segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Relato de um não-lugar

Relato de um não-lugar
"Inventava um país e discorria sobre ele sem a menor cerimônia".
Bernardo Carvalho, Mongólia

É sempre interessante ouvir o que os escritores têm a dizer sobre o
seu ofício. Não que suas opiniões devam ser levadas muito em conta
no momento de interpretar o que eles escrevem, afinal, são
escritores, inventores de mundos paralelos e, como tais, não
propriamente comprometidos com os rigores da "verdade", no sentido
corrente do termo. Na maneira como respondem a determinadas
perguntas, porém, é possível rastrear um modo de ser e de estar no
mundo ou na literatura – o que, nos grandes casos, é a mesma coisa –
intimamente relacionado com o que escrevem. O argentino Ricardo
Piglia, por exemplo, ao ser questionado certa vez sobre o que
esperava de um escritor respondeu: "Que escreva bem." O brasileiro
Bernardo Carvalho, ao contrário, ao se ver diante de uma pergunta
semelhante respondeu que escrever bem é um a priori, um dever de
ofício do escritor, e que isso nem deveria ser motivo de elogio numa
análise sobre o valor literário de um texto (1).

Aparentemente discordantes, creio que há pontos de contato entre as
duas visões. Se o compromisso do escritor – como me parece ser a
idéia subjacente à frase de Piglia – é com sua escrita, com sua
obra, todo apelo político, social ou de outra ordem (embora
legítimo, se fizer parte das preocupações do escritor), será sempre
secundário diante do trabalho com a linguagem , característico da
literatura, e frente à autonomia da obra de arte
(esse "inutensílio", como a chamaria Paulo Leminski). Dito de outro
modo: se a obra não se realizar no plano estético, não haverá
engajamentos ideológicos, sociais ou políticos que a justifiquem.
Nessa medida, a fala de Piglia não somente declara, em outros
termos, a mesma coisa dita por Carvalho, como também sintetiza, de
algum modo, a obra do brasileiro, sobretudo o seu recente romance,
Mongólia (2003). Essa espécie de diário de viagem que Bernardo
Carvalho escreveu a partir de um périplo de cerca de cinco mil
quilômetros pelo país asiático, financiado por uma bolsa de criação
literária concedida pela Fundação Oriente, de Lisboa, é menos o
relato jornalístico de um "choque cultural" (a rigor inexistente,
como bem percebe Jorge Coli, num artigo sobre o livro (2) do que a
criação de um não-lugar mental , mais do que físico, feito de pura
linguagem e alucinação.

Os relatos em espiral, que parecem se desdobrar sobre si mesmos e o
tom algo paranóico dos personagens – que remetem, por vezes, aos
universos criados por Thomas Pynchon ou Thomas Bernhard – são
característicos da prosa de Bernardo Carvalho, cujos temas trafegam
sempre sobre o frágil liame das identidades confusas, das
aparências, das contínuas buscas por alguma verdade que, no entanto,
se esgotam nelas mesmas. Não será à toa que um de seus romances
anteriores se chame, justamente, Teatro (1998), nem é assintomático
que numa resenha sobre o livro de contos Grande Sonho do Céu , de
Sam Shepard, Carvalho chame a atenção para o último conto da
coletânea, Todas as árvores estão nuas , no qual um homem, à visão
da mulher diante da televisão assistindo a O terceiro homem ,
entrega-se a um fluxo de digressões a respeito do que há de fake no
filme – o vento fabricado, as folhas das árvores de mentira – até o
ponto de descobrir-se "dentro" da história, acreditando em cada
fotograma que aparece na tela. No final, o homem sente-se feliz por
estar ali, tocando os cabelos falsamente louros da mulher, mas,
ambiguamente, se pergunta: "Quanto tempo faz desde que a beijei pela
primeira vez e quem é que eu estava fingindo ser?". À luz dessa
frase final, o Bernardo Carvalho crítico faz um comentário que
serviria para a obra do Bernardo Carvalho escritor: "A idealização
da autenticidade cai por terra. Afinal, antes de ser um homem do
oeste, Shepard é um homem de teatro."

Também Carvalho é um homem de teatro, se não o do palco, das
cortinas e da mise-en-scène , o das relações sociais,
igualmente "encenadas", levado a cabo por cada um no cotidiano (este
já por si teatral). Essa encenação vai do relato cindido em dois,
com uma segunda parte "desmentindo" e anulando a primeira, como
acontece no próprio romance Teatro , já mencionado, até um romance
travestido de peça teatral, como Medo de Sade (2000), passando
pela "coincidência" de nomes de cidades e os embaralhamentos
narrativos decorrentes: a Los Angeles, de Os Bêbados e os Sonâmbulos
(1996), a qual (remetendo à Paris, de Wim Wenders, que não é a
capital da França, mas um lugarejo perdido no deserto texano), não é
na Califórnia, mas no Chile. E "para completar," diz um dos
personagens do novo livro, "na Mongólia, lugares diferentes têm o
mesmo nome, como se o próprio terreno fosse movediço."

Talvez também fosse possível, aqui, traçar um paralelo com As
Cidades Invisíveis , de Italo Calvino ou com um seu duplo
brasileiro, Cidades Inventadas , de Ferreira Gullar, dois relatos em
que a imaginação, travestida de memória, recria as cidades e o
mundo, mas prefiro lembrar de um conto do próprio Bernardo Carvalho,
O ARQUITETO Um homem e uma mulher a caminho da polícia , do livro
Aberração (1993), para situar Mongólia . Já naquele conto – a
história de um arquiteto que, sentado na privada, observando os
azulejos nas paredes, as lajotas no chão, e as louças do banheiro,
tem a idéia de uma cidade, labiríntica, que constrói com as mesmas
proporções do banheiro em uma escala milhões de vezes maior – estava
presente essa concepção de espaço, de lugar, como alucinação, como
coisa mental, simultaneamente paranóica e racional. Em Mongólia a
mesma estrutura é repetida, seja no plano formal – três níveis
narrativos que se misturam: o do narrador, propriamente dito (ex-
embaixador brasileiro na China), que relata a investigação
diplomática sobre o desaparecimento de um fotógrafo brasileiro no
interior da Mongólia, as anotações de um diplomata escalado para
encontrar o fotógrafo e o diário do próprio fotógrafo – seja na
reprodução do sentimento de estranhamento diante dos lugares, o qual
se dá através da constatação do caráter inóspito e artificial que
lhes caracterizam e por uma desconstrução de estereótipos que
acentua ainda mais a sensação de deslocamento dos narradores. Esse
deslocamento, porém, é menos geográfico do que mental. Não é porque
estão na Mongólia que os narradores se sentem estrangeiros; eles são
estrangeiros no mundo – suas angústias são de ordem existencial,
para não dizer metafísica – e o inusitado e comovente desfecho, que
reitera, algo borgeanamente, a irônica força do aleatório que se
imiscui em seus destinos, só vem a confirmar esse sentimento de
incompreensão que os acomete.

Mongólia é todo perpassado por descrições da paisagem mongol e dos
hábitos de seus habitantes, no entanto, o que num primeiro momento
poderia parecer a narrativa de um "choque de civilizações", uma
reflexão sobre o deslocamento e o desconforto causado pelo outro,
revela-se, ao contrário, o relato de um mal estar globalizado, daí
um certo tom claustrofóbico – no sentido mais kafkiano do termo –
impresso ao texto: " Os edifícios espelhados, vistos de longe, são
como torres de uma cidade de ficção científica, um mundo ao mesmo
tempo futurista e decadente, sob a opressão das nuvens de poeira e
névoa que, tornando a luz do sol difusa e tênue, fazem do horizonte
uma miragem, um desejo cego para quem quer escapar deste lugar sem
saídas, um lugar que tenta ser asséptico, em vão, apesar de toda a
sujeira atávica e dos odores mais variados e fétidos que volta e
meia sobem ao nariz. (...) É uma arquitetura avassaladora, ao mesmo
tempo majestosa e inóspita, como um palácio que tivesse sido
construído no meio do deserto só para impressionar quem passasse por
ali morrendo de sede tentando evitar as miragens ."

Essa descrição de Pequim, feita pelo diplomata numa escala a caminho
da Mongólia, poderia muito bem ser um retrato de Brasília,
Washington ou qualquer outra capital do poder, "opressiva e irreal",
como ele declara em outro trecho. Nesse sentido, tanto faz tentar
descrever a China, a Mongólia ou o próprio Brasil: será sempre a
descrição de uma miragem, de um cenário subjetivo, inexistente no
mundo físico, que se repetirá indefinidamente, a despeito das
geografias. "É como se todos mentissem e as mentiras fossem
complementares", escreve o diplomata em seu diário. Essa é uma idéia
recorrente ao longo da narrativa e está presente nos mínimos
detalhes, inclusive num elemento extra-textual: as belas fotos da
capa e da contracapa do livro, por exemplo, que poderiam ser do
fotógrafo desaparecido, são do próprio Bernardo Carvalho, e uma
delas, desmentindo qualquer alteridade mais óbvia ou folclórica,
retrata um grupo de mongóis jogando bilhar em meio a um espaço
desértico, numa cena simultaneamente estranha e familiar.

Se a imaginação é mesmo a memória que enlouqueceu, como dizia Mário
Quintana, Mongólia é o atestado da loucura, da nossa incapacidade de
remontar os acontecimentos às suas causas e encontrar significados.
E da capacidade inversa que só a literatura possui de ordenar e
atribuir sentido aos caóticos e gratuitos eventos da vida.

NOTAS
1. Cf. Retrato pessoal . Entrevista de Ricardo Piglia a Martin
Caparros. Buenos Aires, Babel , 1990. Reproduzida no livro O
Laboratório do Escritor . Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo,
Iluminuras, 1994, p.57. A pergunta, na verdade, era: "Para que serve
um escritor?", e a resposta: "Para dizer bem." A declaração de
Bernardo Carvalho estou citando de memória.

2. Cf. COLI, Jorge. Não há mais para onde ir . "Folha de S. Paulo,
Mais!", 30 de novembro de 2003, p.19.

JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES. Colaborador do Triplov, professor
de literatura, doutor em literatura brasileira pela UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) – Brasil, com a tese
Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado
no romance "O quieto animal da esquina", de João Gilberto Noll.

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