sábado, 27 de outubro de 2007

Um falso mentiroso

Valor Econômico / Data: 28/7/2006
Um falso mentiroso

Olga Mello

A sinergia entre autobiografia, ensaio e história pode ser um
caminho para a literatura contemporânea, acredita o escritor Ricardo
Piglia, um dos mais aclamados ensaístas e romancistas da
atualidade. "Não é o único, mas é o caminho que mais me interessa",
disse ao Valor esse argentino de 61 anos que consegue trazer a
ficção para dentro dos estudos literários, os quais, por vezes,
pontua com intervenções de seu alter ego Emilio Renzi, personagem
presente em diversas de suas obras. A combinação de fatos reais com
ficção está dando certo: rendeu-lhe o Prêmio Planeta, em 1997,
por "Dinheiro Queimado" (Companhia das Letras), em que conta um
assalto a banco em 1965 e o cerco da polícia aos ladrões. No mês que
vem, Piglia estará na Feira Literária de Paraty (Flip), onde vai
falar sobre o quanto a literatura reflete a vida de quem a ela se
dedica - seja como escritor ou leitor. Tese que ele já apresentou em
livros, como a coletânea de ensaios "Formas Breves", lançada em 2004
pela mesma Companhia das Letras.

No epílogo de "Formas Breves", Piglia afirmava que a crítica é a
forma moderna da autobiografia. "A pessoa escreve sua vida quando
crê escrever sobre suas leituras. Não é o inverso do 'Quixote'? O
crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que
lê", dizia no livro. No ensaio "O Último Leitor", a ser lançado em
breve no Brasil, a vida e a leitura voltam a ser abordadas, sob novo
ângulo.

"Busquei reconstruir a figura do leitor em situações distintas e em
diferentes épocas. Segui os passos de Franz Kafka, de Che Guevara,
de Jorge Luis Borges, e também os rastros de figuras imaginárias e
muito intensas no papel de leitores, como Molly Bloom, de James
Joyce; Phillip Marlowe, de Raymond Chandler; ou Anna Karenina, de
Tolstoi. É um livro que escrevi ao longo de muitos anos, uma jornada
pessoal pelas recordações e pelos sinais de minha própria
experiência de leitor", diz Piglia, que atualmente trabalha no
romance "Blanco Nocturno", uma história de amor passada na época da
guerra das Malvinas, que tem um Emilio Renzi de 35 anos como
protagonista.

"Hoje em dia, ele está com cerca de 60 anos. Para mim, Renzi é uma
voz particular, um modo de ver a realidade. Renzi tem uma visão
irônica sobre o mundo e sobre ele próprio. Sempre me divirto com
suas aparições", esclarece Piglia.

Em "Blanco Nocturno" (o título remete à utilização de lentes
especiais pelos soldados ingleses para enxergarem alvos durante a
noite), Emilio Renzi se muda para uma casa de subúrbio, emprestada
por um amigo que saiu em viagem, nos primeiros tempos da guerra que,
por um breve momento, levantou o brio de um povo que sofria com a
repressão violentíssima durante a ditadura militar que matou
milhares de pessoas.

"Ele se isola, sente-se como um Robinson Crusoe, registrando os
fatos em seus diários, vivendo escondido como se fosse um desertor.
Na realidade, a novela acontece durante a guerra das Malvinas, mas a
guerra não é o tema. Meu interesse foi trabalhar sobre o efeito dos
fatos, mais do que sobre os fatos em si próprios. Trata-se de uma
história de amor em tempos de guerra, algo que Hemingway mostrou
em 'Adeus às Armas'. Além desse tema em comum, tem a noção de 'paz
em separado', que é a chave em Hemingway e que surge como obsessão
em Renzi, que se distancia da euforia generalizada que a guerra
provocou na Argentina nas primeiras semanas e se mantém à parte."

"Blanco Nocturno" deverá estar terminado no próximo ano. A primeira
versão já foi concluída, mas Ricardo Piglia acredita que escrever é,
essencialmente, corrigir. Entre a primeira versão de "Dinheiro
Queimado" e sua publicação passaram-se quase 30 anos. Durante esse
intervalo, o escritor lançou outros livros, muitos entrelaçando o
mundo real com a criação literária, algo que faz desde a década de
50, quando iniciou um diário que considera a história de sua relação
com a linguagem. Nos cadernos, inventou uma vida diferente, o que
teria tornado o diário uma espécie de romance, pois os
acontecimentos descritos haviam ocorrido de outra forma. A
superposição de realidade e ficção está presente em "Dinheiro
Queimado": "Quase tudo ali foi inventado. Apenas as características
dos personagens e a trama eram reais. Em 'A Invasão' há uma
história, 'Mata Hari 55', que também foi trabalhada com a técnica de
não-ficção".

Para Ricardo Piglia, é o cinema, hoje, na Argentina, que está mais
ligado à realidade imediata do que a literatura: "Ao menos isso
acontece com uma série de jovens cineastas que trabalham muito perto
do documentário, dentro da perspectiva do neo-realismo italiano.
Claro que também há outros cineastas argentinos maravilhosos, mais
próximos de uma tradição literária, como é o caso de Lucrecia Martel
ou de Martin Rejman".

Na literatura atual de seu país ele destaca Alan Pauls (autor
de "Wasabi", lançado pela Iluminuras): "um excelente escritor das
novas gerações, que é bem conhecido no Brasil, com diversas
traduções. Pauls está dentro da melhor tradição da literatura
argentina, embora tenhamos outros autores muito bons". Sobreviver de
literatura na Argentina contemporânea sem fazer grandes concessões
ao mercado, no entanto, é difícil, afirma Piglia, que também é
professor de literatura da Universidade de Princeton, nos Estados
Unidos.

"Em meu caso, sempre ganhei a vida lendo e ensinando modos de ler",
diz. E ressalva que não tem um método especial para
escrever: "Sempre trabalho de manhã. Meu único segredo consiste em
levantar cedo e deixar o telefone desligado até o meio-dia". Para
sua formação como leitor e escritor, ele aponta as influências de
Borges e Ernest Hemingway: "Dois grandes artífices da forma breve,
grandes mestres da alusão e da prosa precisa". Acha difícil
destacar "uns poucos nomes dentro da riqueza da literatura atual",
mas revela sua admiração pelos americanos Don DeLillo ("Cosmópolis")
e Phillip Roth ("O Complexo de Portnoy"), pelo mexicano José Emilio
Pacheco ("Alta Traicion"), o espanhol Enrique Vila-Matas ("O Mal de
Montano") e a conterrânea Sylvia Molloy ("Em Breve Cárcere"). Dos
brasileiros, conta que se sente muito próximo da obra de Silviano
Santiago ("Pátria Estranha") . "E também, como não poderia deixar de
ser, admiro e releio continuamente Guimarães Rosa e Clarice
Lispector." Reler, aliás, é um de seus hábitos. "Basicamente estou
sempre relendo. Nos últimos dias, voltei-me para 'Moby Dick', de
Herman Melville, um romance que li muitas vezes sempre com o mesmo
assombro e a sensação de que estou lendo pela primeira vez."

O Globo / Data: 17/4/2004
Irreverência, rigor, realidade e pistas falsas

Marcelo Moutinho

É o próprio Ricardo Piglia quem melhor sintetiza o que o leitor
encontrará nas 120 páginas de Formas breves. São "narrativas reais e
também variantes, versões imaginárias de argumentos existentes", que
compõem e dão viço à coletânea de ensaios do escritor argentino,
lançada pela Companhia das Letras. Ao abdicar de estabelecer
fronteiras rígidas entre verdade e ficção, ou mesmo entre o que
seria análise crítica ou puro deleite criativo, Piglia consegue, nos
11 textos do livro, operar com os mesmos mecanismos que crê
constituírem a argamassa da literatura atual: a falsificação,
a "mescla", a "combinação de registros", a "barafunda de filiações".

"Os textos não requerem maior elucidação. Podem ser lidos como
páginas perdidas no diário de um escritor e também como os primeiros
ensaios e tentativas de uma autobiografia futura", anota o autor.
Assim, a obra tem lugar tanto para relatos como "Hotel Almagro" —
que espelha de forma delicada os primeiros tempos de Piglia em
Buenos Aires, quando ainda se via dividido entre a capital argentina
e La Plata, província onde lecionava — quanto para alentados
estudos, como "Os sujeitos trágicos", no qual explicita alguns
pontos da relação conflitiva e tensa que viceja entre os campos da
literatura e da psicanálise.

Mesmo em tais ensaios é possível ver as digitais de um artífice da
criação. Há irreverência embaralhada ao rigor analítico. Há
passagens reais ao lado de pistas falsas. E há, sobretudo, boas
histórias. É o caso, por exemplo, da reprodução de um diálogo entre
James Joyce e o psicanalista C.G. Jung, que Piglia cita buscando
lustrar sua definição sobre o que seria um "artista". O autor
de "Ulysses" procurou Jung ansioso por uma solução para o quadro
psicótico da filha. Após mostrar ao psicanalista alguns textos
produzidos pela jovem, comentara, desconcertado: "Ela escreve o
mesmo que eu escrevo". A Joyce, que dava formas finais ao
seminal "Finnegans Wake", o psicanalista responde: "Mas onde você
nada, ela se afoga..."

As reflexões de Piglia trafegam pela obra de alguns dos mais
respeitados escritores argentinos, como Macedonio Fernández, Robert
Arlt e, evidentemente, Borges, cujas singularidades tornam-se,
em "Formas breves", pontos-de-partida para que o autor explore temas
como processo criativo, tradição e vanguarda, verdadeiras obsessões
de quem ama o ofício literário. Piglia acolhe a premissa de Borges
segundo a qual as literaturas "secundárias e marginais, deslocadas
das grandes correntes européias, têm a possibilidade de dar às
grandes tradições um tratamento próprio". Neste lugar incerto,
nasceria uma outra tradição, "clandestina", construída
retrospectivamente. Abrindo mais o leque, critica os que
mecanicamente igualam "vanguarda" à "modernidade". "Se ser de
vanguarda quer dizer ser `moderno', todos nós, escritores, queremos
ser de vanguarda", ironiza. Para ele, a vanguarda hoje converteu-se
num "gênero", e seus movimentos típicos — o isolamento, a ruptura
com o mercado esconderiam paralelamente "fantasias de ingressar nos
meios de comunicação de massa".

No livro, a fusão entre eruditismo e afeição, traço da prosa do
escritor argentino, alcança um de seus grandes momentos no célebre
estudo "Teses sobre o conto", em que define o gênero com base em
seu "caráter duplo". Segundo Piglia, o conto sempre narra duas
histórias, é construído para desvelar artificialmente algo que
estava oculto. "Um relato visível esconde um relato secreto, narrado
de um modo elíptico e fragmentário", que no conto clássico provocava
um efeito de surpresa e, na versão moderna, tornou-se mais
elusivo. "Formas breves" inclui ainda um estudo posterior, "Novas
teses sobre o conto", cujo foco centra-se na questão do "desfecho"
nas narrativas curtas.

Malgrado a variedade, os ensaios do livro dialogam entre si, expondo
o rigor e a paixão com que Piglia se entrega à literatura. "Todas as
histórias do mundo são tecidas com a trama de nossa própria vida.
Remotas, obscuras, são mundos paralelos, vidas possíveis,
laboratórios onde se experimenta com as paixões pessoais", vaticina,
como se ainda que precariamente resumisse seu olhar sobre a
escritura. Calvino, outro autor que soube como poucos fazer da
crítica um ofício criativo, assinalara que "as linhas uniformes de
caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de
parênteses, páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos
outros como grãos de areia, representam o espetáculo variegado do
mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas
impelidas pelo vento no deserto". É por estas dunas que Piglia
passeia.

Marcelo Moutinho é jornalista e escritor

Veja / Data: 4/2/2004
Achados a cada página

Ricardo Piglia mistura ensaio, ficção, memória e crítica literária
em sua nova obra

Jerônimo Teixeira

O título Formas Breves (tradução de José Marcos Mariani de Macedo;
Companhia das Letras; 118 páginas) poderia englobar virtualmente
qualquer coisa e, de fato, o novo livro do argentino Ricardo Piglia,
de 62 anos, inclui um tanto de ensaio, de ficção, de memória, de
crítica literária. No epílogo, Piglia propõe que seus textos sejam
lidos como "páginas perdidas no diário de um escritor"
ou "tentativas de uma autobiografia futura". Para ele, a crítica –
gênero predominante nessa nova obra – é a forma mais depurada da
autobiografia. "O crítico é aquele que encontra sua vida no interior
dos textos que lê", diz ele no epílogo. E o escritor, poderíamos
dizer em reverso, é quem esconde sua vida no interior dos textos que
produz.

Os eventos centrais na vida do leitor Ricardo Piglia são Roberto
Arlt, Macedonio Fernández e, claro, Jorge Luis Borges. Com obras e
temperamentos muito distintos, esses três nomes da literatura
argentina do século XX são os personagens centrais de Formas Breves.
Leitor sensível das formas fragmentadas de Macedonio, das
extravagâncias de Arlt e das obsessões literárias de Borges, Piglia
soube cozinhar muito bem essas influências. Sua dívida para com tais
antecessores é evidente, mas o autor de Respiração Artificial está
muito longe de ser um mero epígono. Em Formas Breves, avulta a
lucidez criativa com que ele recorre à lição desses e de outros
escritores, como Kafka.

Piglia é professor universitário. Sua familiaridade com a teoria
literária é evidente, mas ele não se vale do jargão acadêmico. Em
linhas rápidas, vai acumulando achados a cada página. Mencionemos um
daqueles achados tão originais que chegam a parecer óbvios depois de
revelados: em várias obras consagradas da literatura argentina, como
O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, ou O Aleph, de Borges, o
personagem central alcança uma iluminação intelectual depois de
sofrer uma desilusão amorosa. Piglia nota que esse também é o
esquema básico do tango: depois de perder a mulher, o homem "olha o
mundo com olhos metafísicos e extrema lucidez". Cambalache, tango de
Discépolo, seria "O Aleph dos pobres".

O título Formas Breves encontra sua justificativa mais clara nos
textos Teses sobre o Conto e Novas Teses sobre o Conto. Esse gênero,
segundo Piglia, é sempre duplo. Traz uma história superficial,
conduzida pelos eventos factuais narrados, e uma história secreta,
da qual o leitor só toma conhecimento por indícios e sugestões mais
ou menos sutis. O bom contista tem de conhecer a arte do
ocultamento, fazendo a história subterrânea aflorar em momentos
decisivos. De certa forma, pode ser um roteiro para ler a ficção do
próprio Piglia – de quem o leitor vai querer conhecer mais, ao
chegar ao final deste livro.

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