segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo


Crítica Cultural, volume 2, número 1, jul./dez. 2007
Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo

Antonio Carlos Santos #

Resumo: O ensaio correlaciona a imagem ao mito e à narrativa para, através da leitura do mito de Narciso tal como aparece nas Metamorfoses de Ovídio, pensar a questão do duplo para além da representação. A partir do sentido de imagem como “representação fiel”, por um lado, e como “falsificação”, por outro, procura-se problematizar a relação entre os dois elementos (“cópia” e “original”) para lançá-los na disseminação do múltiplo com Nietzsche, Deleuze e Derrida.

Palavras-chave: teoria literária; imagem e mito.


Espelhos: com saber ninguém descreveu ainda

O que sois em essência.

Vós, intervalos de tempo,

De todo preenchidos como vazios de peneiras.



Vós, ainda perdulários da sala vazia -,

Ao cair da noite, como florestas distantes...

E o lustre atravessa vossa integridade,

Como um cervo de dezesseis galhas.



Às vezes sois cobertos de pinturas.

Algumas parecem incorporadas -,

Outras, dispensastes acanhadamente.



Porém, a mais bonita há de ficar -, até

Que lá em cima tenha penetrado em

Suas faces contidas o Narciso claro e livre.

(Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu)


Gostaria de começar lembrando a etimologia de imagem: imago, forma contrata de imitago - imitare que pode ter o sentido de “reproduzir ou tentar reproduzir fielmente algo, procurar reproduzir o estilo, inspirar-se em, copiar”, como “produzir com a intenção de passar a cópia por verdadeira, falsificar, plagiar, ter a falsa aparência de, assemelhar-se a”, ou seja, tanto traduzir com fidelidade, quanto simular, copiar, parodiar, etc. É importante perceber esse caráter dúplice de imitar: é, ao mesmo tempo, reproduzir fielmente e falsificar, parodiar. Jacques Rancière, que distingue as imagens comuns, que operam pela semelhança, das imagens da arte, que jogam com a dessemelhança, fala em uma dupla poética da imagem no regime estético da arte: em um primeiro momento, a imagem é a significação das coisas inscrita diretamente sobre seus corpos, sua linguagem visível a ser decifrada; logo, a imagem é o enigma, aquilo que se cala, aquilo que não tem significação. É assim, diz ele, que a fotografia se tornou uma arte: colocando seus recursos a serviço desta poética dúplice, fazendo falar duas vezes o rosto dos anônimos, como testemunhas mudas de uma condição inscrita diretamente em seus traços, hábitos, nível de vida, e como detentores de um segredo que jamais saberemos (puros blocos de visibilidade impermeáveis a toda narrativização – não é isso que aparece em algumas teorias da fotografia como, por exemplo, a de Roland Barthes?). Ou seja, a uma imagem tagarela se contrapõe uma outra muda. Podemos ver como em A tagarela, de 1893, Belmiro de Almeida, que já havia pintado então um quadro impressionista, Efeitos de sol (Itália), incorpora essa idéia: é uma tela realista que nos apresenta uma mulher prestes a desatar a falação, a tagarelar. Ela está sentada no meio do retângulo (128 por 83 cm), as cores predominantes são escuras, preto, marrom; a exceção é o avental branco; do lado superior direito, dois girassóis; do inferior esquerdo, a vassoura; entre ambos, um pouco mais próximo dos girassóis, o rosto iluminado da mulher, os olhos bem abertos, a boca esboçando um sorriso; sentada, ela está levemente inclinada para frente, com as mãos unidas entre os joelhos e os cotovelos apoiados nas coxas; o chão é quadriculado, marrom e preto; ao fundo, à direita, vê-se o móvel que sustenta o vaso de girassóis; nele há um brilho, reflexo talvez de uma janela, de onde vem a luz que ilumina o rosto da mulher; é uma empregada doméstica que parou o trabalho para tagarelar (ou interrompeu o trabalho e a falação para posar, para ocupar esse vácuo, esse intervalo); Belmiro a congela exatamente antes dela entrar no fluxo do discurso; por isso, ela aparece como pura potência, no instante em que junta o ar nos pulmões para entrar no jogo, nesse mesmo instante em que o lance de dados é definido. É uma mulher comum, ou seja, a marca de ruptura que o realismo traz para as artes. No canto superior esquerdo, a assinatura e a data. A Tagarela é a dupla poética da imagem e poderia ser vista também como a imagem da potência da narração. Alguém prestes a contar uma história.

E uma história é um mito. Os mitos têm muitas versões, muitas variações[1]. Vamos seguir, nesse caso, os versos de Públio Ovídio Naso, que contou a história de Narciso no livro III de As metamorfoses. Como diz o título, Ovídio narra em seus 15 livros, com 12 mil versos, sempre alguma transformação: homens que se transformam em animais, em flor, em pedra, ninfas que se transformam em voz, homens que se transformam em mulheres, objetos que se transformam em ouro com o simples toque, etc. É a idéia mesma de transformação que dá unidade ao poema de Ovídio. Augusto de Campos, em um dos capítulos de verso reverso controverso, de 1978, chamava a atenção para o caráter cinematográfico das Metamorfoses: “Nas Metamorfoses tudo é kinema, movimento puro, ação feita poesia. (...) As Metamorfoses são, na verdade, o grande thriller cinemascópico (em 15 livros) da literatura latina (191).” Temos aí, portanto, um mito, ou mais, uma costura, uma montagem, de muitos mitos, escritos em versos, uma longa narrativa que vai desde o caos dos primeiros tempos à época de Augusto. Se a narrativa, o relato, é uma grande metáfora, ou seja, a capacidade de compreender em uma imagem, muitas outras imagens, então é um processo de metamorfose (pois não é a metáfora um outro que é o mesmo?). E o relato narra sempre uma transformação, ou uma transfiguração. Gostaria de lembrar que um mito é um relato, uma narrativa. Está lá na Poética de Aristóteles – “É portanto necessário que sejam seis as partes da Tragédia que constituam a sua qualidade, designadamente: mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e Melopéia” (39). E: “Ora, o mito é imitação de ações; por ‘Mito’ entendo a composição dos atos...” (idem). E o mito é também, para Kerényi, a aparição de uma imagem com a qual todo um mundo vem a ser, uma icofania. Como se pode ver, vamos aqui colecionando algumas palavras-guia como imagem, mito, narrativa ou relato, icofania e figura. É esta última que aparece nos livros de Franco Rella, Pensare per figure, ou Miti e figure del moderno, ou Metamorfosis que nos ajudam a levar adiante uma reflexão com as imagens (o jogo dos espelhos – mise en abîme). E é em torno dela também que gira o ensaio erudito de Erich Auerbach, “Figura”, que investiga os usos e sentidos da palavra ‘figura’ desde Terêncio até a noção de prefiguração desenvolvida pelos padres da igreja católica (ler o Velho Testamento como prefiguração do Novo Testamento). Um exemplo delicioso do trabalho da velha filologia que Nietzsche, no Prólogo a Aurora, chama de “a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento – como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento”. Bom, voltando ao ensaio de Auerbach, temos, desde a primeira linha, a família de ‘figura’: da mesma raiz de fingere (fingir, de onde vem ficção, vale lembrar Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”), figulus, aquele que mexe com barro, escultor, fictor, estatuário, escultor, criador, artífice, autor, e effigies, representação, figura, imagem, retrato, forma, estátua, etc.

Vamos começar então com um mito da imagem, da beleza, o mito de Narciso, o relato da metamorfose de um belo jovem, que havia desviado toda sua libido para si mesmo, em uma flor.

Filho do rio Céfiso (Kéfisos, o que banha, o que inunda) com a ninfa Liríope (de voz macia como um lírio), Narciso nasce extremamente belo, o que faz a mãe ficar temerosa, pois uma tal beleza, na Grécia, podia despertar a hybris, o descomedimento, e provocar o ultrapassamento do métron – reparem que Narciso nasce sob o signo das águas[2]. Narciso era mais belo que os imortais. Preocupada, Liríope procura Tirésias, o famoso adivinho, o cego que vê o futuro, aquele mesmo que aparece na tragédia de Édipo. Todos conhecem a história de Tirésias. Seu nome significa “aquele que tem capacidade e visão”, era um vates, um profeta, dotado do vaticinium, do dom da adivinhação, da mantéia. O mito nos conta que, ao chegar à adolescência, Tirésias subiu o monte Citerão e lá viu duas serpentes que se enroscavam. O jovem as separou, ou matou a fêmea (as variações). Resultado: virou mulher. Sete anos depois, voltou ao monte Citerão e viu novamente duas serpentes transando: matou o macho e readiquiriu a forma masculina. O profeta, portanto, era alguém que tinha a experiência dos dois sexos. Um dia, Zeus e Hera discutiam sobre quem tinha mais prazer no amor. Zeus dizia que maior é o prazer das mulheres (“Maior vestra profecto est, quam quae contingit maribus, dixisse, voluptas”) e, como Hera discordasse, resolveram chamar Tirésias para decidir quem tinha razão, já que conhecia os dois lados. Sem hesitar, Tirésias responde que se o ato de amor tivesse 10 partes, nove caberiam à mulher. Hera fica furiosa, pois, por um lado, ele havia revelado o segredo das mulheres, por outro, o argumento decretava a superioridade do homem, causa do prazer feminino. Cega-o com um raio e Zeus, para compensar a perda da visão, lhe dá o dom da mantéia, o poder de adivinhar, de prever o futuro.

Pois bem, é ele que Liríope interpela para saber do futuro de seu belo filho: Narciso viverá muitos anos? Resposta do “fatidicus vates 'si se non noverit’”. (Met. III 248). Percebam que tanto Tirésias quanto Narciso estão cercados por um problema que concerne à visão e ao conhecimento. Narciso cresce e todos se apaixonam por ele, até mesmo Eco, uma ninfa tão tagarela que foi condenada por Hera à repetição, ou seja, ela não mais falaria, mas apenas poderia repetir uma outra fala. O encontro de Eco e Narciso aparece assim nos versos de Ovídio, na tradução para o português de Antonio Feliciano de Castilho:

“Dos sócios seus na caça extraviado

Narciso brada: Olá! Ninguém me escuta?

Escuta, lhe responde a amante ninfa.

Ele pasma: em redor estira os olhos;

E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;

Convite igual ao seu parte dela.

Volta-se, nada vê. Por que me foges?

Clama; por que me foges, lhe respondem.

Da mútua voz deluso, insiste ainda:

Juntemo-nos aqui. Frase mais doce,

Nem lhe espera, nem quer; delira, e logo,

Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias

De o pôr por obra; da espessura rompe,

Vem de braços abertos, anelando,

Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo.

Ele foge; fugindo, ilude o abraço,

E antes, diz, morrerei, que amor nos una.

Ela, imóvel, co’a vista o vai seguindo,

E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una.”

Assim como Tirésias, Eco também acaba castigada pela mulher de Zeus e morre de amor, vivendo seus últimos dias reclusa, em uma caverna, até se transformar em um rochedo. Mas a voz havia ficado (“uma voz que vive entre os morros”).

Na próxima cena, Narciso encontra uma fonte de água pura que nunca havia sido tocada por nada, nem por ninguém e, encantado pelo lugar, resolve matar a sede. Mas ao mesmo tempo em que aplaca a sede, uma outra (“dumque sitim sedare cupit, sitis altera crevit”) mais poderosa aparece (cf. Junito p. 180). A imagem de seu rosto refletida nas águas puras da fonte o paralisa: fica totalmente apaixonado pela imagem, preso a ela como uma estátua no momento mesmo em que a conhece; não consegue se mexer, desviar os olhos desse fantasma dele mesmo; ele é ao mesmo tempo o amante e o objeto amado (“se cupit” – deseja a si mesmo). Aqui o motivo da repetição retorna (como no episódio de Eco): Narciso conta à floresta em seu redor seu drama de amor. “Se te estendo meus braços, tu estendes os teus; tu ris se eu rio e choras se eu choro”[3]. Narciso morre – “ele deixa então sua cabeça cair na relva: a noite eterna cobre seus olhos tomados por sua beleza. Mas sua paixão o segue no caminho das sombras, e ele ainda procura sua imagem nas águas escuras do Estige – e vira uma flor amarela cujo centro era circundado por pétalas brancas. Assim como Édipo, Narciso se aniquila, se perde, no momento mesmo da anagnórisis (na Poética, de Aristóteles: “O reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer”.). O mito de Narciso apaixonado pela própria imagem ressurge, por exemplo, com o nome poeticamente alterado, Metaformose, agregado a uma viagem pelo imaginário grego, no texto assinado por Paulo Leminski, publicado em 95 e escrito em 1986-87. No reordenamento que Leminski dá ao texto de Ovídio, que por sua vez é também um refazer de outras antologias e assim por diante, montagem, articulação de partes, novamente quem pontua a narrativa costurando os fragmentos de mitos que se intercalam é exatamente Narciso.

Tabu contra a vaidade, contra um auto-amor excessivo, horror ao solipsismo, ao eu como única realidade, fuga do mundo, rompimento da relação sujeito-objeto, a imago e a umbra, ou seja, a sombra, a alma sombra, dos mundos subterrâneos, do Hades, esse parece ser o núcleo do mito. Mas os neoplatônicos o entendiam de outra forma: em vez de rejeição do mundo, eles viam em Narciso o oposto: um elo preso ao mundo, uma fascinação sem esperança pelo mundo da matéria e das aparências.

Há em todas essas histórias, estórias, uma relação com o duplo: Tirésias era dois (homem e mulher, cego e vidente), Eco estava condenada a ser segunda, a repetir, Narciso era o amante e o objeto amado. A imagem também é sempre segunda (“imagens são superfícies que pretendem representar algo” Vilém Flusser). E essa obsessão pelo duplo é o que opõe, por exemplo, a tradição metafísica que se funda no um, na unidade, na identidade, a um pensamento do múltiplo, que se funda na diferença, no corpo, no rastro imotivado, no rizoma. Representar é apresentar de novo e, assim como repetir, pressupõe algo que lhe é anterior, que garanta sua possibilidade. A imagem representa algo, diz Flusser. Mas o que ela nos apresenta é uma semelhança ou uma dessemelhança? Há graus de semelhança? Como se funda uma hierarquia da semelhança? Para a metafísica, a semelhança pressupõe uma identidade que se reconhece a si enquanto presença, uma unidade, uma origem, um princípio que funda toda a cadeia que se dirige a um telos e ordena o mundo em pares de opostos. Para Derrida, a noção de rastro/traço (trace) vem acompanhada do adjetivo imotivado, ou seja, sem origem, sem fundamento, sem um primeiro, para chamar a atenção para uma outra lógica em que a origem não conta, apenas a différance. Portanto, a imagem é apenas imagem de imagem (é assim que Deleuze lê Bergson em sua reflexão com o cinema sobre imagem e movimento. Vale lembrar os primeiros passos do texto deleuziano, na verdade uma aula: “... não há dualidade entre imagem e movimento, como se a imagem estivesse na consciência e o movimento nas coisas. O que há? Há apenas imagens-movimento. (...) Um universo de imagens-movimento. Imagens-movimento, é isso o universo.” É uma aula tão bela que a um certo momento Deleuze diz do texto de Bergson: C’est beau comme un roman). Não é assim também que lemos o signo depois das releituras de Derrida e Lacan das teses de Saussure? O significante apenas desliza, dissemina, se conecta a outro significante, máquinas que se acoplam para fazer passar o fluxo.

Portanto, no mito de Narciso se interconectam os temas da visão, da repetição, da imagem, do reflexo, mas também de uma certa desmesura que é própria de Dionisos. Vale lembrar o esquema trágico (o caminhar do anthropos, simples mortal, que ao ultrapassar o métron, a sua medida, torna-se herói e acaba nos braços da Moira, do destino cego: métron/ hybris/némesis/áte/ Moira, dá para ver aí o percurso de Narciso). O vaticínio de Tirésias era: viveria muito tempo se não se conhecesse, ou seja, se não seguisse o lema de Apolo: conhece-te a ti mesmo. Se consultarmos o mito de Dionisos, veremos que um dos epítetos do deus da metamorfose é Zagreu, o Grande Caçador. Era filho de Zeus e Perséfone e tão querido pelo mais poderoso dos deuses que estava destinado a sucedê-lo. Para evitar os ciúmes de Hera (Juno), deixa-o aos cuidados de Apolo que o esconde nas florestas do Parnaso. Mas a implacável Hera o descobre e manda seus Titãs matá-lo. Os gigantes o atraem então com brinquedos que representam as coisas do mundo, entre eles um espelho. Enquanto olha sua própria imagem, Dionisos-Zagreu é despedaçado pelos Titãs e devorado. Com o corpo destruído, o deus das transformações está pronto para a série infinita de reencarnações. Narciso é dessa linhagem.

Vale lembrar ainda o Estádio do espelho, texto que dá conta da concepção de Lacan sobre a constituição do ‘eu’; texto, aliás, umbilicalmente ligado às reflexões de Freud sobre o Narcisismo (Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914). As conseqüências de uma tal investigação são a destruição de uma idéia de essência humana, de um centro primordial, de uma natureza divina, e a elaboração do sujeito enquanto vazio, cheio de ficção, ou seja, o sujeito não é apenas a consciência do cogito cartesiano, é também o inconsciente, o corpo, é múltiplo como Fernando Pessoa que chegou a ser 72, sendo quatro deles grandes poetas, ou Mário de Andrade que era 350, ou o Dionisos dos gregos. Para concluir, há também as estórias de Machado e Guimarães, ambas intituladas “O espelho”, essa superfície polida que reflete a luz que incide sobre si, objeto mágico, ligado à série que iniciamos com imagem e que se desdobra nos espectros, nos fantasmas, no simulacro, etc. O espelho povoa a literatura: basta lembrar aqui duas narrativas, a de Branca de Neve (Sneewittchen), história recolhida pelos irmãos Grimm, e Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, de Lewis Carrol, um matemático que adorava fotografar meninas em poses sensuais. Poderíamos ler aqui dois problemas: a questão da representação e a da essência do ‘eu’, ou seja, da ontologia desenvolvida pela metafísica ocidental.

Em Diferença e repetição, Deleuze diz que...

a representação deixa escapar o mundo afirmado da diferença. A representação tem apenas um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade; ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação: já um quadro, uma escultura são ‘deformadores’ que nos forçam a fazer o movimento, isto é, a combinar uma visão rasante a uma visão mergulhante ou a subir e descer no espaço na medida em que se avança. Basta multiplicar as representações para se obter um tal ‘efeito’? A representação infinita compreende, precisamente, uma infinidade de representações, seja porque assegura a convergência de todos os pontos de vista sobre um mesmo objeto ou um mesmo mundo, seja porque faz de todos os momentos as propriedades de um mesmo Eu. Mas ela guarda, assim, um centro único que recolhe e representa todos os outros como uma unidade de série que ordena, que organiza uma vez por todas os temas e suas relações. É que a representação infinita não é separável de uma lei que a torna possível: a forma do conceito como forma de identidade que constitui ora o em-si do representado (A é A), ora o para-si do representante (Eu = Eu). O prefixo RE-, na palavra representação, significa a forma conceitual do idêntico que subordina as diferenças. Portanto, não é multiplicando as representações e os pontos de vista que se atinge o imediato definido como ‘sub-representativo’. Ao contrário, cada representação componente é que deve estar deformada, desviada, arrancada de seu centro. É preciso que cada ponto de vista seja ele mesmo a coisa ou que a coisa pertença ao ponto de vista. É preciso, pois, que a coisa nada seja de idêntico, mas que seja esquartejada numa diferença em que se desvanece tanto a identidade do objeto visto quanto a do sujeito que vê. É preciso que a diferença se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras diferenças que nunca a identificam, mas que a diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo. Sabe-se que a obra de arte moderna tende a realizar estas condições: neste sentido, ela se torna um verdadeiro teatro feito de metamorfoses e de permutações. Teatro sem nada fixo ou labirinto sem fio (Ariadne se enforcou). A obra de arte abandona o domínio da representação para tornar-se ‘experiência’, empirismo transcendental ou ciência do sensível. (106-107)

Estamos, portanto, instalados em plena crise da representação, da idéia de representação (não é à toa que a política tradicional revela sinais de um cansaço, de uma exaustão que só produz a desconfiança, a descrença, etc. e que também possibilita outras práticas políticas, desde os movimentos antiglobalização às lutas de moradores das cidades e de camponeses sem terra). Tudo isso tem a ver com o rompimento do pacto mimético que marca a modernidade ou, como diz Rancière, com a mudança do regime mimético para o regime estético. Se as imagens são como os textos, significantes de significantes, como ler? Se as imagens não valem mais do que mil palavras porque também só ‘fazem sentido’ ao serem articuladas com outras, como ler? Com Nietzsche, vimos que ler é atribuir um sentido (Sinn hinlegen), que o sentido é o que vem depois, é aquilo que se articula, o movimento de uma série. O sentido é, também, resultado de uma dinâmica de forças e toda força é apropriação, dominação, exploração de uma quantidade de realidade. Um fenômeno não é uma aparência, mas um signo e descobrir o sentido desse fenômeno é descobrir que forças operam nele.

Referências

ARISTÓTELES. Poética/PERI POIHTIKHS. Trad. Eudoro de Souza (Ed. Bilíngüe). São Paulo: Ars Poética, 1992.

AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997.

CAMPOS, Augusto. verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978.

DELEUZE, Gille. Nietzsche et la philosophie. Paris: Quadrige / Presse Universitaires de France, 1997.

_________. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Trad. do autor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível / estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org. / Ed 34, 2005.

RELLA, Franco. Pensare per figure. Freud, Platone, Kafka, il postumano. Roma: Fazi Editore, 2004. Miti e figure del moderno. Letteratura, arte e filosofia. Milano: Feltrinelli, 2003. Metamorfosis / Imágenes del pensamiento. Madrid: Espasa-Calpe, 1989.

[1] Nos diz o Diccionario Enciclopédico de la Música, de D. Carlos José Melcior, publicado em Lerida, na Espanha, em 1859: “Entendemos por este nombre las diferentes maneras de variar el canto de una aria, de un romance, de un tema o motivo por medio de ciertos adornos. Sean estos mas o menos complicados, es menester que al través de ellos se divise el motivo principal, y que cada variación tenga una novedad tal, que mantenga la atención y evite el fastidio.” Variações, portanto, diferença e repetição, pois variar é mudar um tema, preservando-o, repetir, diferindo.

[2] Vale consultar Brandão, Junito. Mitologia Grega. Vol 1. Petrópolis: Vozes, p. 265.

[3] Tradução para o português de Antonio Feliciano de Castilho, publicada em 1841.




#Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina. Doutor em Literatura.

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