segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Beatriz Jaguaribe

"Tropa de elite é um retrato redutor dos favelados"
Marcelo Migliaccio


A realidade está em cartaz. O filme Tropa de elite, que reproduz o cotidiano dos membros do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio, é apenas uma nova atração cinematográfica no cardápio. Na literatura, multiplicam-se os romances policiais e, na TV, os reality shows ainda têm fôlego, o que mostra que o público anseia por algo que vai além da ficção. Professora da Escola de Comunicação da UFRJ, Beatriz Jaguaribe acaba de lançar seu olhar sobre as atuais estéticas do realismo. Em O choque do real: estética, mídia e cultura (Rocco, 240 págs, R$ 29), publica seis ensaios que podem ser analisados em conjunto ou separadamente. Na entrevista a seguir, Beatriz frisa que a realidade é socialmente construída e, nas sociedades democráticas contemporâneas, ela está em disputa. A mediadora desse embate? A mídia.

Beatriz Jaguaribe nasceu no Rio de Janeiro. Doutora em literatura comparada pela Universidade de Stanford (EUA), é professora na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde realiza pesquisas sobre as relações entre cultura letrada e midiática nos cenários urbanos contemporâneos. Entre suas obras publicadas, destaca-se Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro (Editora Rocco).

O filme Tropa de elite causou muita polêmica. Qual a sua análise estética dessa obra?
- Creio que o diretor José Padilha fez uma opção genial ao narrar os conflitos do narcotráfico sob a ótica de um policial do Bope. Achei as primeiras seqüências eletrizantes. Entretanto, ao longo do filme, parece que essa estética da aceleração e o pancadão da violência, inevitavelmente, traduzem um retrato redutor porque não há pausa para nuança nem reflexão, e a caracterização dos personagens é bastante tipológica.

Essa estética de cinema americano, clean, fragmentada como um videoclipe, com seus tiros estereofônicos, reforça a identificação do capitão torturador do Bope como um ídolo da sociedade de classe média e alta do asfalto?
- O filme possui movimentos de câmera muito habilidosos e acelerados, mas não vejo uma estética clean nem nos personagens, nem na sordidez das construções e muito menos na brutalidade das circunstâncias. Não creio em absoluto que o diretor tenha feito o capitão Nascimento parecer um herói. O filme é narrado sob sua perspectiva, e ele é um homem à beira do desmanche, tem ataques de pânico, possui uma implacável crença na sua missão, mas sua visão de mundo é simplificada e simplificadora. O que o filme revela é o emparedamento terrível desses policiais, nossa hipocrisia face ao uso do poder policial e a brutalidade das estratégias de extermínio, tanto dos policiais quanto dos narcotraficantes. Agora, mesmo respeitando o foco da narrativa centrada no Nascimento, o filme oferece um retrato redutor dos estudantes da classe média, dos favelados e, sobretudo, não coloca em pauta a questão candente da legalização das drogas.

Como será que os integrantes de comunidades digerem no imaginário o policial matador retratado esteticamente como um herói? Afinal, na favela, o Bope é sinônimo de violência e morte, não só para os marginais mas também para os trabalhadores que moram lá?
- Nascimento é um personagem triturado e triturador. Certo que tem compromisso com sua missão e é honesto, mas atua violenta e obsessivamente e não domina as circunstâncias de sua atuação. Certamente, o Bope é sinônimo de violência para os moradores da favela, mas os narcotraficantes também são. A brutalidade de ambos está plenamente registrada. O que falta é uma discussão sobre a legalização das drogas no próprio meio universitário retratado, assim como falta uma tratamento mais complexo da atuação das ONGs.

Até que ponto as estéticas modernas do realismo influenciam na nossa percepção da realidade?
- Embora variados entre si, os códigos estéticos do realismo contemporâneo buscam uma representação extraída da vivência cotidiana de fácil acesso e compreensão para leitores e espectadores. Visando reconstruir mundos plausíveis, os códigos estéticos do realismo oferecem uma intensificação, um recorte, e tornam a representação realista mais real do que nosso cotidiano amorfo, disperso e fragmentário. O realismo estético realiza, exemplarmente, aquilo que o crítico Victor Sklovskij denominou como sendo a capacidade da arte de tornar "a pedra, pedrosa". Mas isso não significa que o realismo estético seja a única fonte do nosso imaginário. Ele convive com fantasias, imaginários insólitos, crenças esotéricas.

Essa percepção contemporânea da realidade, além da estética midiática, sofre outras influências?
- A realidade é socialmente construída e, nas sociedades democráticas contemporâneas, ela está em disputa. Além das mediações da mídia, temos as instituições clássicas da escola, a atuação da família, amigos. Mas o que marca o momento contemporâneo é o forte predomínio de uma cultura audiovisual, principalmente, num país de escassa escolaridade como o Brasil.

Você acredita que a perda de espaço (leitores) da chamada literatura de realismo mágico tem a ver com essa nova estética do realismo? Haveria um caminho de volta?
- Creio que houve um desgaste do realismo mágico na medida em que este registro não podia dar conta do desmanche das metrópoles latino-americanas. Mas também acredito que o filão realista não seja o único.

Como você analisa o fenômeno reality show na televisão?
- Em sociedades saturadas pela mídia há uma demanda por algo que não pareça ficcional, algo que possa traduzir uma empatia personalizada. Os personagens dos reality shows revelam um sonho contemporâneo: a possibilidade de tornar-se uma celebridade mesmo sem ter qualquer atributo especial. Assim como se tornam celebridades, esses personagens também serão prontamente descartados pela nova leva de aspirantes ansiosos de abocanharem dinheiro e fama. Ser uma nulidade vale a pena se essa construção angariar simpatia e fizer um elo de identificação com o público. No caso brasileiro, os ganhadores são geralmente pessoas simpáticas, que transmitem afetividade, mas que não ameaçam pela inteligência ou singularidade. O reality show é a ficção hiper-real de personagens brincando de serem eles mesmos numa bolha artificial que finge ser um cotidiano flagrado no real.

O que buscam os turistas que sobem a Rocinha para fazer um programa exótico?
- Isso varia de acordo com a bagagem cultural, a subjetividade de cada um, a forma de percepção de indivíduos ou grupos. Mas o que os tours buscam oferecer é uma visão empática dos pobres em meio ao desmanche do narcotráfico. Ou seja, o favela-tour não quer ser sensacionalista, mas seu poder de venda também depende tanto da visão positiva da favela como "comunidade autêntica" quanto da adrenalina que provoca pelos relatos midiáticos da guerra do narcotráfico.

Glauber Rocha criou, nos anos 60, o termo "estética da fome". Anos depois, com o surgimento de filmes como Abril despedaçado, Cidade de Deus, alguns críticos adotaram o termo "cosmética da fome" para depreciar o apuro técnico e estético utilizado ao se abordar temáticas miseráveis e violentas do Terceiro Mundo. Como você analisa essa transformação estética no cinema brasileiro e seus reflexos no imaginário coletivo?
- Creio que o Cinema Novo tinha um caráter politizado vinculado aos discursos utopistas, ao mito da revolução, à crença no poder mobilizador da arte enquanto instrumento político. Mas também era um cinema que atingia um público reduzido e cuja linguagem estava afastada do imaginário popular, embora muitas vezes falasse em nome desse popular. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de elite, com suas diferenças entre si, possuem uma linguagem de fácil absorção, têm um caráter de denúncia, mas um forte apelo ao entretenimento. O Brasil modernista já não existe mais, a cultura letrada esmoreceu e vivemos hoje no domínio de uma fortíssima cultura audiovisual. Mas também o Brasil se democratizou, uma nova autoria está em pauta e isso me parece não só interessante como mais instigante do que a perpetuação de interpretações sobre o Brasil tecidas por um punhado de cineastas do cinema novo.

JB - Idéias - 10/11/2007