quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"Partir, evadir-se, traçar uma linha":Deleuze e a literatura

O texto é ótimo mas, apesar de meus esforços, a configuração ficou
devendo...
"Partir, evadir-se, traçar uma linha":Deleuze e a literatura
SOUSA DIAS - Professor no Porto/Portugal com larga experiência de
estudo da filosofia de Gilles Deleuze, nas obras "Lógica do
Acontecimento" (1995); "Estética do Conceito" (1998).
RESUMO – Este ensaio esboça um olhar sobre o modo como Gilles
Deleuze trata a questão da literatura. Tomando como ponto de partida
o exercício da filosofia como interferência ativa e criativa, como
co-criação, o autor nos permite acompanhar a exploração do paradoxo
constituinte da literatura, uma finalidade extralinguística no
coração da linguagem literária. Ele analisa a criação literária e a
invenção poética como efeitos de uma tensão na própria língua,
incitando o devir uma língua menor, e toma a poesia como criação de
uma língua de imagens, uma língua-limite em que as palavras já não
obedecem mais à sintaxe e se põem a fazer vibrar outras intensidades.
Palavras-chave – Literatura; poesia; criação literária; Deleuze.
A literatura ocupa um lugar privilegiado no pensamento de Gilles
Deleuze. Não são apenas os livros sobre Proust, Kafka e Sacher-
Masoch eo s estudos de Crítica e clínica. Também há profusão de
referências a
escritores por toda a parte nos seus textos de filosofia pura. O que
decorre do exercício deleuziano da filosofia como prática não de
reflexão mas de criação (de conceitos) em interferência activa com
outros domínios criativos, como co-criação. É como filósofo que
Deleuze cruza a literatura,mas sempre para surpreender nesta, ou nas
obras dos grandes escritores,aquilo a que chamaremos o seu paradoxo
constituinte. Ou seja: uma vocação não "literária", uma finalidade
extralinguística, no coração da linguagem literária. O grande
escritor, diz Deleuze, nunca escreve para se tornar escritor mas
outra coisa que passa pela escrita mas a ultrapassa e que ao mesmo
tempo faz da escrita mais do que escrita, "quero ser poeta, e
trabalho para me tornar vidente" (Rimbaud). Um tal paradoxo,
presente em raras obras que se escrevem com intenção literária,
define segundo ele o mais alto poder da literatura. Define a sua
criatividade específica, o seu "efeito" não obtenível pelos recursos
quer da filosofia quer das outras artes,mas também o modo pelo qual
a literatura encontra numa comum função criadora toda a arte e mesmo
a filosofia."Escrever não tem o seu fim em si mesmo, precisamente
porque a vida não é qualquer coisa de pessoal. Ou antes, a
finalidade de escrever é levar a vida ao estado de um poder não
pessoal".1 A escrita, a literatura,não é pois para Deleuze simples
ficção, produção de entidades fictícias,personagens e situações.
Tudo isso são os meios, mas não o fim ou o superior objectivo de
escrever. Não há grande literatura que seja mera questão de
imaginação, mera criação de imaginário, de "imagens" da vida.Como as
restantes artes, ela é vida, mas não no sentido de dar "uma forma(de
expressão) a uma matéria vivida",2 de recriar a vida real das pessoas
(ou do romancista) como vida imaginária. É-o pelo contrário, releva
Deleuze, no sentido de criar vida, de inventar linhas de vida
possíveis, de abrir à vida novas possibilidades. A literatura, no
material da linguagem e com o seu processo característico de que já
falaremos, fixa como as outras artes "passagens de vida", nos termos
de Deleuze tirados de Whitehead, e faz delas "monumentos" estéticos.
Mas essas passagens ou "devires" não são expressões do vivido, não
são as percepções, as recordações e as opiniões privadas do artista
transfiguradas pela imaginação e moldadas por um "belo estilo". São
antes "visões" ou "sensações" de uma vida já não pessoal, poderes de
uma vida impessoal ou de uma possibilidade existencial distinta dos
estados vividos, de cada vez a experiência de uma outridade,de um
devir-outro como despersonalização do sujeito. A literatura que
conta, afirma Deleuze, é sempre o poder de um devir-outro ou de um
devir outra coisa, daquilo a que ele chama e veremos à frente porquê
um "devir
não humano dos homens", sempre, em suma, a criação perceptual ou
afectiva de vida para lá do vivido e até do vivível.O romancista
medíocre, dizia Albert Thibaudet, escreve com a linha única da sua
vida real, ao passo que o grande romancista escreve com
as "direcções infinitas da sua vida possível". O criador literário,
acrescentava ele, é aquele que em vez de fazer reviver o real faz
viver o possível. É uma fórmula exacta, que Deleuze sem dúvida
subscreveria, mesmo e sobretudo essa idéia da criação literária (e
da criação artística em geral) como abertura ao ilimitado ou ao
infinito da vida possível, liberta da finitude da vida pessoal. A
arte, diz ele, consiste sempre em "passar pelo finito parare
encontrar, restituir o infinito".3Por seu lado Kundera, melhor
teórico da literatura do que romancista, afirma que as personagens
dos seus romances são as suas próprias possibilidades não
realizadas: cada uma delas transpôs uma fronteira que o autor
pessoalmente nunca atravessou, "a fronteira para lá da qual acaba o
meu eu",4 e a função do romance não é outra segundo ele, explorar a
vida humana, explorar dimensões possíveis da existência,fora do eu.
Não há arte literária, mostra Deleuze, sem essa travessia, sem ser
essa travessia, essa passagem do horizonte vivido, essa entrada numa
vida outra. Viagem arquetípica de Melville, o sentido da viagem de
toda a literatura anglo-americana destacado por Deleuze, mas também
por exemplo as viagens pelas sensações em Fernando Pessoa, em todo o
Pessoa, em todos os heterónimos, os seus devires-outro (mas não se
trata apenas de se sentir "outros", outras personalidades, porque é
cada outro que é uma série singular de sensações não pessoais e até
não humanas:"sentir tudo de todas as maneiras"). O objectivo da
literatura é pois para Deleuze, e como ele diz, "partir, evadir-se,
traçar uma linha" de fuga, sem que isso signifique fugir da vida
mas, ao invés, fazer a vida fugir, escapar às suas limitações
impostas quer pelo eu quer pelo estado presente do mundo.5 Com
efeito, para Deleuze, é ao mesmo tempo que a linha de fuga é uma
linha de vida e que como veremos a enunciação literária é sempre já
uma enunciação colectiva.Sem dúvida, o escritor "inspira-se" no
vivido, parte do seu eu, das suas observações e emoções, dos seus
estados perceptivos e afectivos. Mas para ultrapassá-los, para
aceder a um outro tipo de percepções e de afecções que excedem todas
as vivências, para extrair do vivido inéditas "sensações" e dar-lhes
uma vida própria, fazê-las viver a sua própria vida. Para atingir,
em suma, "perceptos" e afectos como seres auto-suficientes, como
entidades autónomas, fixadas na obra, que já nada devem ao sujeito
que assentiu ou experienciou.6 A vida como "matéria" do romance, mas,
precisamente, a vida como jamais foi vivida, finalidade de toda a
arte. Se um grande escritor conta a sua vida, se faz da sua vida a
substância da obra,é sempre no sentido de uma "autobiografia das
possibilidades" como diz algures Bachelard, sempre como extensão da
vida real numa vida possível,num mundo possível (o universo
incomparável do artista) composto pelas suas sensações exclusivas. A
arte como criação de "universos alternativos"(Proust) e o possível
como "categoria estética" (Deleuze).7 Nada a ver como "romance"
interessante que muita gente crê trazer em si ou de que se julga a
personagem e que leva nos tempos que correm qualquer jornalista ou
qualquer apresentador de telejornais, qualquer vedeta mediática, a
descobrir em si um escritor.A essência da literatura não é
literária. A essência da literatura, afirma Deleuze, é pintura e é
música. Mas uma pintura e uma música especiais, só efectuáveis pela
literatura, só atingíveis pelos seus meios (material e processo,
linguagem e operação sobre a língua em que se escreve). "Uma música
de palavras, uma pintura com palavras, um silêncio nas palavras".8
Trata-se de uma pintura e de uma música espirituais, "abstractas",
através das quais a literatura produz e suscita uma espécie de visão
ou de escuta não sensíveis, talha uns olhos e uns ouvidos para o
espírito. Romancista ou poeta, o criador literário não é para
Deleuze alguém que observa, que imagina ou que recorda: é um
visionário, é um "vidente"9 como dizia de si Rimbaud, alguém
com "olhos que transbordam de visões" (Daniel Faria), e também um
escutante, um ouvinte de sons e de silêncios para os quais ele foi o
primeiro a ter tímpanos. Com efeito o objecto da literatura, o seu
poder mais elevado, consiste segundo o filósofo em visões e audições
só acessíveis através da linguagem mas que todavia já não fazem
parte dela,já não fazem parte de nenhuma língua. Tais visões e
audições não se deixam propriamente dizer: elas são como um efeito
alucinatório da linguagem para lá do dizível, acontecem apenas no
limite da linguagem, e como o seu Além ou Exterior. "Estas visões
não são fantasmas, mas verdadeiras Idéias que o escritor vê e ouve
nos interstícios da linguagem, nos desvios da linguagem. Não são
interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele, como
uma eternidade que apenas pode ser revelada no devir,uma paisagem
que apenas aparece no movimento".10 Elas são os perceptos e os
afectos literários, a vida não subjectiva criada pela literatura.
Tudo é visão, questão de visão, na literatura, mas de uma visão que
se mantém por si mesma, que se conserva por si, como uma sensação
auto-subsistente.Uma visão que já não é a de um eu, que já não é
minha (percepto), antes
sou eu que já só sou ou me torno ela, que passo para ela quando ela
passapor mim (afecto).A tarefa da literatura aparece assim conjugada
com a de toda a arte.Ela cria, nos termos de Deleuze, perceptos como
paisagens não humanas da natureza e afectos como devires não humanos
do homem.11 Todo um paisagismo literário, mas específico, paisagens
visuais e sonoras só possíveis com os recursos próprios da
literatura. Como por exemplo os perceptos oceânicos de Melville,
visões espirituais puras, nem subjectivas nem objectivas,
transmutação perceptiva do oceano exterior por projecção nele
do "oceano íntimo" do escritor: é neste último que Ahab persegue
Moby Dick. Ou então as visões e as audições dos desertos da Arábia
em T.E. Lawrence, irredutíveis às percepções que deles têm os
próprios árabes,paisagens absolutas, transfigurações do real
pelo "deserto íntimo" do autor.12 Ou em Proust a fabulação do
vivido, da vida vivida, mas para extrair dela um invivido e
invivível, seres de sensação auto-consistentesque já só existem
num "tempo puro" tornado sensível: "Combray tal como nunca foi
vivido, não o é nem nunca o será."13 E que interesse teria escrever
sobre o amor, escrever o amor, romance ou poema, se não fosse para
atingir o Amor como estado já não humano, quer dizer, tal como
jamais foi, não é nem será vivido: o Amor que já não é o de uma
experiência pessoal, que já não é o de ninguém, Afecto puro. Por
exemplo Emily Brontë, Monte dos vendavais. É sempre esse
precisamente, segundo Deleuze, o traço criativo da grande
literatura: atingir e fixar em afectos e perceptos estéticos o que
há de animal mas também de vegetal e até de mineral em nós. Penetrar
nessas zonas de contiguidade ou de indiferenciação com outros seres
e outras coisas onde a vida, as potências de uma vida imanente não
pessoal,se liberta das suas constrições subjectivas, da forma
humana.14 Designadamente a poesia está cheia de percepções
vegetalizadas, de percepções de flor ou de árvore, de devires-flor e
de devires-árvore nos termos de Deleuze: não vejo uma árvore, sou
uma árvore que vê, ou que escuta, acedi a uma visão vegetal,
inumana, do mundo, ao mesmo tempo que a árvore se anima, acede a uma
alma, "devém" animal. E com efeito,como Deleuze diz, não nos
tornamos ou "devimos" outra coisa sem que essa coisa, pelo seu lado,
se torne, não nós, mas outra ainda, diferente. É que os devires, ou
essas zonas de indistinção ou de indiscernibilidade só atingíveis
pela arte, não são nem imitações nem identificações imaginárias.São
antes zonas de máxima proximidade na sensação, de coincidência ou de
indeterminação num plano de imanência da vida, de continuum
intensivo. "Como se coisas, animais e pessoas […] tivessem atingido
em
cada caso esse ponto porém no infinito que precede imediatamente a
sua diferenciação natural."15 Tais visões, tais perceptos e afectos
literários, são os acontecimentos criados pela literatura. Ela cria-
os evidentemente com a linguagem, é esse o seu material exclusivo,
mas, como se disse, eles não acontecem na linguagem: são-lhe
exteriores, ocorrem num limite exterior da linguagem.Mas esse
exterior, sublinha Deleuze, não é exterior à linguagem, ele é o
exterior da linguagem. Não existe fora dela, antes é o seu fora, a
sua ponta extrema, laminar.16 Mais exactamente, essas criações-
acontecimentos da literatura são esse exterior, são a transformação
da linguagem, quando confrontada com os seus limites, numa
outra "matéria" não lingual, num silêncio das próprias palavras
preenchido por visões e audições. Como se,levada a língua em que se
escreve ao limite das suas possibilidades, ela entrasse numa espécie
de transe ou de delírio e as palavras desatassem já não a dizer mas
a pintar e a cantar. Mas para isso é preciso um método, um conjunto
de procedimentos característicos da criação literária, que varia de
um autor para outro, ou que cada autor tem que reinventar por si.
Com efeito, para "exteriorizar" a linguagem, o escritor necessita de
fender as palavras, de ferir a sintaxe da sua língua, de torcê-la ou
distorcê-la, de violentar o dizível como condição para atingir o
exterior assintáctico da linguagem onde já só é questão de ver e de
ouvir. Necessita, na fórmula deDeleuze, de fazer gaguejar (Céline,
Beckett), ou gritar (por exemplo Pessoa, Ode marítima), ou uivar
(Ginsberg), ou murmurar, etc., a própria língua. Não há criação
literária, afirma o filósofo, sem essa operação, sem essa destruição
da sintaxe da língua-mãe, mas trata-se de uma destruição criadora,
da fabricação ao mesmo tempo de uma nova língua na língua que
arrasta toda a língua para o seu limite ou exterior.Destruição
sintáctica, criação de sintaxe (nova língua), limite assintáctico.
Tal é na teoria deleuziana a operação poética (poiética) de toda a
literatura, ou o triplo aspecto dessa operação. É que para Deleuze o
material do escritor não são tanto as palavras mas a sintaxe, a
organização da língua em que se escreve. Ora é essa organização,
enquanto sistema em equilíbrio relativo do que a língua permite
dizer, que o escritor tem que desarticular necessariamente,
que "desrespeitar" (Proust), para forçar a língua a dizer o
indizível, a suspender-se e a revelar "sob" as palavras paisagens
visuais e sonoras nunca antes vistas nem ouvidas. A criação
literária é pois sempre o efeito de uma "tensão" ou desequilibração
gramatical como devir outra da língua, a invenção de uma nova
sintaxe ou(ainda Proust) de uma espécie de língua "estrangeira" na
língua do escritor.
Ou seja, ela é sempre a recriação da língua, através de novas
potências sintácticas, como língua "visionária", como língua em fuga
para um limite agramatical, para um seu impossível tornado possível
assim.Essa operação poética é o procedimento sempre renovado, sempre
original, de cada autor. Ela define o seu estilo. Porque o estilo,
aquilo a que se chama o estilo de um escritor, não é nunca mera
questão de retórica literária, de "escrever bem". O estilo é pelo
contrário a sintaxe do escritor,mas a sintaxe
desviante, "incorrecta", que ele soube criar, escavar na sintaxe
normativa da sua língua e como condição de vidência, ou de
fixaçãodos seus estados de vidência como Idéias estéticas
(sensíveis) autónomas,impessoais. Uma vez mais nos termos de Proust,
o estilo não é questão de técnica mas de visão. Ele é a língua
singular de cada autor, o seu modo único de confrontar a linguagem
com o seu avesso ou limite, com a sua face exterior, ou seja com um
silêncio que se dá a escutar, ou que dá a ver.Mas essa língua na
língua, essa língua estrangeira interior, nunca é, diz Deleuze,
assunto privado do romancista ou do poeta. Ela é já, na expressão do
filósofo, um "agenciamento colectivo de enunciação". O criador
literário inventa na língua em que escreve uma língua
bastarda, "menor",inventa uma minoração da língua mas que é já
também a invenção de uma minoria, de um povo em falta. Ele
escreve "em intenção" desse povo que falta, vindouro, dessa raça
espiritual como uma outra possibilidade de vida mais afirmativa que
por enquanto só existe nas criações antecipadoras da literatura e da
arte. Não uma raça chamada a dominar mas, ao invés, um povo liberto
de toda a vontade de domínio, eternamente "menor", imensa minoria de
todas as minorias, devir minoritário universal. Não há escritor,não
há artista, segundo Deleuze, que não pudesse fazer suas as palavras
do pintor Klee: "procuramos um povo", "falta-nos o suporte de um
povo".17 Toda a criação literária, toda a arte, é neste sentido
objectivamente uma aposta na vida, um acto de fé nos homens (e não
há fé mais difícil), deconfiança no futuro, numa comunidade por vir.
De cada escritor ou artista pode-se dizer o que diz de cada poeta o
poeta Daniel Faria: "Ele vê, mas não é para agora / Ele contempla,
mas não de perto / Planta cedros para os anos futuros / Carrega
cântaros para a sede que vem."18 Deleuze cita com frequência o
trabalho dos poetas, mas não escreveu nenhum texto sobre um poeta ou
a poesia. Parece-nos no entanto possível extrair da sua teoria da
criação literária uma concepção "deleuziana" da poesia e até mesmo
critérios para a avaliação do poético. É o que tentaremos agora, em
termos muito sumários, fazer. A essência da poesia é também ela
música e pintura, tudo nela é também questão de perceptos e
de afectos, de visões impessoais e de devires inumanos. Devir
marítimo de Sophia, "metade da minha alma é feita de maresia",
Sophia-mar. Mas segundo um processo particular, diverso do do
romance. Em primeiro lugar,a poesia instala-se imediatamente num
limite agramatical da linguagem,num plano-limite do dizer em que as
palavras já não obedecem, já não têm que obedecer, a nenhuma
coordenação gramatical, se soltam de toda a norma sintáctica. Mas ao
mesmo tempo, assim destacadas de qualquer conexão discursiva ou
finalidade comunicativa, elas adquirem uma absoluta mobilidade, um
poder de jogar entre si acordes semânticos livres e intensidades
rítmicas (melódicas e harmónicas, consonâncias e dissonâncias)
ilimitadas, de se combinar em combinações "desregradas" de maneira a
produzir efeitos visuais e musicais inesperados. Esses livres jogos
de palavras desconectadas, cujas regras combinatórias cada autor tem
que criar para si como uma nova língua poética, são a forma de dizer
(ou antes, de fazer ver ou ouvir, de fazer sentir) sensações extra
linguísticas que não podem ser ditas de nenhum outro modo. É por
isso que na grande poesia os jogos de palavras, e os efeitos
perceptuais e afectivos que produzem, nunca são arbitrários, nunca
retóricos. E é por isso ainda que a linguagem poética é tudo menos
metafórica, que não há metáforas na poesia, ou que só as há na
poesia medíocre. Na verdade a invenção poética,ou a poesia como
criação de uma língua, não consiste em dizer por belas imagens o que
se poderia enunciar de outra forma ou em termos apoéticos.A poesia é
de cada vez a criação de uma língua de imagens, de uma língua
imagética pura, de uma dizibilidade configuradora de inéditas
visibilidades e sonoridades, língua-limite de visões e de
audições "não humanas" no sentido de Deleuze. Mas essa língua é
sempre em cada caso o único modo rigoroso de "dizer" essas
sensações, essas vidências e devires não pessoais,o modo não
arbitrário de dizer o indizível. O autêntico poeta, era Rilke que o
afirmava, odeia a imprecisão. Ora, se se tiver em conta estes
critérios,raros autores que publicam poemas podem considerar-se
poetas.REFERÊNCIAS FARIA, Daniel. Poesia. Famalicão: Quasi, V.N.,
2003. p. 203.DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. Paris:
Flammarion, 1977. p. 61.DELEUZE, Gilles. Critique et clinique.
Paris: Minuit, 1993. p. 11.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu'est-
ce que la philosophie? Paris: Minuit,1991. p. 186.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. p. 47.KUNDERA, Milan. A
insustentável leveza do ser. (tr. port.). Lisboa: Publ. DomQuixote,
1983. p. 251.KLEE, Paul. Escritos sobre arte. (tr. port.) Lisboa:
Cotovia. p. 37.
1 DELEUZE-PARNET, Dialogues, Paris: Flammarion, 1977, p. 61.
2DELEUZE, Critique et clinique, Paris: Minuit, 1993, p. 11 (cit.
doravante como CC). 3DELEUZE-GUATTARI, Qu'est-ce que la philosophie?
Minuit, Paris, 1991, p. 186(cit. doravante como QPh). 4KUNDERA, A
insustentável leveza do ser, 1983, tr. port. Publ. Dom Quixote,
Lisboa, p. 251. 5 DELEUZE-PARNET, Dialogues, p. 47. 6 QPh, p. 158.
7Ibid., p. 168. 8CC, p. 141.9QPh, p. 161, CC por ex. p. 16 e passim.
Cf. p. 105: "o romancista tem o olho do profeta, não o olhar do
psicólogo". 10CC, p. 16. 11QPh, p. 160. 12Ambos os exemplos: CC, p.
146. 13QPh, p. 158. 14Ibid., p. 163-165. 15Ibid., p. 164. 16 Sobre
isto e tudo o que se segue, cf. CC, passim e sobretudo cap. 1, p. 11-
17. 17 KLEE, Escritos sobre arte, tr. port. Lisboa: Cotovia, p. 37.
18 FARIA, Poesia, Famalicão: Quasi, V.N., 2003, p. 203. (Pertence
também a este poema verso citado mais acima no texto).

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