quinta-feira, 25 de outubro de 2007

ORA (DIREIS) PUXAR CONVERSA !

O Estado de S. Paulo / Data: 18/6/2006
Crítica elevada ao refinamento
A coletânea Ora (Direis)Puxar Conversa! confirma Silviano Santiago como o mais original e atrevido crítico do País

José Castello

O difícil equilíbrio entre o rigor e a elegância, entre a leitura aplicada e o espírito de criação, enfim, o saber interpretar, mas também o se deixar sacudir pelo que lê definem a crítica literária de Silviano Santiago . Ora (Direis) Puxar Conversa! , sua mais recente coletânea de ensaios que acaba de sair pela Editora da UFMG, confirma o que seus leitores já sabem: que Silviano é hoje, provavelmente, o mais original e atrevido crítico literário do País.

Toda crítica literária implica, sempre, dois movimentos simultâneos. De um lado, o crítico examina a obra, armado com sua bagagem intelectual, suas leituras e reflexões pessoais, seu temperamento e preferências teóricas. Mas algo se passa, ao mesmo tempo, na direção oposta: a leitura desarmada da obra abala e modifica, igualmente, o crítico, agitando sua sensibilidade, sua visão de mundo, suas teorias; de modo que toda crítica literária é, também, uma narração de sentimentos.

Como é também ficcionista, e excelente ficcionista (seu romance O Falso Mentiroso mereceu o segundo lugar no prestigiado Prêmio Literário Portugal Telecom de 2005), Silviano não age como se o rigor excluísse a imaginação; ao contrário, seus refinados ensaios comprovam que não há rigor sem a mobilização e o manejo da fantasia. É preciso uma imaginação aguda, e muita audácia, para pescar, por exemplo, um elo impensável - mas muito provocante - entre a prosa de Clarice Lispector, que está sempre a meio caminho entre o medo e a audácia, e a épica de Camões, como Silviano faz no estupendo Bestiário. Ele detecta "um movimento do texto clariciano que se nos afigura como semelhante aos movimentos, respectivamente, de recuo pusilânime e de avanço brioso que encontramos, por exemplo, na viagem narrada por Luís de Camões".

Como os marinheiros da esquadra de Vasco da Gama, que inventam um monstro, o Adamastor, para se prepararem para o pior, também Clarice, para testar a própria força, escreve sempre à beira do abismo, ciente de que é o horror da experiência que confere grandeza à vida. A riqueza surge, justamente, da experiência da estranheza, como Silviano aponta, ainda, no protagonista atordoado de O Estranho Animal da Esquina, romance de João Gilberto Noll, livro que, em suas palavras, lhe foi "soprado por Clarice". É ainda uma existência pré-humana, quase animal, que Silviano vislumbra em personagens de outros grandes escritores, como William Faulkner e João Guimarães.

No ensaio Enquanto Agonizo, dedicado à novela homônima do escritor norte-americano, ele desvela, mais uma vez, o vínculo primordial entre a grandeza e a perspectiva selvagem. "Faulkner e Rosa são escritores pré-iluministas", Silviano escreve, para em seguida se corrigir: "Ou melhor, antiiluministas, já que são eles dois grandes pilares da modernidade ocidental." Para refletir sobre a obra de escritores como Faulkner, Rosa e Clarice, ele recorre não a outro escritor, ou a outro crítico, mas ao artista plástico texano Isaac Smith, quando este diz: "Trabalho a partir de Deus. Para que fazer alguma coisa baseada na idéia de um outro homem?"

Trabalhar a partir de Deus não é escrever a partir da religião, ou do dogma; é, sim, escrever a partir da potência para a criação absoluta que define a própria concepção de um Deus. É encontrar-se não com o enigma - como fazem os detetives e os pesquisadores acadêmicos -, mas com o mistério, que Silviano Santiago persegue em um ensaio sobre o Amerika, de Franz Kafka. "Não há enigma, há mistério no universo ficcional de Kafka", ele afirma. Mistério que garante em suas narrativas a presença de uma tensão contínua, narrativas tidas em geral como frias e burocráticas, mas que, na verdade, beiram sempre o choque provocado pelo que não se deixa completar. "Diante do mistério, o leitor não se acha, ele se perde", Silviano resume. O que pode parecer um impedimento, é uma condição.

O apego ao rigor, que em tantos críticos se torna sisudez e entravo, em Silviano Santiago, não é obstáculo, mas trampolim. Ele faz da fronteira dura imposta pelos conceitos teóricos um ponto de partida, e não de chegada; uma chave para interpretação pessoal e a prática da invenção no pensar. Na crítica de Silviano, nada precisa ser "demonstrado" através do tapete protetor das citações, das referências bibliográficas e das notas de pé de página. O rigor se guarda no bojo do próprio pensamento, está na forma arriscada e criativa com que Silviano o manipula. Lendo as críticas literárias de Silviano Santiago fica demonstrado, de vez, que a crítica literária é um gênero literário, tão nobre e original quanto a ficção, ou a poesia; e isso ainda que muitos críticos respeitáveis a pratiquem, ao contrário, como prestação de contas intelectual, exercício escolar, ou simples mostra narcisista de erudição.

Esta postura inclui sempre, e Silviano demonstra isso à exaustão, o papel do estritamente pessoal na produção da crítica literária. Toda crítica é, também, autocrítica, ou, pelo menos, o refinamento de uma visão de si. A respeito disso, nada parece mais adequado que a sentença do prestigiado antropólogo norte-americano Clifford Geertz, frase que Silviano adota como epígrafe para um ensaio sobre Claude Lévi-Strauss: "Toda etnografia tem uma parte que é filosofia, e grande parte do resto é confissão." O mesmo pode ser repetido a respeito da crítica literária, ainda que, com sua exasperada profissionalização, ela aspire, cada vez mais, a uma objetividade enlouquecida (porque é típico do psicótico o ater-se literalmente ao real); postura que exclui qualquer invenção e que, assim, discrimina os aspectos aleatórios e inalcançáveis da criação literária.

Outros pontos altos de Ora (Direis) Puxar Conversar! são os ensaio que Silviano dedica ao (hoje bastante esquecido) escritor argentino Manuel Puig e, ainda, à correspondência entre Carlos Drummond e Mário de Andrade. Neste, em outra epígrafe, o argentino Ricardo Piglia se pergunta que melhor exercício de autobiografia pode existir que as cartas pessoais escritas por um escritor. Como nas cartas, também na crítica literária um escritor, sem desejar isso, sem pensar nisso, se desarma e se põe, ele também, em questão. Quando esses aspectos criativos são reprimidos em nome do rigor frio e medroso, o crítico se torna, só, um enfadonho professor.

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