quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Literatura é paradoxo

Silviano Santiago: "Literatura é paradoxo"Por Carlos Eduardo Ortolan Miranda O escritor comenta seu novo romance, "O Falso Mentiroso", lançado pela Rocco, as memórias de um artista-falsário.Dono de forte veia polêmica, o escritor e ensaísta Silviano Santiago sempre buscou enfrentar, seja em sua obra ficcional, seja na teórica, as questões do mundo contemporâneo. O leque temático na entrevista que se segue abrange das estéticas da chamada pós-modernidade às relações entre a violência e o discurso, do papel do intelectual periférico latino-americano à transgressão e o universo pop, das artes plásticas brasileiras ao papel ético da imprensa, da fotografia de Sebastião Salgado e da arte engajada à crítica literária marxista.As provocativas análises de Santiago inscrevem-se na matriz filosófica que provém principalmente de Michel Foucault, GillesDeleuze, e Jacques Derrida, com recurso à psicanálise de Lacan e aos estudos culturais.Seu novo romance, "O Falso Mentiroso" (ed. Rocco), as presumidas memórias de um artista-falsário cuja "obra" principal é a reprodução esmerada das xilogravuras de Goeldi, é inspirado no romance picaresco espanhol, no Machado de Assis de "Brás Cubas" e em Manuel Antônio de Almeida e Oswald de Andrade.Na obra, a apreciação particular do autor da experiência da modernidade em contexto periférico o conduziu a adotar, do ponto de vista estilístico, uma voz narrativa que atravessa o registro do sublime e do grotesco.O livro combina referências eruditas da alta cultura (Machado,Platão, esforços de cosmogonia e laivos psicanalíticos acerca da formação da subjetividade) ao universo das letras de canção popular e do cinema, do circo e da política brasileira, do erotismo e da linguagem escrachada.Decorrem daí as antinomias verdade-falsidade, o papel e função da arte realista e da mimese, a idéia de originalidade e mesmo a da construção da identidade subjetiva como similar ao trabalho ficcional, tematizadas no romance, desvelando os vínculos inescapáveis entre arte e pensamento.A partir desse "saco de gatos" de referências e multiplicidades analíticas, como define Santiago a "balbúrdia da pós-modernidade",pontos vitais do sentimento de perturbação da cultura e da política do mundo em que vivemos são vistos por uma perspectiva que busca não elidir a complexidade dos temas, e que pensa a realização da obra de arte como atividade reflexiva (embora, como confesse o autor, não sistemática em sentido forte), e talvez fosse justo afirmar, a reflexão como construção artística.Silviano Santiago, nascido em 1938 em Formiga, Minas Gerais, vive há décadas no Rio de Janeiro. É ensaísta, crítico literário e premiado autor de ficção (três prêmios Jabuti nas categorias conto e romance) e colaborador freqüente nos cadernos culturais dos principais jornais e revistas do país.Destacam-se, na sua obra, os volumes de ensaios "Uma Literatura nosTrópicos" e "Nas Malhas da Letra", os romances "Em Liberdade"e "Stella Manhatan" e o livro de contos "Keith Jarrett no Blue Note"(todos pela Rocco).Seu mais recente romance, "O Falso Mentiroso", constitui-se, já apartir do título, por uma série de paradoxos: um memorialista que é assumidamente um impostor, um falsário que se julga um modelo de originalidade. Todo livro é atravessado por essa antinomia verdade-falsidade, o que gera toda a sorte de duplicidades e ambiguidades.
Como se dão essas ambiguidades e como se relacionam com o realismo em literatura?
Silviano Santiago: Para falar sobre o paradoxo, eu tenho que me deter no paradoxo maior, que é o que nós chamamos, desde o séculoXIX, de literatura. Desde esse século ficou bastante patente, mesmo nos movimentos onde a taxa mimética era muito alta, como no realismo/naturalismo, o que se tratava de ficção.A ficção é antes de mais nada, enquanto configuração ou definição,uma mentira, uma invenção, uma fabulação. Uma mentira, uma invenção,uma fabulação que acompanhada da palavra "ficção" ou da palavra "literatura" adquire um valor de verdade sobre aquele tema que está sendo tratado. Se por acaso o tema tratado é o SegundoReinado no Brasil, não há dúvida nenhuma que Machado de Assis seria aquele que melhor mentiu, aquele que melhor falseou, aquele que melhor inventou esse período histórico.Pelo fato de aquilo ser ficção, adquire um estatuto que deixa aquele discurso, já que no fundo estamos falando de discurso, como uma pedra de toque na análise circunstancial daquele período histórico,econômico, social etc. Esse é o primeiro paradoxo, a constituição da literatura já é alguma coisa de paradoxal.O que se questiona sempre quando se faz literatura ou se faz arte,de maneira geral, é o que vem a ser o que tradicionalmente o bom senso chama de "realidade", ou de representação do real, ou representação real. Ela está questionando, mas ao mesmo tempo dizendo que está falando sobre a realidade. Só que está falando sobre a realidade, descrevendo, analisando, criticando a realidade através de um atalho, de um desvio, que é a ficção.Os paradoxos que você cita, como o do título, por exemplo, é, ao meu ver, a tradução do que é literatura. "O Falso Mentiroso", na medida em que ele tem um discurso mentiroso, mas ao mesmo tempo afirma que esse discurso é mentiroso, é uma proposição verdadeira. Então estou pedindo ao leitor que tome aquelas proposições como verdadeiras, apesar de que elas podem ser às vezes do memorialista, e podem ser por vezes do ficcionista. Mas essa, se não me engano, é a condição da memória em tempos pós-psicanalíticos.A construção da identidade, depois da psicanálise, a questão da identidade é um "constructo", é uma constante reelaboração, como no conceito de Lacan e de Derrida de a posteriori, après court, que diz que constantemente estamos reorganizando a "placa-mãe" da nossa memória, e essa reorganização da placa-mãe é sempre uma nova invenção de identidade que está sendo proposta.Foucault também tem uma bela passagem na "Arqueologia do Saber" em que diz: "Por favor, não me confundam com o retrato três por quatro, isso não é identidade"...Ou seja, importa é a fabulação de si mesmo, o processo de subjetivação. Portanto, existe no tipo de ficção que fiz dessa vez um processo de subjetivação que se apresenta necessariamente como fragmentário. O personagem não tem princípio, meio e fim, como tem um personagem do romance do século XIX, de Balzac. O personagem se apresenta, para retomar uma expressão de Cortázar, como um modelo para armar.Isso não é novidade na minha literatura, porque em um dos meus romances, "Stella Manhatan", eu já propunha o personagem constituído como dobradiças, como as da obra de Ligia Clark, por quem tenho enorme admiração. A dobradiça permite que você vá montando placas, que caso não fossem montadas, seriam totalmente planas, chatas e sem nenhum interesse. Então essa montagem é requerida, na medida em que se trata de uma prosa fragmentária.No limite, meu personagem não é um impostor. Qualquer pessoa que tenha experiência de psicanálise sabe que você está constantemente fabulando sua própria identidade, refazendo a sua identidade, até o momento em que tenha certa tranquilidade em relação àquela construção que você fez. Em última instância é uma atitude literária antiproustiana, não há uma memória involuntária, é uma memória, por assim dizer,beckettiana, na medida em que ela se arruma, mas se dá conta de que aquilo que arrumou é uma armação, no duplo sentido da palavra, de ser construída e, no sentido vulgar, de ser logro, de enganar, a si próprio e ao outro.Nesse sentido, o livro tem um tour de force, pois em nenhum momento eu usei uma adversativa. Não há o uso das adversativas("mas", "porém", "contudo"), já que o emprego delas neutralizaria o jogo entre falsidade e verdade. A não utilização das adversativas permite, do ponto de vista lingüístico, esse caráter fragmentário da prosa. Isso é importante como proposta de ritmo literário: a rapidez, a agilidade. O livro está sempre caminhando, mesmo que esteja se contradizendo, mesmo que a própria execução dos capítulos demande a releitura.
O seu livro assume tons narrativos muito variados, do sublime ao grotesco, da paródia escrachada à voz filosofante, do romance picaresco ao intimismo confessional. É justo dizer que esses tons narrativos se formam a partir da junção da ironia machadiana e da voz modernista, da utilização de elementos populares e da chamada alta cultura?
Santiago: Eu acho mais justo pensar a pós-modernidade do que propriamente Machado e a modernidade. Mas sem descartá-los, você tem razão, uma vez que a pós-modernidade não descarta esses elementos.Eu diria que o livro está numa tradição européia, ocidental, e em uma tradição brasileira.Machado está presente, embora o julgamento dessa presença seja de competência da crítica. O pior crítico é o próprio autor.Já a partir do subtítulo do meu livro, "Memórias", há a influência de "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, que é, ao meu ver, a melhor expressão em português do chamado romance picaresco espanhol.Por outro lado, em relação às "Memórias Póstumas de Brás Cubas", as alusões são bastante óbvias, e, finalmente, as "Memórias Sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade. Esses três livros serviram de objeto de reflexão, de modelo, recorri a eles quando me encontrava em becos sem saída, no meio do trabalho. Muitas vezes a solução vinha dessas leituras, dessas lógicas externas.Nesses três livros você perceberá, não de forma tão escrachada como no meu, que há essa mistura de gêneros.Aliás, se você toma a própria situação de Machado de Assis dentro do realismo/naturalismo, ele é um autor que foi buscar inspiração no século XVIII, e não na estética dominante, e isso também é importante para mim. Em lugar de buscar apoio na estética dominante e fazer um romance semelhante aos outros que já fiz, que seria a pós-modernidade, eu imaginei que a melhor maneira de me situar nessa pós-modernidade seria buscar modelos que escapam tradicionalmente a ela,como o modelo picaresco do romance espanhol.O modelo picaresco traz justamente essa vantagem, a mistura de gêneros, e também a possibilidade de manipular elementos que são da alta cultura, da baixa cultura e da cultura pop.Esse modelo permitiu algumas digressões do narrador, a alusão a Kubrick, a Orson Welles, ao marxismo, ao liberalismo, e assim por diante.São fábulas que dão uma dimensão da balbúrdia em que nós vivemos. O que quero passar, em última instância, é a balbúrdia da pós-modernidade - e não há possibilidade de ordenar essa coisa. A ordem terá que ser uma ordem bagunçada. Assim como, em determinado momento, Joyce teve de se valer do mito, como explica T.S. Eliot, para ordenar uma situação que pretendia dramatizar.Eu me vali dessa confusão atual, não diria uma anomia, mas uma balbúrdia. Há um excesso de sons, de palavras, de imagens, um excesso de tudo. Então, para apreender esse excesso, só há a bagunça, o saco de gatos.
Em seu ensaio "Retórica da Verossimilhança", o senhor afirma, acerca dos descaminhos que encontrava na crítica machadiana, que Machado é essencialmente um romancista "ético". Em uma passagem de seu novo romance, o narrador afirma que "o ilegítimo é bom", uma espécie de versão deturpada do platonismo. Quais as decorrências éticas de uma afirmação dessas?Santiago: Uma extrema deturpação. Ou você toma isso como uma piada, como encontra constantemente em Samuel Beckett, por exemplo, ou pode tomar como uma coisa um pouco mais séria, e aí há conseqüências graves. O que está em jogo é a questão de norma.A gravidade ética dessa atitude do meu narrador é a afirmação de que "transgredir é necessário". E uma das maiores transgressões que você pode fazer ao platonismo é afirmar que a cópia é legítima. A cópia, por definição platônica, é ilegítima. Portanto, quando você coloca a cópia dentro de uma clave do sublime, que é uma das propostas do livro, é natural que você possa qualificá-la como boa e como bela.Porque eu estou formando uma outra cadeia. Uma cadeia que transgride o platonismo, que me permite portanto estabelecer valores que estão mais próximos da nossa condição pós-moderna do que o platonismo.A própria noção que temos hoje de invenção, ela, a partir do conceito de escritura de Derrida, já não possibilita crer que exista um criador absoluto, um demiurgo. Ele será sempre objeto de escárnio, jamais será tomado a sério. Embora ele possa aparecer na obra de arte, será sempre nessa chave irônica. Mas essa figura ainda tem força, porque o conservadorismo é bem mais forte do que pensamos. E essas forças conservadoras tentarão rearticular esse tipo de afirmação como nonsense, bobagem, ou que é ficção, uma mentira.Paulo Emílio Salles Gomes, ao tratar da identidade do cinema nacional, falou sobre o fato de estarmos, nós brasileiros, eternamente condenados à "dialética perversa de não ser ou ser o outro".
Como a perspectiva da cópia que é tratada em seu romance relaciona-se com a questão da identidade nacional?
Santiago: Eu tenho trabalhado essa questão há muito tempo, em particular num ensaio intitulado "O entre-lugar do discurso latinoamericano", no qual eu havia proposto que o escritor latino-americano, ou em sociedades estética, economica e socialmente dependentes de uma certa hegemonia metropolitana, ele é obrigado a trabalhar com formas-prisões, e uma das coisas que destaco é que a forma-prisão é sempre canônica, ela é imposta de fora. É aquele exterior com o qual temos de conviver, devemos conviver, e na medida do possível devemos transgredir, para que surja uma voz que tenha certa originalidade, que não seja mera cópia.Portanto, quando eu falo de cópia, estou usando a palavra "cópia" no sentido de transgressão a alguma coisa, não é a cópia xerox. A cópia repete em diferença. E o que conta nessa repetição em diferença é exatamente a diferença, e não a repetição. Esse processo está, por exemplo, no modernismo, em uma das suas vertentes mais fortes, a da paródia. "Minha terra tem palmeiras" e "Minha terra tem Palmares". A diferença entre "palmeiras" e "Palmares" institui um campo semântico fascinante, e daí o interesse de Oswald de Andrade. Esse jogo não precisa ocorrer entre o nacional e o estrangeiro, pode ocorrer dentro do nacional, para que não se diga que faço "nacional por subtração".Eu não tenho medo de tratar o nacional, e isso é uma coisa importante para o artista brasileiro. Acreditando, antes de mais nada, que o nacionalismo é uma atitude pragmática, que, caso não seja tomada, as conseqüências podem ser terríveis para isso que chamamos, com todo cuidado, de cultura brasileira.Então, a questão da cópia, aí, tem um caráter transgressor que dificulta a compreensão do que seja a cópia. Porque a cópia no sentido em que a utilizo requer uma leitura em transparência, porque você tem de ler através da cópia o texto ou os textos canônicos de que se valeu o criador para produzi-la.Foi a partir daí que criei o conceito de "entre", "entre-lugar", o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá, nem lá, é um determinado "entre" que tem que ser inventado pelo leitor.É capital, em tudo que penso, o leitor como um manipulador de objetos. E esse leitor é que fica "entre", entre o canônico e a cópia. Esse leitor, portanto, é capaz de ler e interpretar o que é a transgressão. Sem essa leitura da transgressão, ou bem nós fazemos alguma coisa que achamos que é original, mas no fundo não o é, ou a gente faz cópia-cópia, e acredita estar dando uma grande contribuição.Foi bom você ter lançado o nome do Paulo Emílio, porque esse problema, creio, é muito mais chocante na arte cinematográfica. O filme já tem que existir para o mundo, porque ele pretende utilizar uma linguagem que é universal, que é a linguagem da imagem, enquanto na literatura nós temos uma falta de sorte e a sorte grande, já que trabalhamos com uma língua estranhíssima chamada português.Com isso, posso fazer meu trabalho sem me preocupar demais com a exterioridade da língua portuguesa, enquanto que, se fosse cineasta, não poderia estar produzindo imagens sem me preocupar com a exterioridade daquelas imagens brasileiras ou produzidas no Brasil.Um filme como "Carandiru", por exemplo, é muito complicado, porque você não sabe se se trata de algo que se está fazendo com uma grande originalidade, se se trata de uma cópia transgressiva de todos aqueles filmes americanos sobre prisões ou, ainda, finalmente, se não é uma mera imitação daquilo para poder entrar no mercado universal com maior facilidade.Em literatura, por sorte, e por azar, nós estamos fora desse esquema. Isso funciona muito melhor para as artes que lidam com a imagem, as artes plásticas, o cinema, onde nossos artistas conseguem muito mais facilmente reconhecimento, como Hélio Oiticica, LígiaClark, Glauber Rocha etc.
Como o senhor vê a relação entre a literatura e a periferia das grandes cidades? Mais especificamente, como vê manifestações como "Cidade de Deus" de Paulo Lins, os livros de Ferréz, as letras de rap? Esse movimento tem um caráter progressista ou é mera estetização da violência? A difusão dessas obras é ajudada pela má consciência burguesa?
Santiago: Eu acho que ocorre as três coisas. Em primeiro lugar, é um movimento dos mais importantes, que teve uma prática muito boa e muito saudável na América hispânica, o chamado "testimonio". Dar voz ao índio, por exemplo, esse "dar voz a", politicamente, é capital, é a coisa política mais importante dos últimos anos.Os últimos anos, convenhamos, não foram nada revolucionários, foram bastante reacionários, mas dentro desse reacionarismo geral, você poder dar voz ao índio, ao negro em "Cidade de Deus", ao afro-brasileiro, ou ainda, a prisioneiros, todos esses grupos marginalizados, ou periféricos no sentido muito amplo da palavra.Não é apenas a periferia da metrópole, mas uma periferia do próprio país, de uma nação. Acho isso politicamente perfeito, é um trabalho que tinha que ser feito.Agora, eu pessoalmente, não gosto de fazer esse trabalho, não é o meu forte. Como também não é o meu forte acreditar numa arte dirigida. Apesar de reconhecer, ao contrário do que muitos cineastas cariocas falam, que muitas vezes a arte tem que ser um pouco dirigida, sobretudo se é paga pelo Estado. Você tem todo direito de querer fazer arte fora do Estado, um outro produto, para isso existe imaginação, existe invenção, existem os mais variados recursos: capital estrangeiro, produção barata, sair do cinema e fazer outra proposta em audiovisual, por exemplo.O que me incomoda nesse tipo de arte é exatamente a espontaneidade.Aquilo que a priori é o melhor desta arte, a posteriori torna-se problemático. Essa espontaneidade é uma voz não reflexiva. É uma voz que traz muitos cacoetes, que muitas vezes busca a celebridade.Como vemos no caso célebre do "Pixote", que foi desastroso. Tem um problema muito complicado aí, que é o da espontaneidade, a priori maravilhosa.Na medida em que ela é espontânea, a nós, que fomos formados por estéticas construtivistas no século XX, são obras muito palavrosas, onde a graça, a priori, é o palavroso. Já que não somos palavrosos, é uma forma que nos incomoda, mas ao mesmo tempo é uma graça. Acho, por exemplo, que uma das graças de Bob Dylan e de Woody Allen foi terem descoberto que a periferia judaica em relação à nação americana era o palavroso. Aquelas canções enormes, infindáveis, do Dylan, os filmes do Woody Allen com seus personagens que falam pelos cotovelos… Porque a cultura "Wasp", dos brancos norte-americanos era pragmática, muito medida, muito calculada, onde não poderia haver nenhum dispêndio de nada, por isso o célebre copidesque, que estava ali para cortar tudo que fosse excessivo.O que eu acho fascinante num grande artista é ele ter sido capaz de aproveitar esse toque periférico e dar a ele uma dimensão que o transcende. Aparentemente estou fazendo a apologia da arte burguesa, mas não estou, mostrando como o melhor da história virá se houver uma combinação, uma aproximação, uma miscigenação dessa contribuição propriamente periférica com a contribuição dos artistas naquele momento. Acho que esse meu livro tem essa tentativa, porque qualquer pessoa que entre numa periferia com os ouvidos abertos sabe que um dos traços característicos da fala é a licenciosidade, é o palavrão.O linguajar chulo é fascinante, é a maneira como essas pessoas se expressam dentro de um universo que os levou a empobrecer a língua a tal ponto que tudo é adjetivado por palavras chulas, e isso é ótimo.Agora, por outro lado, o que você faz com isso? É o que tento fazer em meu livro, mas através da reflexão. Há uma abertura para o vocabulário chulo, já que este, em um escritor burguês, abre as portas para que se discuta com mais propriedade determinados temas que são tabus. E é isso que me interessou, discutir certos temas que são tabus sem muito preservativo, sem luvas de pelica. Isso que não é uma característica da minha prosa, nem de meu universo lingüístico, foi trabalhado e penso que pode ser interessante falar abertamente, sem pruridos pequeno-burgueses.
Como o senhor pensa as relações entre linguagem e violência? A linguagem é violência, ela reflete a violência?
Santiago: Existe uma coisa que é a linguagem descritiva da violência, que é antes de mais nada jornalística. E aí há uma tendência "natural" do homem que se exerça censura sobre essa linguagem descritiva da violência, que pode ser a violência da favela, e pode ser também a do poder. Até que ponto isso é permitido, seria a questão. Tivemos recentemente um exemplo com as fotografias do acidente da Lady Di, ou seja, os ingleses ficaram indignados, porque há ali uma descrição daquele acontecimento que escapa às regras do decoro, do conceito do século XVII de bienséance do teatro de Racine. Ou seja, certas coisas não podem ser exibidas em cena.Eu sempre fico com o pé atrás em relação à censura, qualquer que seja o argumento de que ela se valha.Claro, o material tem que ser analisado, é necessário ver o que o jornal americano fez, se aquilo era relevante para que se esclarecesse algo. Não é o decoro que importa. Mas, se aquilo é usado como matéria sensacionalista, o que está errado é o sensacionalismo da linguagem, o que se buscou com aquelas imagens.Isso, eu detesto.Daí passamos para um segundo tipo de relação entre linguagem e violência que escapa do jornal. Tenho aqui pensado o jornal porque nas sociedades burguesas atuais é o meio de comunicação mais público, o de maior acesso do público. Qualquer pessoa alfabetizada pode ter acesso às informações.O segundo caso, que é o mais complicado, é o do aproveitamento artístico da violência. E aí entramos num terreno em que obviamente não faz sentido censura, nem faz sentido apelar para a censura, porque não há essa condição pública como há no jornal. E aí aquestão mais delicada a ser analisada é a do circuito. Acho que analisar linguagem e violência sem pensar o circuito em que se inscreve a obra artística é um perigo.A linguagem e a violência têm que ser pensadas de acordo com o meio de comunicação: no cinema, na fotografia, na literatura.A linguagem e a violência no cinema já têm também um recurso de censura, que é a classificação faixa etária.Mas a questão que me interessa no cinema, quanto a isso, é que o perigoso é a apologia. Não é que o crime não deva ser punido, o problema é quando a utilização da violência não é acompanhada por uma reflexão. Em que os personagens estão por demais soltos dentro da trama, e não fazem nada mais além do que repetir ações convencionais. Há uma semelhança muito grande entre esse tipo de filme a que estou me referindo, em que a ação é sempre a mesma,sempre repetida, e o filme pornográfico, no sentido preciso da palavra, onde há uma sucessão de atos sexuais ad infinitum, mecanizados. E que, em lugar de nos trazer um melhor entendimento do que seja o corpo humano, do que seja a libido, do que seja asexualidade, há simplesmente um massacre. A isso eu chamo de apologia. O filme pornô faz uma apologia do sexo pelo sexo, e o filme violento faz a apologia da violência pela violência.Há um terceiro caso, o mais delicado de todos e herdado dos anos 30, que é como incorporar a periferia à arte burguesa. Essa questão nos leva a um problema que tem que ser configurado desde os anos 30, que é o da estetização da pobreza, ou da violência, ou do ato sexual.Não se trata de dizer que estamos diante de uma obra de arte medíocre, trata-se antes de ver em que sentido há a possibilidade de um olhar crítico entrar naquele universo, que é muito fechado, e poder desmascarar motivações que são às vezes surpreendentes. E vou aqui me referir ao trabalho de um dos mais famosos fotógrafos, que é Sebastião Salgado.Quando você analisa as fotografias de Sebastião Salgado e as compara com as de Lewis Carroll, terá resultados surpreendentes. Porque Lewis Carroll pegava aquelas crianças, meninos e meninas, vestia-os como mendigos e os fotografava. E era uma beleza. Então há uma perversidade no olhar de Lewis Carroll que existe também na arte deSebastião Salgado. E isso destruiria a questão da estetização, pois haveria um olhar perverso por detrás da câmera. É um olhar perverso que monta aquelas imagens das crianças pobres da Ásia, da África, doBrasil etc. É essa perversidade que é fascinante e que me impede de olhar o trabalho apenas como estetização da pobreza.Mas o grave é que as pessoas só vêem assim, como estetização da pobreza. Os bancos internacionais que o patrocinam constantemente, pois já vi em vários lugares do mundo exposições do Salgado financiadas por bancos, não são capazes de descolorir essa estetização e perceber que há lá coisas fundamentais sobre nossa relação com a pobreza, sobre a nossa relação com a infância, sobre os nossos sentimentos mais íntimos e que nos levam a escolher aquilo como objeto.Então, eu proporia que nós víssemos essas obras, que são muito bonitas, esteticamente muito bem realizadas, muito coerentes, mas sem cair nessa arapuca da estetização. É outra situação, mas que requer que se entre nesse mundo de uma maneira nova, sem maniqueísmos, de total apoio e solidariedade -ou de total rejeição.
Como o senhor pensa a relação entre crítica literária e verdade?
Santiago: Há que distinguir discursos. Existe o discurso do historiador da literatura, cujo instrumental quanto mais científico for, melhor. E aí há todo um trabalho a ser feito, pois continuamos a fazer história da literatura a partir de estilo de época. Isso tem de acabar. Mesmo nossos últimos grandes historiadores da literatura, Afrânio Coutinho e Antonio Candido, incorrem nisso, e quando Haroldo de Campos faz uma incursão na historiografia literária, vai para o barroco.Um segundo ponto seria o daquele crítico que tem uma metodologia muito rigorosa, e que eu admiro. Fica óbvio que a metodologia mais rigorosa que temos hoje é a marxista. E Roberto Schwarz seria o grande exemplo no Brasil, enquanto Fredric Jameson seria nos EstadosUnidos.O grave problemas deles, para usar uma imagem do cinema, é que têm um elenco pequeno. Aquilo não dá conta de uma certa grandeza que a literatura tem, mesmo quando ela é só boa, ou até mesmo quando ela é medíocre. Eles não conseguem dar conta.Por exemplo, para Roberto Schwarz, o século XIX é basicamente Machado de Assis, com um elemento periférico em José de Alencar, e no século XX é Oswald de Andrade, com Mário de Andrade na periferia.Não sei, por exemplo, o que o Roberto pensa sobre Drummond, sobre Bandeira. O elenco é pobre. O que aparece é lido com grande maestria, mas as ausências me incomodam, além do sistema que ignora as coisas simplesmente boas e as medíocres, que também são importantes.A terceira categoria, na qual me incluo, é a do ensaísta, do livre-atirador. Que deve ter referências as mais precisas possível -no meu caso, a referência mais óbvia seria a condição pós-moderna e, por outro lado, aquilo que a partir da Inglaterra se chamou de crítica cultural. E essas duas referências não são metodologias rigorosas de leitura, não formam sistema. E, por isso, é claro que pecarei por excesso, porque meu elenco é muito vasto, para usar minha crítica aos marxistas. Para mim os figurantes são tão importantes quanto os atores de apoio e as estrelas, e tento dar conta disso com base em minhas leituras e minha obra de ficção.
Carlos Eduardo Ortolan Miranda é tradutor e crítico, mestrando em filosofia na USP.

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