quinta-feira, 25 de outubro de 2007

W.G.Sebald


Excelente artigo sobre um excepcional autor contemporâneo.Li os dois livros de Sebald publicados no Brasil e, na minha avaliação, "Os Anéis de Saturno" é melhor.Quanto a foto que ilustra este post,poucas vezes vi uma capa de livro retratar tão bem a obra de um escritor.
O silêncio de W.G.Sebald
Por Flavio Moura

É sempre perigoso escrever sobre uma descoberta recente. O risco de a impressão inicial prejudicar o juízo é grande, assim como são maiores as chances de o tom da avaliação soar descalibrado. O problema é que fica difícil conter os superlativos quando se lê pela primeira vez um livro de W. G. Sebald, escritor alemão morto num acidente de carro em dezembro de 2001, aos 57 anos e no auge da produtividade.
Só em 2002 seus livros começaram a sair no Brasil. Primeiro veio “Os Emigrantes”, romance traduzido para o inglês em 1996 que foi considerado uma obra-prima por leitores tão diversos quanto Susan Sontag, Michael Ondaatje e A. S. Byatt. Agora é a vez de “Os Anéis de Saturno” (1995), lançado pela Record em meados de dezembro e recebido pela crítica estrangeira com igual efusão.
Nessa obra, assim como em outros de seus livros, um narrador indistinto do autor vaga sozinho por paisagens sombrias da Europa. Ele intercala suas impressões de viagem com breves perfis de personagens, alguns conhecidos, outros completamente obscuros, que de algum modo se relacionam com os locais por onde passa ou com as reflexões suscitadas pela contemplação. O texto é entrecortado por fotografias tiradas pelo próprio autor, por reproduções de mapas e de livros antigos. Sem legendas e às vezes relacionadas de maneira indireta com a narração, as imagens intensificam a atmosfera de deslocamento e de silêncio que envolve suas histórias.
A viagem em “Os Anéis de Saturno” é pelo condado de Suffolk, na parte leste da Inglaterra. Uma estada breve no balneário de Lowestoft, por exemplo, basta para que o andarilho se lembre de Joseph Conrad e dos dias em que o autor de “O Coração das Trevas”, ainda mal iniciado na marinha mercante, passou pela região. Conrad remete-o a Roger Casement, primeira pessoa a denunciar as atrocidades cometidas pelo Rei Leopoldo durante a colonização do Congo Belga, no fim do século XIX.
E assim segue até a próxima parada, onde uma associação semelhante o conduz a percursos mentais igualmente diversos. Vemos o narrador às voltas com o médico Thomas Browne, que no século XVII teria participado da aula de anatomia retratada no famoso quadro de Rembrandt; às voltas com colegas professores que lhe falam sobre as obsessões de Flaubert; com contos de Borges que remetem a meditações sobre o tempo; com histórias da Primeira e da Segunda Guerra; com camponeses excêntricos ou considerações sobre a China no século XIX e o bicho da seda.
À primeira vista, é tentador aproximar seu procedimento da tradição romântica do “caminhante solitário”. Mas aqui a natureza não é refúgio nem reduto último de uma ordenação harmônica, e sim uma realidade áspera e hostil. Também seria possível ver pontos de contato com a idéia proustiana de “memória involuntária”. Ocorre que as considerações a ele motivadas pelo ambiente têm muito mais de reconstrução histórica do que de exploração da subjetividade – e impressionam pela concisão e concretude.
O que une a aparente casualidade de eventos que se sucedem é uma profunda (ainda que oblíqua) unidade temática. No início do livro, a propósito de uma conversa entre as enfermeiras de um hospital onde esteve internado, o narrador registra: “Os malteses, com incrível desprezo pela morte, nunca dirigem na mão esquerda nem na direita, mas sempre do lado da sombra na estrada”.
Adiante, quando tece comentários sobre a obra de Thomas Browne, o tema retorna: “A história de cada ser individual, de cada comunidade e todo mundo não transcorre num arco que se alteia cada vez mais amplo e mais belo, mas num trilho que, tendo atingido o meridiano, desce para a escuridão”.
O culto a uma morbidez silenciosa, a um mundo de sombras que já desistiu de se iluminar, é uma constante nos livros do autor. Isso fica ainda mais claro no trecho seguinte, escrito a respeito do mesmo Browne: “O médico, que vê as enfermidades crescendo e devastando o corpo, entende melhor a mortalidade que a floração da vida”.
Em certas passagens temos a impressão de que o narrador é um médico com olhos apenas para as enfermidades, sejam elas perpetradas pela passagem do tempo ou pela ação do homem. A desolação de suas paisagens, os casarões vazios, os povoados decadentes, compõem um universo em que qualquer “floração da vida” parece completamente fora de sentido.
Apesar de aparentemente casuais, vistas em conjunto essas digressões dialogam com temas centrais da obra de Sebald, sendo talvez o principal deles a imaterialidade do tempo expressa na crueza de seu efeito sobre as coisas e as pessoas. “Até o próprio tempo envelhece”, declara o viajante a certa altura. E prossegue: “Não sabemos quantas de suas mutações possíveis o mundo já sofreu e quanto tempo ainda resta, se é que o tempo existe”.
Ao encadear suas reconstruções com elos inusitados e ignorar a idéia de cronologia, o narrador faz com que fluxo da história se rompa. Ele reordena suas lembranças a partir de uma exigência interna de cada uma delas, de modo a intervir o mínimo possível nos casos que conta. Essa anulação por vezes dá a sensação de que a paisagem não necessita de um intermediário e revela por si mesma as histórias que nela tiveram lugar.
Ainda a comentar o trabalho do médico, personagem mais recorrente entre os vários que aparecem no livro, ele prossegue: “Também nosso atual estudo da natureza tende, por um lado, à descrição de um sistema perfeitamente regular, mas, por outro, nosso olho se prende de preferência em criaturas que se destacam de todas as outras por uma forma abstrusa ou comportamento louco”.
No texto se dá movimento parecido. Os lugares que descreve, bem como o contexto em que passa por eles, são os mais corriqueiros possíveis. E no entanto há uma atenção distraída por parte do narrador, uma anulação do ego que lhe permite conferir singularidade à mais comum das situações. No mais das vezes, assim, a banalidade adquire status de exceção.
O mesmo efeito se processa na relação entre o gênero e o conteúdo do texto de Sebald, que consegue efeitos de sublimidade num formato de nobreza quase nula, que é o diário de viagem.
O trabalho do escritor já foi tachado de “literatura do Holocausto” por críticos que pretendem aproximá-lo do extenso filão de autores (uns bons, como Primo Levi, outros fracos, como Elie Wiesel e o farsante Binjamin Wilkomirski) que fizeram desse extermínio sua temática central. Apesar de judeu e de abordar o trauma causado pela segunda guerra em todos os seus livros, Sebald tem uma maneira particular de lidar com o assunto, de modo que essas aproximações, pelas quais ele tinha absoluto desprezo, não ajudam a entender sua obra.
“Eu não acho que seja possível encarar o horror do Holocausto. É como a cabeça da Medusa: você pode carregá-la num saco, mas, se olhar para ela, acaba petrificado”, declarou o escritor em entrevista concedida pouco antes de morrer. Assim, sua maneira de se aproximar do problema, não só do Holocausto, mas da história de modo geral, é sempre enviesada, sempre a “passos de caranguejo”, na definição de A. S. Byatt.
Esse modo de proceder fica claro no trecho de “Os Anéis de Saturno” em que vemos uma foto, em página dupla, de um amontoado de cadáveres no meio de um bosque, presumivelmente próximo a um campo de concentração. No momento em que a foto aparece, lemos a história do major George Wyndham Le Strange. Sobre guerra, fica dito apenas, em uma frase, que ele participou da liberação do campo de Bergen Belsen em 14 de abril de 1945. O resto da extensa passagem centra foco nos hábitos excêntricos do major, com destaque para sua decisão de doar a fortuna da família à caseira Florence Barnes, empregada décadas antes sob a condição de fazer as refeições com ele em absoluto silêncio.
Faz todo sentido a foto nesse contexto: o silêncio da empregada herdeira anuncia o silêncio do próprio narrador, que ao adotar essa maneira elíptica de contar intensifica ao máximo a tragicidade da referência.
A obsessão com o passado de crueldades da história européia pode aparecer de esguelha, mas por vezes é conduzida com a minúcia de um micro-historiador, como na passagem sobre a matança de crianças bósnias pelos croatas, com apoio dos alemães, em 1945. O centro da questão, mais uma vez, não parece o extermínio em si, mas o fato de que muitas sobreviventes, sem mais o que comer, acabaram comendo o cartãozinho de papelão com dados pessoais que traziam no pescoço, e assim, por puro desespero, apagaram o próprio nome. Dificilmente um tratado sobre a sordidez da guerra mostraria de forma tão aterradora como as vítimas de um massacre são destituídas de sua humanidade.
A atenção pelo detalhe, pelo infinitamente pequeno, contrasta com o título do livro, sobre o qual não se faz explícita referência em momento algum. Ela também é reveladora da tensão, visível em todo o texto, entre o grande e o pequeno, o perene e o transitório, a imortalidade e a inexorável deterioração das coisas.
Ao comentar a escavação de um campo arqueológico e os objetos mínimos que nele ficaram preservados, como uma faca ou um broche, o narrador afirma que eles se tornam “símbolos da indestrutibilidade da alma humana prometida nas Escrituras, de que o médico do corpo, por mais que se saiba firme na fé cristã, por vezes em segredo duvida”.
Há em todo o livro uma busca semelhante. Apesar da falta de perspectivas, o que motiva a peregrinação por todos aqueles lugares desolados parece ser uma espécie de elegia da transitoriedade, expressa numa procura incessante, ainda que velada, por pequenos lampejos de permanência.
Eles ficam claros na perfeição de algumas descrições, como a que exprime a visão do viajante de dentro de um pequeno avião: “Como um ábaco inventado para calcular o infinito, os veículos deslizavam por sua estreita pista enquanto os navios que subiam e desciam pelas correntes davam a impressão de uma perpétua imobilidade”.
Numa fazenda perto da cidadezinha rural de Harleston, o caminhante encontra Alec Garrard, camponês de cerca de sessenta anos que há duas décadas trabalha num modelo do Templo de Jerusalém. Apesar do esforço hercúleo e nem sempre compreendido de erguer uma cópia, em dez metros quadrados, do local de culto dos judeus destruído pelos romanos em 70 d.c., ele confidencia: “Eu crio patos desde criança, e a coloração de suas penas, especialmente o verde-escuro e o branco como a neve, sempre me pareceu a única resposta possível às questões que sempre me moveram”.
Da mesma maneira, parece possível acreditar que a névoa que encobre um bosque deserto, o píer desativado de um antigo porto, a coloração do céu numa tarde chuvosa ou a mobília soturna de um casarão isolado são as únicas respostas possíveis às questões que sempre moveram esse magnífico autor.
Flavio Moura
É jornalista e crítico literário.

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