam com o real, simulam, mas não deixam que ele seja realmente
captado.''

Hilda Hilst e seu Caderno rosa de Lori Lamby é o objeto de estudo do
ensaio ''Lori lambe a memória da língua'', de Ana Cristina Chiara,
autora de Pedro Nava: um homem no limiar (EdUerj). O narrador aqui é
duplamente simulado: uma menina de 8 anos, a Lori do título, que
oscila entre a candura e a corrupção sexual. Em seu caderno cor-de-
rosa ela registra cenas de escandalizar libertinos. A partir do
relato de Lori, Hilda constrói a ficção dentro da ficção numa
magistral habilidade em manipular as artimanhas do texto, colocando
a ''inocência'' a serviço das experimentações da linguagem. Como
escreve a professora: ''O sexo tematizado no Caderno rosa põe a nu
as possibilidades e impossibilidades de a palavra conferir imagens
estáveis de realidade e evidencia o
caráter 'artificial', 'artístico' do como dizer.''

É também a linguagem o interesse de Ana Lúcia de Oliveira no
ensaio ''Sobre a configuração babel-barroca da prosa minada de
Haroldo de Campos'', em que os fragmentos de Galáxias têm espaço
numa leitura que aproxima o poeta, segundo as pistas deixadas pelo
próprio autor, da estética seiscentista. Aprofundando a abordagem
com exemplos retirados de Galáxias , Ana Lúcia, autora de Por quem
os sinos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas (Eduerj), faz a
ligação entre um universo e o outro; o antigo e o contemporâneo se
unem em uma série de experimentações de linguagem, como a ''dobra'',
traço do barroco e também elemento crucial na arte de Haroldo de
Campos.

Em seu texto, explica Ana Lúcia, ''urde-se uma superfície plissada,
em que os mesmos motivos se cobrem e se descobrem, à maneira do
origami japonês (...). Num arabesco irônico, a escritura se volta
sobre si mesma, leque a dobrar-se e desdobrar-se, desenvolvendo suas
séries permutantes e suas estruturas circulares.'' As palavras
fundidas, ou palavras-valise, são alguns dos exemplos do virtuosismo
caro ao poeta concretista.

Diálogos inusitados surgem no artigo de Fátima Cristina Dias
Rocha, ''São Bernardo e Sargento Getúlio: vozes e gestos em
contraponto'', que articula a interação entre romances que
permaneceram meio ''isolados'' no campo da crítica, mas que, apesar
de escritos em épocas distintas, têm em comum, além da prosa áspera,
a afinidade entre os narradores e suas respectivas estratégias.
Fátima pede o auxílio teórico de Jean Starobinski e de uma série de
outros autores para sua investigação.

O livro se completa com dois outros ensaios: o de Maria Antonieta
Jordão de Oliveira Borba, intitulado ''Construção do objeto
estético: as relações entre mímeses/performance e schema/correção'',
uma reflexão sobre as idéias de Wolfgang Iser; e de Carlinda
Nuñez, ''Jogos fictícios na Veneza de Thomas Mann'', que faz uma
ponte entre o autor e a tradição, unindo marcadores do dramático e
da teatralidade ao discurso contemporâneo de Mann.

Embora sejam pequenos em extensão, os ensaios de Armadilhas
ficcionais são peças importantes na compreensão da narrativa
contemporânea ou mesmo de autores já consagrados, mas que recebem,
numa aproximação crítica inusitada, um novo olhar, ''armado'' - como
deve ser o de toda boa crítica.

Nenhum comentário: