terça-feira, 6 de novembro de 2007

POMOSEXUALS

POMOSEXUALS

A LITERATURA PÓS-MODERNA DAS MINORIAS SEXUAIS

Eliane Borges Berutti (UERJ)



Ao se tratar de literatura norte-americana contemporânea, o estudo
das literaturas das minorias faz-se necessário. A partir de
Stonewall (1969), as minorias sexuais têm reivindicado não apenas
participação política na sociedade norte-americana mas também
inclusão no cânon literário. A teoria queer, desenvolvida nos anos
80 e 90, também tem contribuído para o estudo da literatura das
minorais sexuais. Neste artigo, analisarei dois contos dessa
produção literária, "Six Fables" de Bernard Cooper e "How to Engage
in Courting Rituals 1950s Butch-style in the Bar" de Merril
Mushroom, ressaltando sua contribuição lingüística para o pós-
modernismo.

O termo "pomosexual" foi extraído do livro Pomosexuals: Challeging
Assumptions about Gender and Sexuality. Seus editores, Carol Queen e
Lawrence Schimel, cunharam o termo especialmente para o livro porque
acreditam, em primeiro lugar, que a sigla LGBT&F (Lesbian, Gay,
Bisexual, Transgendered, and Friends) (Lésbica, Gay, Bissexual,
Transgênero e Amigos) não abarca mais a gama das minorias sexuais.
Em segundo lugar, porque "pomo" é, em inglês, a abreviatura de pós-
modernismo. E, para os editores, é fundamental a interligação entre
esse movimento cultural e a situação contemporânea dessas minorias.

O pensamento pós-moderno nos convida a convivermos com a
noção Zen de "subjetividades múltiplas"- a idéia de que não existe
uma realidade sólida, objetiva; de que cada um de nós experimenta
nossa realidade de maneira subjetiva, sendo afetado(ou influenciado)
por nossas circunstâncias únicas. Essa forma de pensamento fomenta
realidades sobrepostas e, algumas vezes, contraditórias; incentiva
uma vida de investigação e questionamento em oposição à busca da
Verdade Única...

Ao eleger o conto de Bernard Cooper para este estudo, tinha em mente
essa citação. Creio que Cooper criou uma forma de ficção em que
realidades sobrepostas e contraditórias podem ser observadas, além
de ter nitidamente apreendido a realidade de forma subjetiva.
Ademais, "Six Fables" é representativo de sua obra que "desafia e
expande os parâmetros tradicionais da ficção". Pode-se questionar
até se é apropriado classificar de "conto" essa narrativa ficcional,
já que é composta de seis partes aparentemente sem ligação.

A primeira parte tem como título "Atlantis". O narrador /
protagonista se encontra em um barbearia, Nick's Barber Shop, cujo
dono era um filipino. Apesar de morar nos Estados Unidos há muito
tempo, Nick comunicava-se basicamente com seus clientes por mímica,
uma vez que suas palavras em inglês eram incompreensíveis: "Sua
pronúncia filipina carregada obscurecia o significado, apesar do som
ser suave, e o sentido, traduzido na luz da tarde, era expresso pelo
movimento das mãos de Nick." (p. 516)

Entretanto, o que seria um ato da vida cotidiana - ir ao barbeiro
cortar o cabelo - transforma-se em uma experiência inesquecível para
o protagonista. Cortar o cabelo com Nick transporta-o não apenas
para o passado recente, mas também para um passado mitológico em
Atlântida. O que eu gostaria de ressaltar na longa citação que segue
é o uso da linguagem poética para descrever uma experiência do
cotidiano, entrelaçada com imagens suscitadas por essa experiência:

O zumbido do ventilador, o intoxicante cheiro de mentol do
Barbasol produziram forte impressão em mim; fosfeno tremia como
peixinhos de água doce nos cantos escuros da minha visão, e eu
descobri que aquele mundo, manchado de charuto..., basso profundo,
era o mundo perdido de meu pai, que não podia me amar. Então, quando
Nick fazia massagem nos meus ombros e pressionava minhas têmporas
(massagem de graça a cada visita), eu inconscientemente tocava nele
como um gato em Atlântida. Seus dedos inundavam minha testa como
água. Comecei a sorrir de forma imperceptível e ver os postes
listrados como colunas submersas e sereias sensuais em biquíni
salmão e bolhas do tamanho de bolas de baseball subindo à superfície
e estourando com fragmentos de conversa filipina. (p. 517)

A segunda parte do "conto" é intitulada "Capiche?" Nela, o autor em
conversa com o leitor relata sua história em Veneza, onde tenta
aprender italiano com a Signora Marra. Após descrever partes da
cidade através de belas imagens, ele focaliza seu encontro amoroso
com o italiano Sandro e a dificuldade de comunicação na língua
estrangeira. No entanto, a narrativa é interrompida bruscamente com
a seguinte frase: "Mas, de repente, essa aventura acaba. Tudo que eu
disse para você é uma mentira. Quase tudo.... Mas mentiras são
preenchidas com modulações de verdade intraduzível..." (p. 519) Ele
confessa que nunca esteve em Veneza, ou aprendeu italiano. Tanto a
professora como o belo Sandro são produtos de sua imaginação. Foi
levado pela beleza do nascer do dia e teve vontade de compartilhá-lo
com o leitor:

O sol Chianti estava nascendo, intoxicante, e eu estava tão
comovido com as estranhas, abstratas trajetórias do som que eu
queria levar você comigo a algum lugar, algum lugar antigo e bonito,
e, honestamente, queria lhe oferecer algo, algo como a possibilidade
de um amor repentino, ou cartões postais coloridos de piazzas
caóticas, e queria que você me escutasse como se estivesse escutando
uma gravação rara de Enrico Caruso. (p. 519)

Em "Sudden Extinction", Cooper estabelece um paralelo entre a
extinta raça dos dinossauros, que ele observa no Museu de História
Natural, e seus colegas da academia de ginástica. Ele consegue
enxergar traços dessa raça no homem contemporâneo. E imagina como os
exercícios de musculação seriam observados através de olhos de raio
X. Sua conclusão prevê a extinção súbita de nossa raça:

E eu sabia que nossos restos mortais seriam conservados como
segredos debaixo da terra. E eu sabia que um dia nós iríamos tombar
como monumentos, provocando nuvens de poeira. E quase ouvi o hino
fúnebre de nosso desaparecimento, baque após baque após baque,
nossas últimas titânicas exalações em voz alta e, sofridas, e, em
voz baixa. (p. 520)

Em oposição ao desaparecimento da raça humana, Cooper trata, em
seguida, da figura da família tradicional tal como é retratada em um
livro escolar. Além de "um casal orgulhoso de generalizações" (p.
520), também aparecem duas crianças (um menino e uma menina) de
forma estilizada. Contudo, a estatística revela que, na realidade,
para cada casal a proporção de filhos é de 2.5. O alvo da crítica de
Cooper reside especificamente no .5 . Sendo representada pela
metade, esta figura tem um das mãos "estendida como se fosse tocar o
mundo conhecido pela última vez" (p. 520), deixando para trás as
características que compõem esse mundo, "sem hesitação, sem
arrependimento". Cabe ao leitor tecer um paralelo entre esse .5 e a
estatística que revela que 10% da população dos Estados Unidos é
composta por gays. Devido a razões óbvias, eles também são
excluídos, já que não podem ser incorporados à maioria
heterossexual, tendo que abandonar, abrir mão de inúmeras
características componentes desse "mundo conhecido", "sem hesitação,
sem arrependimento".

Na quinta parte dessa narrativa ficcional, "The Origin of Roget's
Thesaurus", o criador do famoso dicionário sente-se inebriado ao
jantar. O cheiro do alho que vem da comida aliado ao cheiro de lilás
emanado por sua mulher, Anne-Marie, aguça-lhe os sentidos assim como
a mente:

O que é precisamente essa sensação, essa inundação de
fragrância, apetite e luxúria? Que rubrica ou termo ou adjetivo
poderia capturá-la? Ele pensa delicioso. Não, agradável. Então, o
panorama de agradabilidade abre em seu cérebro: prazenteiro,
encantador, atrativo, um vasto e verde país. (p. 521)

Nesse ponto, faz-se um corte na narrativa para dar lugar ao
questionamento do próprio autor que não consegue entender as
conexões engendradas para ir do cérebro de Dr. Roget para o seu,
minutos antes de fazer amor. O corpo de seu companheiro também lhe
provoca sensações corporais e lembranças. E, as palavras que lhe vem
à mente são flexível, maleável, dobrável, mutável... (p. 521)

"Childless" é a última parte ficcional que compõe "Six Fables", onde
o autor especula sobre os espermatozóides. Por ser gay, ele revela a
intenção de não procriar, ocasionando a morte desses portadores da
vida. Pode-se ouvir nas entrelinhas dessa narrativa sua voz de
angústia por ser childless quando comenta: "A morte está por toda a
parte, e algumas vezes nós ajudamos." (p. 522) Ou então, no último
parágrafo do conto, ao comparar metaforicamente a ausência de filhos
ao silêncio:

A primeira vez que estava sozinho no campo, eu andei por um
lugar que vibrava com música e me perguntei se os grilos tocavam
suas asas ou suas pernas. Minhas pegadas, ao invés de causar o baque
usual, davam origem a piscinas que propagavam um silêncio solene. O
som parava por onde eu andava. E eu andava e andava para silenciar o
mundo, deixando o silêncio como rastro. (p. 523)

Nas seis fábulas escritas por Bernard Cooper é possível encontrar
uma ligação, um denominador comum. O que costura essas fábulas é
extraído de elementos da vida cotidiana e entrelaçado pela
imaginação do autor. Cooper recria a realidade através de sua
experiência pessoal que é única, adicionada por seu olhar queer
diante da sociedade norte-americana contemporânea.

"How to Engage in Courting Rituals 1950s Butch-style in the Bar" de
Merril Mushroom fornece um exemplo de literatura lésbica post-
Stonewall. Desta vez, ao contrário do que foi observado em relação à
obra de Cooper, a desconstrução - uma das palavras-chave do pós-
modernismo - se faz presente através do humor. Porém, antes de
passar à discussão do conto, duas explicações tornam-se necessárias.
A primeira diz respeito às datas. Originalmente publicado em 1982, o
conto retrata uma situação que ocorria nos anos 50 nos Estados
Unidos: os bares eram o único local público onde lésbicas podiam se
encontrar e dançar.

Entretanto, como o conto data dos anos 80, sua perspectiva passa a
ser diferente - três décadas são suficiente para criar o afastamento
necessário e recriar uma situação dramática do passado com humor. A
editora da antologia The Penguin Book of Lesbian Short Stories,
Margaret Reynolds, chama a atenção para essa questão:

... Merril Mushroom escreve sob o olhar dos anos 80 e faz um
pastiche engraçado de decisões que, para as mulheres que realmente
vacilavam entre a camisa de lenhador ou o batom Fire-and-Ice, eram
extremamente sérias.

A segunda explicação relaciona-se ao vocabulário. Nos Estados
Unidos, os termos butch e femme fazem parte do jargão lésbico, sendo
usados como gíria para diferenciar dois tipos de mulheres same-sex
oriented que formam um casal. A que tem aparência de homem, vestindo-
se com "a camisa de lenhador", cabelo curto, sem maquiagem e
desempenhando o papel masculino na relação é denominada butch. Sua
companheira, a femme, é a mulher de aparência e comportamento
femininos, que pode ser facilmente confundida com um mulher
heterossexual. Nos anos 50, com a repressão sexual, o casal lésbico
imitava ou reproduzia o casal heterossexual aceito pela sociedade.

Indiscutivelmente, o tratamento cômico dado a uma questão bastante
angustiante (o início de relacionamento entre duas pessoas que são
proibidas de mostrar sua sexualidade na sociedade) é a
característica principal deste conto que começa com estas palavras:

Você está sentada sozinha no balcão do bar que você
freqüenta, pernas abertas, apoiada no cotovelo, segurando seu
cigarro entre os dedos. Não pode haver dúvida de que você é uma
butch. Você nota uma mulher que nunca tinha visto antes sentada numa
mesa, e você é atraída por ela. ... Você não tem certeza se ela é
femme ou butch - uma questão crítica ... Se a mulher é uma femme,
você pode continuar com os rituais. Se a questão é incerta, continue
como se ela fosse uma femme. (p. 213)

Os oito rituais que seguem mostram, de uma forma humorística, as
tentativas de uma butch em cortejar uma femme. Parte do humor vem da
própria linguagem, através da acumulação de condicionais, e do uso
do imperativo: "Se ela olhar para você e sorrir, proceda diretamente
ao ritual n° 4, e se ela levantar uma sobrancelha, vá imediatamente
ao ritual n° 5. Se ela passar a língua nos lábios, peça para ir para
casa sem outro ritual. Se ela olhar para você e fechar a cara,
esqueça".(p. 214) Algumas associações tornam-se inevitáveis: a
primeira trata-se de uma questão de gênero. O mesmo ritual, ou
melhor, os mesmos passos nos rituais descritos poderiam ser
executados por um adolescente ao ir a uma festa. A angústia da
primeira conquista, o medo da rejeição e a necessidade de
comunicação também fazem parte do ritual de conquista heterossexual.
Outra associação que o leitor pode estabelecer reside na
coincidência da descrição lingüística desses rituais com as
instruções de funcionamento para máquinas ou equipamentos a serem
seguidas pelo comprador. Ou então, com os manuais how to,
tipicamente norte-americanos, que ensinam o indivíduo a executar
tarefas sozinho. Conseqüentemente, a importância e emoção envolvidas
em um ritual de conquista ficam reduzidas e o encontro amoroso em si
é equiparado à instalação de uma secretária eletrônica ou a aprender
a jogar tênis sozinho. O humor ajuda a desconstruir personagens,
situações conflitantes e o amor propriamente dito.

Outro uso de humor no conto origina-se da inversão entre o discurso
e a ação, acarretando a ironia: "Depois de vocês duas terem deixado
bastante claro que nenhuma das duas vai para a cama na primeira
noite, vocês deixam o bar juntas." (p. 218). Utilizando o cafezinho
como um pretexto, mais uma vez a linguagem distorce ou vela a
realidade, já que sexo é o objetivo: "Você pode levá-la para casa, e
ela te convida para um cafezinho; ou você pode levá-la para sua casa
para um cafezinho antes de levá-la para casa ... Ao contrário das
duas, o café provavelmente só será provado na manhã seguinte." (p.
218) Com esta conclusão, o conto atinge o objetivo dos rituais,
esvaziando o romantismo do encontro amoroso e retratando uma
relação "pós-moderna".

Através da análise desses dois contos da literatura gay e lésbica
post-Stonewall, torna-se clara a presença do pós-modernismo com a
desconstrução da linguagem, da lógica, dos valores.

Nenhum comentário: