quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O lugar da Filosofia na Teoria da Literatura

O Ser da Linguagem, a Escritura e a Morte:
ressonâncias Foucault/Blanchot
Lúcia de Oliveira Santos (UERJ)
Introdução
Este exercício quer traçar uma aproximação entre o pensamento de Maurice Blanchot e de Michel Foucault tematizando, especialmente, a relação entre a linguagem e a morte: a linguagem literária como experiência da morte, da desaparição.

Em Foucault, a distinção entre obra de linguagem e literatura marca diferentes relações da palavra com a morte. O pensamento de Blanchot tem na relação da obra de arte (da obra literária, da escrita) com a morte, seu fio condutor. Para esses pensadores, a experiência literária é busca da origem e da morte, busca essencial de uma origem que se ausenta e experiência impossível da morte. Nos textos em que Foucault trata da linguagem ressoam temas blanchotianos, e é deste laço que pretendemos nos acercar.

Foucault aborda a questão da literatura vinculada à questão da linguagem em diferentes textos. Utilizarei três destes nos quais, ao meu ver, a questão do ser da linguagem é tratada de ângulos distintos. Talvez se possa desenhar um percurso de seu pensamento sobre o ser da linguagem em três momentos: o ser da linguagem na relação linguagem/morte; o ser da linguagem como contestação; o fora e o ser da linguagem como experiência no espaço vazio. Ou seja, o ser da linguagem como experiência da morte, como experiência de contestação, como experiência do vazio e do fora.

Esse caminho parte da gênese da linguagem, da obra de linguagem e da literatura moderna – e da distinção entre elas. Explora então o poder de transgressão da literatura – o ser da linguagem ressurgindo na passagem da época clássica para a moderna, na literatura moderna aparecendo em sua força de contestação. Por fim, avança no espaço próprio onde o ser da linguagem liberado opera.

Partindo dos textos de Foucault, trataremos alguns temas blanchotianos nos quais é mais visível a proximidade com Foucault interessado pela questão literária. Tentaremos apontar as ressonâncias de Blanchot sem pretender, contudo, que Foucault não tenha desenvolvido essas questões de maneira autônoma. Nosso interesse é apenas assinalar encontros.

A importância em marcar a ruptura que o pensamento moderno representou para a cultura ocidental, a preocupação com as formas do saber, dizem respeito mais a Foucault do que a Blanchot, este mais preocupado com a literatura como experiência poética, aí se inserindo a questão da linguagem e da escritura. No entanto, ambos investigam a literatura como experiência de linguagem moderna. Foucault se preocupou com a literatura como força contestatória das formas instituídas do saber, encontrando nela a possibilidade de abertura para o novo - um novo porvir, quando ao desaparecimento do homem corresponderia o aparecimento da linguagem “reunida” em seu ser. Se essa preocupação parece distante do pensamento de Blanchot, mesmo aí Blanchot não deixa de estar próximo dele, e talvez o maior responsável por esta proximidade seja sempre Nietzsche.


Três momentos da linguagem literária em Foucault:
o ser da linguagem e a repetição infinita


A linguagem ao infinito, escrito em 1963 (FOUCAULT, 2006), se abre com um dito de Blanchot – “escrever para não morrer”. Falar para não morrer é uma tarefa tão antiga quanto a palavra, comenta então Foucault. Homero marca, para a cultura ocidental, um grande acontecimento ontológico da linguagem: o surgimento da “obra de linguagem”.



O infortúnio inumerável, dom ruidoso dos deuses, marca o ponto onde começa a linguagem; mas o limite da morte abre diante da linguagem, ou melhor, nela, um espaço infinito (...) A linguagem, sobre a linha da morte, se reflete: ela encontra nela um espelho; e para deter essa morte que vai detê-la não há senão um poder: o de fazer nascer em si mesma sua própria imagem em um jogo de espelhos que não tem limites. (Idem, p. 48)



A linguagem se reflete em espelho sobre a morte, abrindo um espaço virtual onde a palavra encontra a fonte de sua repetição infinita, murmúrio que se desdobra sem fim. A linguagem se espelha a si mesma, indefinidamente. Esta duplicação é a dobra originária que possibilita a obra de linguagem, sendo constitutiva do ser da linguagem enquanto obra: o ser da linguagem é reduplicação. A obra de linguagem é o próprio corpo da linguagem que a morte atravessa para lhe abrir esse espaço infinito em que repercutem os duplos. (Idem, p. 51)

Mas Foucault aponta uma mudança nesta relação da linguagem com sua repetição, produzida no fim do século XVIII, coincidente com o momento em que a obra de linguagem torna-se o que hoje chamamos literatura, passagem que no limiar do pensamento moderno tem em Hölderlin sua expressão.

Considerando a morte como o vazio a partir do qual e contra o qual se fala, desenham-se dois períodos, que correspondem a duas maneiras de manter a morte afastada. No primeiro deles, a palavra que glorifica o herói ou ameaça os homens promete, em sua própria glória, a imortalidade da Palavra infinita. Na obra, a linguagem se protegia da morte por essa palavra invisível, essa palavra de antes e depois de todos os tempos dos quais ela se fazia apenas o reflexo logo encerrado em si mesmo. (Idem, p. 52)

Na relação com a morte, a obra coloca o infinito fora de si mesma, infinito que ela espelha, mas como espelho fechado em uma bela forma, “modelo minúsculo, interior e virtual”. Da aparição dos deuses homéricos até o afastamento dos deuses, a obra de linguagem assim se constitui. O momento em que Hölderlin percebe que só pode falar estando afastado dos deuses marca a mudança. Para Foucault, o gesto de Empédocles assinala o fim do infinito, do absoluto, da Palavra primeira na qual os homens se apoiavam para imortalizar sua própria palavra. No vazio da ausência de deus se inicia uma experiência (trágica) da linguagem literária. A linguagem vai tornar-se soberana, encontrando em si a possibilidade de se desdobrar. Volta-se para si mesma, para o que foi dito antes dela, para repetir esta linguagem anterior que não é falada por ninguém – o rumor, o murmúrio. Hoje, nos diz Foucault, escrever é infinitamente se aproximar desta origem.



É preciso falar sem cessar, por tanto tempo e tão forte quanto esse ruído infinito e ensurdecedor – por mais tempo e mais forte para que, misturando sua voz a ele, se consiga se não fazê-lo calar, domá-lo, pelo menos modular sua inutilidade nesse murmúrio sem fim que se chama literatura. (Idem, p. 52-53)



Atravessando esse espaço mortal onde se faz imagem de si mesma, erguendo-se contra e em direção à morte pelo redobramento em espelho, a linguagem fala de si mesma, situando-se num espaço virtual de autorepresentação, murmúrio em que a literatura vai se instalar [1]. Na obra moderna, a repetição da própria linguagem é colocada no interior da obra. Ela não repete mais a palavra do infinito, a palavra primeira, Deus, buscando ligar a linguagem absoluta e a linguagem finita, humana. O espaço da linguagem não é mais o da retórica mas o da biblioteca (“lugar sem lugar” onde cada livro murmura entre outros, antes e depois deles).

Na passagem do século XVIII ao XIX, na obra de Sade e nos Romances de Terror, Foucault nos mostra a linguagem se abrindo como espaço de transgressão e contestação de si própria, representando-se a si mesma numa “cerimônia” - lenta, precisa, calculada para produzir efeito fora dela – de proliferação ao infinito, de repetição à exaustão. Sade teria feito a linguagem repetir como paródia tudo que foi dito antes dele, “esterilizando” a linguagem, tornando-a impossível, endereçando sua obra a ninguém.



A obra de Sade se situa em um estranho limite, que ela, no entanto, não pára de transgredir: ela se priva – mas confiscando-o, em um gesto de apropriação repetitiva – do espaço de sua linguagem; e ela subtrai não apenas seu sentido (o que não deixa de fazer a cada instante), mas seu ser: nela, o jogo indecifrável do equívoco não é nada mais do que o sinal, muito mais grave, dessa contestação que a força a ser o duplo de toda linguagem (que ela repete queimando-a) e de sua própria ausência (que ela não cessa de manifestar). (Idem, p. 54-55)



Literatura moderna e contestação


As palavras e as coisas (Foucault, 1987) avança nas relações entre a literatura e o pensamento moderno, e o ser da linguagem aparece como contestação ao ser do homem, como alternativa ao pensamento “antropológico”. O ser da linguagem, que ressurge com a literatura após ter sido confinado à forma do Discurso na época clássica (séculos XVII e XVIII), vai se opor tanto ao pensamento da linguagem como representação (o Discurso clássico) quanto ao pensamento moderno da linguagem como significação [2]. Foucault segue Nietzsche, que desconfia do “grande acontecimento” que é a morte de Deus para os românticos, e para quem a morte de Deus só ocorrerá definitivamente com a morte do homem, este que pretendeu preencher o vazio deixado pelo desaparecimento daquele. Para tanto, é preciso libertar-se da “gramática”: A ‘razão’ na linguagem: oh, que velha fêmea enganadora! Temo que não vamos desembaraçar-nos de Deus porque continuamos a acreditar na gramática... (NIETZSCHE, 1985)

A linguagem moderna, para Foucault, não remete nem a Deus nem ao homem, mas ao vazio, ao espaço vazio que é ela própria. Ao expressar o ser da linguagem, a literatura assinala o desaparecimento do homem – este que se constitui como duplo empírico-transcendental com Kant, no limiar da modernidade. A literatura vai transgredir o ser do homem suprimindo sujeito e objeto, deixando em seu lugar um vazio de sentido. Nesse livro, Foucault defende o espaço literário como contestação: contestação da linguagem, tanto em sua função discursiva quanto em sua função significativa. A partir da distinção kantiana entre os campos empírico e transcendental, entre sujeito e objeto de conhecimento, a filologia pôde ser a ciência da linguagem (linguagem tornada objeto enquanto linguagem significante/filologia sendo conhecimento empírico das formas gramaticais, tendo o homem como condição de possibilidade). A linguagem literária contesta a filologia, sendo como o “contra-discurso” das ciências humanas; e contesta também a filosofia moderna (o positivismo, a dialética, a fenomenologia).

Foucault nos mostra a incompatibilidade entre o ser do homem e o ser da linguagem. No momento em que nasce o homem a linguagem se dispersa, se espalha, passando às margens do saber. Mas é também neste momento que surge a literatura, cada vez mais fascinada pelo ser da linguagem. É no mesmo solo epistemológico, que configura o pensamento e o saber modernos, que tudo isto se dá. Ao escapar da linguagem clássica a literatura expressa o próprio poder de falar (ou calar) da linguagem, e se dá como experiência. No “retorno” da linguagem, a partir do século XIX, a literatura torna-se experiência do informe, do mudo, do não significante. Seria um novo modo de ser da literatura, de Artaud à Blanchot:



Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, o que se anuncia é que o homem é ‘finito’ e que, alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, mas às margens do que o limita: nesta região onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue, onde a promessa de origem recua indefinidamente...[a literatura se dá como experiência:] como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude). (FOUCAULT, 1987, p. 400-4001)


O pensamento do fora e o espaço vazio da linguagem


“Eu falo” é afirmação que só se afirma a si mesma. Não comunica um sentido mas sim expõe a linguagem em seu ser bruto: a linguagem se desfazendo ao infinito e o “eu” se dispersando. O redobramento, a autoreferência da literatura moderna, entretanto, não dá lugar a um movimento de interiorização, mas a uma passagem ao Fora. A linguagem literária se estabelece como linguagem para fora, isto é, para fora do mundo (como realidade fenomenológica) e para fora do sujeito, apagando a interioridade, a consciência, o vivido; e fazendo aparecer o espaço neutro do ser da linguagem. Para Foucault, o ser da linguagem está fora da relação significante/significado, da questão das linguagens formais, também fora da lingüística. O “pensamento do fora” é o pensamento que se mantém fora da subjetividade querendo pensar no vazio do homem desaparecido. A linguagem como pura exterioridade não é falada por ninguém, como quer Mallarmé. A literatura é destruição das palavras, repetição que ao rumor nada acrescenta e sim viola o já dito, aniquilando as palavras e liberando formas vazias (os simulacros, que são imagens sem semelhança, para Deleuze).

O pensamento do exterior, texto de 1966 (Foucault, 2006), aborda o espaço vazio da linguagem (não humanista) como domínio da linguagem literária, espaço onde é possível pensar a literatura como experiência - a experiência literária como experiência anônima e autônoma da linguagem, desde Sade, Hölderlin e Mallarmé. O “sujeito” da literatura (o que fala nela e aquele sobre o qual ela fala) não seria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio em que ela encontra seu espaço quando se enuncia na nudez do “eu falo”. (FOUCAULT, 2006, p. 221)

O pensamento do fora ultrapassa a relação interioridade/exterioridade, sujeito/objeto, em direção à experiência da obra. A linguagem literária é linguagem pura. O mundo, como realidade fenomenológica, não está em questão. O Fora escapa dos limites do mundo, tanto exterior quanto interior, sendo o que está sempre mais distante e também o mais próximo. A escritura é o próprio ato, a experiência, de escrever. Por receio da ameaça desta “experiência nua da linguagem” à “evidência do eu falo”, é que se evitou tanto tempo pensar o ser da linguagem, diz Foucault.

A experiência do fora é a abertura deste espaço neutro, onde a linguagem se escoa sem se configurar e sem nada configurar; ela oscila entre o fora da origem e da morte, infinitamente a se repetir, sempre a recomeçar. Quando... a linguagem se mostra como transparência recíproca da origem e da morte, não é uma existência que, pela simples afirmação do “Eu falo”, não receba a promessa ameaçadora de sua própria desaparição, de sua futura aparição. (Idem, p. 242)

É neste espaço – o espaço literário onde o sujeito se desfaz, o mundo é suprimido, o ser se dissimula, a obra tende à sua desaparição – que se dá a experiência da linguagem como escritura.

Neste bonito e denso artigo, Foucault homenageia Blanchot atravessando muitos de seus temas – da desaparição (do sujeito), do espaço neutro da linguagem, do vazio, do Fora, da negação sem oposição (para fora da dialética), da atração e da indiferença, da impossibilidade e sua potência, da fascinação, do ser dissimulado, do rumor, da outra noite, da origem e da morte (atenção e esquecimento)... – , temas que estão presentes, de várias maneiras, na sua experiência de pensar a linguagem literária. Dentre estes destaco a literatura como experiência, a linguagem em sua relação com a morte, a constituição do espaço literário como o espaço neutro e vazio da linguagem como fios condutores para uma aproximação entre Blanchot e Foucault.



O espaço neutro e a literatura como experiência


A experiência da linguagem em Foucault retoma Blanchot que recupera Nietzsche, para quem a superação da metafísica passaria necessariamente pela possibilidade de uma nova forma de expressão da filosofia. Para Foucault, a filosofia de Nietzsche traz para o pensamento a questão da linguagem e, juntamente com a experiência literária do século XIX, abre novas possibilidades para o aparecimento da linguagem em seu ser bruto, para a “reunião” da linguagem dispersa no contexto do nascimento do homem. A morte de deus, consumada na morte do homem, repetir-se-á na experiência literária, de Mallamé a Blanchot e Foucault. A possibilidade de uma nova experiência poética da escrita se anuncia já naquele momento de Hölderlin, quando a finitude, marcando a relação com a morte, libera a linguagem do poeta da mediação entre os deuses e os homens mortais.

A experiência de Mallarmé para a literatura moderna é fundamental tanto para Blanchot quanto para Foucault. O “Livro”, que reúne todos os outros e o mundo, é ao mesmo tempo um livro impossível e um livro que rejeita todos os anteriores, o que faz com que a literatura seja simultaneamente a negação e a busca de uma origem que ela escava e preenche, origem que sempre se ausenta, busca de sua essência inessencial. A literatura trabalha com a própria impossibilidade de reunião da linguagem, sendo experiência de eterno recomeço. Para Blanchot, a literatura traz o Fora, o abismo como alteridade radical para a linguagem. A literatura não representa o mundo nem cria nele, mas o faz desaparecer, pois ela só existe a partir desta ausência, do vazio e do rumor que ainda perduram após o homem se dar conta do nada da origem e da morte. A ausência de referente é sua referência, e a escrita se faz a partir da ausência de obra, tornando-se imagem. A busca da literatura funda-se na impossibilidade como ausência de linguagem e de obra, mas também começa nova linguagem e cria obra, sempre começando, sempre por começar. A linguagem, o ser da linguagem, não é presença mas dissimulação. É experiência de buscar a própria ausência de realidade e afirmar esta ausência.

A obra literária moderna questiona os limites da obra. A grande transformação da arte moderna, para Blanchot, é que ela tende para obra, e não para o artista. A obra é um exercício, busca obscura, difícil e atormentada. Experiência essencialmente arriscada, na qual a arte, a obra, a verdade e a essência da linguagem são postas em causa e entram no espaço do risco. (BLANCHOT, 1984, p. 207)

Só a afirmação que existe na obra importa, e ela só é importante por conduzir à busca da obra. A experiência artística, literária, moderna é transgressora, subversiva, contestadora, mas não à história ou à cultura e sim a si mesma. Obra da ausência de obra, ela duvida de si mesma, fala de sua própria ausência, de seu desmoronamento.



...a essência da literatura é escapar a toda determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize ou a realize...o que cada livro persegue como se fosse a essência do que ama e desejaria apaixonadamente descobrir, é a não-literatura. (Idem, p. 210-211)



Escrever não é mostrar, fazer aparecer, possibilidade de comunicar; mas é onde se afirma a impossibilidade e a ausência de sentido, a desaparição das coisas e daquele que escreve. Escrever deixa de se abrigar num horizonte estável para ser tornar atividade de ruína. A literatura entra então em dispersão aproximando-se de si própria na busca de um único ponto, o “ponto zero”, ponto neutro onde a literatura desaparece, vazio que permite sua reconstrução.

Para Foucault e Blanchot, a literatura/a escritura é experiência de linguagem. Mas a noção de experiência, eles a desenvolvem fora do sentido usual. Ambos guardam a linguagem em seu estatuto ontológico. Foucault se ocupa com a constituição do ser como experiência na literatura, ou seja, o ser da linguagem na experiência literária. Na literatura como espaço da experiência ele busca aproximar pensamento e linguagem, então, pensar a experiência é pensar o ser da linguagem. A experiência, assim como a morte, é questão presente em toda a obra de Blanchot. Ele toma a experiência como escritura, literatura, ato ou movimento de escrever. Desde Mallarmé, a busca literária colocaria o problema da linguagem e o da escritura...



la escritura que, por su propia fuerza liberada lentamente – fuerza aleatoria de ausencia -, parece dedicar-se únicamente a sí misma y queda sin identidad, señalando poco a poco posibilidades muy distintas, esto es, una manera anónima, distraída, diferida y dispersa de estar en relación, con lo cual todo está implicado, empezando por la idea de Dios, del Yo, del Sujeto, y luego de la Verdad, y terminando por la idea del Libro y de la Obra (...)

Invisiblemente, a la escritura le correspondería deshacer el discurso en el que, pese la desgracia en que sospechamos estar, quedamos cómodamente instalados, nosotros que disponemos de él. Desde este punto de vista, escribir es la violencia más grande porque transgrede la ley, toda ley y su propia ley. (BLANCHOT, 1996, p. 10-11)



Como para Foucault, a escritura como experiência poética também é a experiência transgressora da linguagem, do discurso. Blanchot explora a literatura, marginal ao saber moderno, como experiência de contestação aos saberes, poderes e verdades. A experiência não tem sentido fenomenológico, é experiência de espaço e tempo fora da percepção. É experiência da não-experiência. A escritura se desvia, escapa, da experiência sensível; está fora da relação visível/invisível. É experiência de si própria, experiência total. [3] Para Foucault, a experiência é dobra, retorno sobre si mesma, não remete a nada além dela.

A escritura como experiência, Blanchot nos mostra com Orfeu [4]. Escrever é ser atraído para fora do vivido, do mundo, em direção à Eurídice, aos infernos – espaço da escritura. Orfeu se volta para Eurídice, pois não voltar-se seria trair uma experiência simultaneamente essencial e arruinadora da obra, experiência onde se atinge o ponto extremo, o extremo risco, exigência paradoxalmente impossível da obra. A experiência é experiência da escritura, busca impossível da origem e da morte. É experiência da atração da origem: o desobrar; e impossibilidade de “olhar” a origem: o obrar.

A experiência é também a experiência do Fora, de aproximação do neutro, Na linguagem, a escritura abre um vazio, um espaço neutro, não humano e não objetivo, onde ela se desdobra, desdobrando-se em um espaço e tempo próprios, espaço da experiência, da obra: espaço infinito e tempo da repetição. E é neste deserto inocupável, neste espaço literário, que o escritor vaga, erra, na “solidão essencial”.

O neutro diz respeito ao negativo, ao ser como negativo, e não à negação. Como diz Foucault em O pensamento do exterior, a linguagem de Blanchot não faz uso dialético da negação. A literatura é linguagem do neutro, onde a tensão dos contrários se mantém como paradoxo, não se dilui. A dimensão do neutro, para Blanchot e Foucault, se opõe à dialética, o negativo sendo “impoder”. Blanchot distingue entre a linguagem do discurso, do mundo, comunicativa, dialética e a escritura, onde a linguagem se diz linguagem. A escritura, a palavra literária, é indiferente a uma verdade que subsista fora dela e também à cultura onde ela é operatória. Ela é o silêncio mais silencioso, pois capaz de interromper o ruído e transformá-lo em palavra. Ela só atende às suas próprias exigências, sendo linguagem do impossível, na qual a dualidade da linguagem, a ambigüidade, se mantém, sem o dizer e o não-dizer diluírem-se um no outro ou contestarem-se. É um “e” outro.

Na forma poética da linguagem, a linguagem revela seu abismo e seu centro, sua essência, que não é ocultar ou desvelar um sentido escondido. Sua essência é seu vazio, sua ausência: “ponto” para o qual seu ser é atraído e onde ela desmorona. Na linguagem desdobrada, em sua repetição, está o ser da linguagem, que “nasce” não como positividade de um sentido, mas como negatividade, ausência de sentido. A linguagem não representa as coisas. A linguagem se dobra sobre si mesma. Ao se reduplicar, a linguagem demonstra que não existe linguagem que seja verdade em espelho de uma linguagem primeira, original. A verdade da linguagem está na sua permanente proliferação.


A morte impossível


A obra como experiência situa-se na relação da linguagem com a morte. Na experiência literária, a linguagem se relaciona com a morte. Para Foucault, a relação com a morte é o mais original da linguagem. Para Blanchot, a experiência original é experiência da desaparição, da morte, como experiência da ausência da origem e da morte. Para ambos, escrever para não morrer não é vencer a morte por uma obra imortal, mas fazer algo dela escapar e, como Orfeu, dela se aproximar. Escrever é incessantemente morrer, não estar completamente morto nem vivo. Entrar no espaço literário é morrer, tornar-se imagem, imagem que é incessantemente substituída por imagens cada vez mais instáveis até a desaparição. Nas reflexões de Mallarmé sobre a linguagem, Blanchot encontra não só o caráter impessoal da linguagem, o “eu” que se apaga na escritura, como também sua repetição infinita [5]. Mallarmé se depara com dois abismos, do Nada (ausência de Deus) e do Eu (sua própria morte), e Igitur [6] é a experiência da potência do negativo, o encontro do risco poético, da linguagem como potência mortal. Negativo e morte: morte sem negação. Não morte com o poder de negar mas morte como impossibilidade de morrer. Na “morte impossível” de Blanchot, a neutralidade da morte se opõe à morte como negativo no pensamento dialético. Aqui talvez toquemos a aproximação entre Blanchot e Foucault mais fortemente, no ponto em que ela parece se abrir: a relação entre linguagem e morte, que Foucaut diz se modificar na modernidade, se assemelha à morte impossível para Blanchot. A linguagem ao infinito e A literatura e o direito à morte (BLANCHOT, 1997) são textos incrivelmente próximos.

Em A literatura e o direito à morte, Blanchot nos fala que a linguagem que se tornou literatura questiona a si mesma, erguendo-se sobre suas ruínas. Ao negar-se a si própria a literatura começa a existir. Mas o estatuto desta negação não é o mesmo do negativo na contradição. Esta negação é potente e incessante, e como poder de negação a linguagem é produtora de vazio, é potência de morte. Não de morte verdadeira, real, no mundo, e sim morte ideal, morte de nenhuma pessoa, morte impossível: morte indiferente e sem verdade. Neste sentido é que a literatura é aproximação da morte. Aqui Sade surge com tanta força como a que tem no texto de Foucault. Sade aqui é a experiência da negação. Ele traz a violência para a literatura onde realiza, não realizando, a transgressão, a morte como infinita repetição. Em Sade, a literatura apareceria em sua essência como movimento infinito de negação, negação circular, movimento excessivo através do qual um vazio, uma ausência se abre, fazendo da escritura murmúrio inaudível e da sua obra uma obra para ninguém.

A literatura se liga à linguagem, que se liga à morte. O ato de nomear é já uma morte: temos o que a palavra significa porque ela já o suprimiu. A palavra nos dá o ser já privado de ser, como ausência deste ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser. Ele passa a existir na realidade do nome. Esta destruição é condição da linguagem comunicativa. A aniquilação da existência é pré-requisito para o sentido da palavra. A linguagem não mata realmente ninguém, mas, ao nomear, a morte como ameaça real, a possibilidade desta destruição, já está presente nela. Sem a morte real não poderia haver a morte ideal na linguagem. Mas na linguagem comum, se a coisa desaparece a palavra também desaparece como significante. Ela não tem existência própria. Ao retirar-se do sentido, só resta à linguagem afirmar-se, dizer, sendo escritura. É aí que a linguagem se revela como coisa, coisa escrita. Segundo Blanchot, a literatura abriga assim duas tendências da linguagem: a da negação e a da preocupação com a realidade das coisas. Os seres que existem na literatura são seres de linguagem, feitos de palavras privadas incessantemente de sentido, seres que neste espaço neutro oscilam entre a vida e a morte.

Reencontramos Mallarmé. A palavra literária é imagem pois já não é signo de coisa mas imagem de si mesma. É presença de sua própria ausência, linguagem que suspendeu o mundo, o sujeito e o outro, restando apenas em seu ser ausente, irreal, que só pode se afirmar, mas sempre ameaçado por sua desaparição. Blanchot situa na obra de arte a experiência original, extrema: a máxima afirmação, pelo artista, do risco da própria dissolução.

Fora da morte e da imortalidade está a morte impossível, a morte como o eterno tormento de morrer. É a impossível experiência da morte que está na origem da literatura. O escritor só escreve estando já morto: esquecido, esgotado, aniquilado. A questão que é o ser da literatura é a questão da morte.



A morte trabalha conosco no mundo: poder que humaniza a natureza, que eleva à existência o ser, ela está em nós, como nossa parte mais humana; ela é morte apenas no mundo, o homem só a conhece porque ele é a morte por vir. Mas morrer é quebrar o mundo: é perder o homem, aniquilar o ser; portanto, é também perder a morte, perder o que nela e para mim fazia dela morte. Enquanto vivo, sou um homem mortal, mas, quando morro, cessando de ser um homem, cesso também de ser mortal, não sou mais capaz de morrer, e a morte que se anuncia me causa horror, porque a vejo tal como é: não mais morte, mas a impossibilidade de morrer. (BLANCHOT, 1997, P. 324)



“Escrever para não morrer” é já estar morto ao escrever.



Referências bibliográficas



BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

______ El diálogo inconcluso. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana, 1996.

______ O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

______ O livro por vir. Lisboa: Relógio d´Água, 1984.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins

Fontes, 1987.

______ Ditos e escritos III - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2006.

NIETZSCHE,F. “A ‘razão’ na filosofia”. In Crepúsculo dos Ídolos. Lisboa: Guimarães, 1985.


[1] A idéia de que a linguagem literária expressa o próprio poder de falar da linguagem, o próprio ser da linguagem, filia-se à concepção de intransitividade da linguagem proposta por Barthes em O grau zero da escritura, e que tanto Foucault quanto Blanchot retomam. Ver BLANCHOT, M. O livro por vir. Parte IV, capítulo II.

[2] Esta questão atravessa todo o livro, mais especificamente os capítulos II.5, IV.7, VIII.5, XIX.1, X.5 (final).

[3] Em L’entretien infini, capítulo IX, sobre Bataille e Sade, Blanchot fala da experiência-limite: experiência em relação ao extremo, ao impossível, ao impensado no pensamento. Em O livro por vir, capítulo IV.II, ele trata da experiência total que diz respeito à própria exigência de escrever.

[4] “O olhar de Orfeu”, texto central de O espaço literário, como diz Blanchot na abertura do livro.

[5] “O mito de Mallarmé”, em A parte do fogo. E “A experiência de Mallarmé”, em O espaço literário.

[6] “A experiência de Igitur”, em O espaço literário.

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