terça-feira, 6 de novembro de 2007

O Pós-Modernismo na visão de John Barth

A Literatura do Esgotamento e a Literatura da Plenitude:

O Pós-Modernismo na visão de John Barth

Ermelinda Ferreira*

1 - Apresentação

John Barth é um escritor americano nascido em 27/5/1930
em Cambridge, Maryland, EUA. Tinha 26 anos quando seu primenro
romance foi publicado, The Floating Opera (A Ópera Flutuante,
traduzido para o português e publicado pela Brasiliense). Bacharel e
mestre em Letras pela Universidade John Hopkins, atualmente é
professor de Inglês na Universidade Estadual de Nova Iorque em
Buffalo. É considerado um dos principais escritores americanos pós-
modernos, e suas obras são:



. The Floating Opera (1956)

. The End of the Road (1958)

. The Sot-Weed Factor (1960)

. Giles Goat-Boy (1966)

. Lost in the Funhouse (1972)

. Chimera (1972)

. Letters (1979)



Escreveu ainda, nos intervalos entre os romances, dois
ensaios sobre o Pós-Modernismo, publicados na revista The Atlantic:



. The Literature of the Exhaustion (1967) - traduzido
como La Littérature de l'épuisement; La Literatura del Agotamiento;
A Literatura do Esgotamento.



. The Literature of the Replenishment (1980) - traduzido
como La Littérature du renouvellement; La Literatura de la Plenitud;
A Literatura da Plenitude.



Escreveu ainda, em 1990, o artigo Posmodernismo
Revisado, onde retoma e rediscute os temas anteriormente abordados.
Neste texto ele diz que "a diferença entre intelectuais
profissionais e artistas profissionais, que talvez sejam
intelectuais aficcionados, é que os primeiros publicam artigos e
ensaios para compartilhar seus conhecimentos, enquanto os segundos
podemos publicar um ou outro ensaio entre novelas para compartilhar
nossa ignorância, a fim de que os mais doutos possam vir em nosso
socorro". (p. 95).


2 - A Literatura do Esgotamento - idéias gerais

A admiração pelos contos de Jorge Luis Borges associada
a uma preocupação com os destinos do romance, nascida numa época e
num lugar que lhe pareciam um tanto apocalípticos, teriam inspirado
John Barth a redigir este que se tornou não apenas um dos mais
conhecidos, mencionados e discutidos, mas também um dos mais mal
compreendidos ensaios sobre o Pós-Modernismo, segundo o próprio
autor. "A época era o final dos anos 60, o lugar era o campo
universitário de Buffalo, em Nova Iorque, transformado em campo de
batalha pela polícia que lançava bombas de gás lacrimogêneo nos
manifestantes contra a guerra do Vietnam; enquanto no Canada, as
sirenes de Marshall McLuhan anunciavam a iminente queda dos
literatos".

Neste contexto, Barth abre o seu artigo anunciando que
deseja discutir três aspectos:



a. Algumas velhas questões levantadas pelas novas
artes "intermeios", ou "mixed-means" arts: como a pop art,
os "happenings" teatrais e musicais, enfim, os movimentos de
contracultura artísticos;

b. Alguns aspectos da obra de Borges;

c. Suas idéias pessoais sobre aquilo que decidiu denominar a
Literatura do Esgotamento, que estariam relacionadas aos dois
aspectos anteriores.



a. Para Barth, falar de "esgotamento" não seria nada de muito
revolucionário ou preocupante, uma vez que a história da cultura
ocidental revela-se como uma busca constante de novas formas de
expressão, onde a originalidade, o ineditismo e a novidade são os
valores mais almejados. Nos anos 60, por exemplo, o que se observa é
uma reedição da verdadeira tradição de ruptura que se instalou ao
longo do tempo contra a Tradição, ou seja, contra formas que, um dia
inovadoras, acabaram se incorporando ao sistema e passaram a ser
sentidas como "esgotadas" em sua capacidade de chocar, surpreender,
interessar.



A reação contra o normativismo e o prescritivismo das
formas da arte "institucionalizada", porém, nem sempre se configuram
em novas e interessantes formas artísticas, embora possam ser
apreciadas e estudadas sobre outros aspectos. A arte pop, por
exemplo, é, na sua opinião, muito mais uma maneira de discutir
técnicas e conceitos sobre estética do que de fazer arte. Os
happenings, por sua vez, seriam formas de ilustrar dramaticamente
alguns pontos mais ou menos interessantes e válidos sobre a natureza
da arte e a definição de seus termos e gêneros.



Uma das características mais evidentes dessas
artes "reativas" é a tendência de eliminar não só o público
convencional (interessado em apreender ou compreender a obra de
determinado artista), mas também a noção mais tradicional do
artista: o agente consciente, no sentido aristotélico, que procura
unir o talento à técnica na busca do efeito artístico; um sujeito
favorecido por uma capacidade incomum, que procura tornar-se uma
virtuose, desenvolvendo e disciplinando o seu "dom". Esta visão
aristocrática do artista é condenada pelo Ocidente democrático como
politicamente reacionária e até mesmo fascista.



Barth, no entanto, cujo temperamento é o da "rebeldia
dentro de linhas tradicionais", diz preferir o tipo de arte que nem
todo mundo é capaz de fazer: o tipo que requer habilidade e talento
assim como brilhantes idéias estéticas e/ou inspiração. Julga ele,
por isso, mais interessante assistir à performance de um acrobata do
que visitar uma exposição de arte pop, porque o acrobata, no seu
campo específico de atuação, é capaz de fazer efetivamente algo que
a arte pop, no campo artístico, consegue apenas esboçar ou sugerir,
mas não realizar.



De qualquer forma, Barth considera a arte "intermeios"
importante porque aponta frequentemente para os avanços técnicos
mais recentes. Embora simpatize com Saul Bellow, para quem "o último
atributo de um autor é estar tecnicamente em dia com o seu tempo",
Barth considera essencial não se furtar às experiências e tendências
técnicas mais atualizadas. Um escritor fora de moda, tecnicamente
falando, é para ele um escritor defeituoso. Por isso, estar atento
às manifestações da arte "intermeios" é importante porque ela pode
sugerir algo de útil para a realização ou a compreensão de genuínas
obras de arte contemporâneas.



b. Barth considera Jorge Luis Borges um autor que ilustra a
diferença entre:

. um artista tecnicamente ultrapassado;

. um "civilian"(curioso? leigo? pop-artista?)
tecnicamente atualizado;

. um artista tecnicamente atualizado.



Na primeira categoria ele coloca os escritores que, não
obstante atualizem seus enredos e conteúdos, continuam utilizando a
tradicional fórmula romanesca ditada por Dostoiévski, Tolstói,
Balzac e Flaubert - o romance linear, com princípio, meio e fim,
construção psicológica dos personagens, cópia mimética da realidade,
enfim, o modelo realista - ignorando tudo o que se fez e se propôs
no século XX, em termos de técnica narrativa.

A segunda categoria é a de um vizinho seu que realiza
experimentalismos artísticos mirabolantes no quintal, mas em plena
consonância com os objetos e técnicas modernas.

Já a terceira categoria inclui algumas poucas pessoas
cuja técnica narrativa é tão avançada quanto a dos novos romancistas
franceses, mas que apesar disso conseguem falar eloqüente e
significativamente aos nossos (ainda) humanos corações sobre nossas
(ainda) humanas condições, tal como os grandes artistas de todos os
tempos sempre fizeram. Dois dos mais significativos especimens desta
categoria são, para Barth, Samuel Beckett e Jorge Luis Borges.



Eles se distinguem porque, numa época
de "ultimacies"(limites? sentenças? esgotamento?) e de soluções
definitivas em todas as áreas, do armamento à teologia; da celebrada
desumanização da sociedade à história do romance; seu trabalho
consegue refletir e lidar com o limite (ultimacy), tanto técnica
quanto tematicamente, não só antecipando as idéias da turma da The
Something Else Press(um tipo de imprensa alternativa, que produz
arte em cartões postais, livros em caixas e toalhas, promove uma
Escola de Literatura por Correspondência e outras irreverências do
gênero) - o que, para Barth, não é difícil de fazer - mas também se
constituindo esplêndidas obras de arte. Para o autor, as obras de
Beckett e Borges ilustram de uma maneira muito simples a diferença
entre o fato da existência de limites estéticos e a possibilidade do
uso artístico desses mesmos limites. Um verdadeiro artista, diz ele,
nunca exemplifica, meramente, um limite; ele o utiliza.



A partir daí, Barth passa a relacionar diversos contos
de Borges cujas idéias principais, na sua opinião, ilustram o que
ele entende como a literatura do esgotamento. São muitas as imagens
extraídas por Barth da obra de Borges para desenvolver argumentos em
torno da literatura do esgotamento: espelhos, duplos, labirintos,
bibliotecas infinitas, heterocosmos, planetas paralelos, enfim, toda
a obra borgeana lhe parece, entusiasticamente, reforçar a idéia do
esgotamento da tradição literária, mas sugerindo uma bifurcação no
caminho, que abre espaço à criação.



Na análise de Pierre Menard, Autor do Quixote, por
exemplo, ele diz que Borges realiza um ensaio sobre a dificuldade, e
talvez a inutilidade da escritura de textos literários
originais: "Sua vitória artística nesse conto é conseguir confrontar-
se com um limite intelectual e empregá-lo contra si mesmo, para
conseguir um novo trabalho humano". A originalidade de Borges
residiria em mostrar como é possível elaborar uma obra de arte sem
sequer escrevê-la: seu conto é a originalíssima sugestão da
escritura impossível de uma obra do passado - o D. Quixote - por um
autor do presente - Menard. Falando do impossível, trabalhando com o
limite, Borges acaba escrevendo uma peça literária da melhor
qualidade, atualíssima em seu conteúdo e surpreendente em sua forma.
Para Barth, trata-se de "conseguir jogar fora a água do banho sem
perder o bebê"; ou seja, elimina-se o supérfluo mas não se perde o
essencial.(1)



Na análise seguinte, que empreende sobre o conto Tlön,
Uqbar, Orbis Tertius, Barth reitera a noção do esgotamento,
discutindo como Borges concebe mundos hipotéticos a partir de textos
que refletem o modo hipotético como o próprio mundo "real" é
construído, onde os fatos e a história são muito mais construídos
pela linguagem e pelos discursos do que refletidos por eles. Os
criadores de Uqbar (país imaginário descrito num capítulo presente
apenas num único e misterioso exemplar da Enciclopédia Britânica), e
de Tlön (planeta concebido e descrito numa Enciclopédia por uma
sociedade secreta de intelectuais) mostram como o poder da realidade
imaginária muitas vezes suplanta a percepção da realidade empírica;
e mais: que a realidade empírica é apenas uma forma de construção
discursiva, nem mais nem menos "real" que a ficção.



Barth defende a opinião, porém, de que os autores
imaginários da Enciclopédia, não obstante sejam ficcionistas, já que
constroem uma ficção através da linguagem, não são artistas. O autor
que os imagina, porém, embora apenas aluda aos mundos imaginários,
é, para ele, efetivamente, um artista: "o que o torna um dos
artistas de primeira linha, como Kafka, é a combinação de uma visão
intelectualmente profunda e de um grande insight humano, de poder
poético e de um domínio absoluto de seus meios; uma definição que
seria óbvia em qualquer outro século anterior ao nosso" (no nosso,
supõe-se, é um caso de chamar a atenção...).



A alusão no conto do argentino ao Urn Burial, obra de
Sir Thomas Browne, que relata um caso verídico na história de uma
obra herética que teria sido mencionada à exaustão por vários
autores, de Bocaccio a Giordano Bruno, embora ninguém nunca tenha
visto uma cópia sequer do livro, reforça a tentativa
de "contaminação da realidade pelo sonho", que, enfraquecendo a
concretude da impressão da verdade do mundo real, fortalece a
percepção da realidade do mundo ficcional. "A história de Tlön é um
verdadeiro pedaço de realidade imaginária no mundo, análoga aos
hrönir", objetos imaginários que invadem a realidade com o peso e a
consistência muito concreta da imaginação (v. os minúsculos cones
pesadíssimos). Para Barth, a história de Borges se elabora como uma
metáfora de si mesma, construindo um mundo ficcional a partir do
reconhecimento irônico da impossibilidade de fazê-lo: o que se torna
simbólico, neste conto, não é a forma da história, mas o próprio
fato da sua existência. O conto é mais um espelho, é mais uma
cópula, embora o criador do conto afirme conhecer e partilhar a
assertiva do criador de Uqbar, para quem "os espelhos e a cópula são
abomináveis porque multiplicam o número dos homens": "O universo
visível é uma ilusão, ou mais precisamente um sofisma. Os espelhos e
a paternidade são abomináveis porque o multiplicam e o divulgam". É
como se Borges dissesse que sabe não ser mais possível inventar um
universo ficcional que espelhe, ilustre ou sirva para edificar o
universo real (pois o universo real é ele mesmo uma ficção); mas
que, apesar disso, insistisse em criar um universo ficcional,
utilizando como material a própria impossibilidade, e o fizesse de
maneira tal que o seu universo imaginário consegue manter a força
literária dos universos especulares da ficção de outros tempos.



Trata-se de um mecanismo de autodevoração, uma
construção abissal em que o modelo reproduzido desaparece nas
sombras da reflexão sobre os mecanismos da própria reprodução; um
exemplo daquilo que parece caracterizar a literatura pós-moderna
como eminentemente metaficcional.



Patricia Waugh define a Metaficção como sendo "o termo
dado à escritura ficcional que, consciente e sistematicamente chama
atenção para o seu status de artefato, a fim de levantar questões
sobre a relação entre a ficção e a realidade. Ao promover a crítica
de seus próprios métodos de construção, esse tipo de escritura não
apenas examina as estruturas fundamentais da narrativa de ficção,
como também explora a possível ficcionalidade do mundo exterior,
fora do texto de ficção literária" (Metafiction. Theory and Practice
of Self-Conscious Fiction, p.2.).



Linda Hutcheon, por sua vez, proõe os termos mímese do
produto e mímese do processo, para denominar os tipos de convenção
dominantes na narrativa do século XIX e XX, respectivamente. Para
ela, a base teórica do realismo naturalista consiste em levar o
leitor a identificar os produtos que são imitados: personagens,
ações, ambientações; e a reconhecer a similaridade dos mesmos com
seus correspondentes na realidade empírica, a fim de comprovar sua
validade literária. Uma vez que os códigos e as convenções
literárias são ocultados do leitor, o ato de leitura é visto em
termos passivos. Já o romance de natureza auto-reflexiva, desnudando
as convenções, explicita os códigos para que sejam conhecidos do
receptor. O processo de escrever torna-se, portanto, o objeto da
imitação.(Narcissistic Narrative).



Resumidamente, poderíamos dizer que, enquanto o romance
realista tenta reproduzir o mundo que parece ser e o romance
modernista o mundo que poderia ser, o romance pós-modernista dedica-
se a criar mundos que não poderiam ser, ou seja, mundos que admitem
contradições internas e que asseguram muitas vezes um estatuto
ontológico a objetos que apenas existem na imaginação. Grande parte
do "sentido" destas obras consiste em promover a aprendizagem do
código, daí a consciência pós-moderna de que "as palavras inventam
nosso mundo, dão forma ao nosso mundo, tornam-se a única
justificativa para o nosso mundo", como diz Fokkema.(História
Literária, Modernismo e Pós-Modernismo).



Assim, no mundo pós-moderno, a solução para o problema
vivido pelos "escritores vocacionados", como diz Barth, ou os "print-
oriented bastards", como diz Marshall McLuhan, é simplesmente
ignorar os profetas do Apocalipse da cultura e transformar a própria
ameaça apocalíptica no tema de seus próximos romances. Na opinião de
Barth, é isso o que faz Borges com as suas Ficções, Nabokov com o
seu Fogo Pálido, e ele mesmo com os seus romances: "romances que
imitam a forma do Romance, escritos por um autor que imita o papel
do Autor". Este é, em outras palavras, o material de que o tão
falado Pós-Modernismo vem-se construindo.



c. Diz Barth que, embora essa afirmativa pareça a muitos um sintoma
de decadência e estagnação, na verdade o processo reside na origem
mesma do gênero romanesco, que nasce e se desenvolve mediante
estratégias de releituras e desleituras. O D. Quixote finge
reproduzir as novelas de cavalaria de Amadis de Gaula; Cervantes usa
a máscara de Cid Hamete Benengeli, personagem imaginário; o fidalgo
Alonso Quijano finge ser o cavaleiro andante D.Quixote. "A história,
enfim, se repete como farsa, ou seja, adquire a forma ou o modo da
farsa, o que não significa que a história seja falsa". Um dos
personagens de Barth costuma afirmar que "a arte é um artifício tão
natural quanto a Natureza; a verdade, na ficção, é que o fato é uma
fantasia; a história é um modelo do mundo". Por isso a imitação de
outros textos é algo sério e apaixonante, apesar de sua aparência de
falsidade. A história que imita outras histórias (e não diretamente
o mundo "real", ou a vida) não faz nada de muito diferente, pois as
histórias elas mesmas fazem parte desse "mundo real" e desta vida,
são elementos constitutivos dela: "De fato, tais obras não estão
mais afastadas da "vida" do que os romances epistolares de
Richardson e Goethe: ambos imitam documentos "reais", e o objeto de
ambos, em última instância, é a vida, não os documentos. Um romance
é um elemento do mundo real tanto quanto uma carta, e mesmo as
cartas de Werther, afinal, eram fictícias".



O tema da história dentro da história ad infinitum é
outra das imagens de Borges que Barth considera significativa para
ilustrar o que ele entende como Literatura do Esgotamento. A
História da Literatura seria semelhante à 602 história das Mil e uma
Noites, relatada por Borges, em que, devido a um erro do copista,
Sherazade é obrigada a recomeçar sua narrativa do princípio,
condenando toda a história das Mil e uma Noites a um eterno retorno
a partir da 602 história. Não haveria nunca uma 603 história, mas
Sherazade, como contadora de histórias, nunca morreria nas mãos do
sultão. O problema de Sherazade, que é o problema de todo o escritor
(ou publica ou morre), estaria resolvido; mas o criador de Sherazade
e das Mil e um Noites se veria tolhido para sempre e condenado à
incômoda sensação de uma eterna repetição de si mesmo.(2)



Segundo Barth, o interessante em Borges é o
seu "barroquismo" intelectual, entendendo o Barroco "como o estilo
que deliberadamente esgota ou tenta esgotar seus limites e
possibilidades através da caricatura de si mesmo". Embora os
escritos de Borges não sejam barrocos em sua forma, eles sugerem a
idéia de que a história intelectual e literária tem sido barroca, e
que já teria esgotado todas as possibilidades de sua narratividade.
Suas ficções não são notas de rodapé a textos imaginários (como se
propõem), mas são efetivamente pós-escritos ao corpo real da
literatura.



Por isso a imagem do labirinto, muito barroca e muito
usada por Borges, parece a John Barth tão significativa e
representativa da literatura do esgotamento: o labirinto é um lugar
fechado, acabado, onde teoricamente todas as possibilidades de
escolha (todas as direções a serem tomadas) já foram previstas e
precisam ser exauridas por aquele que aspira a alcançar o centro, o
coração do enigma, onde aguarda o Minotauro com suas duas
possibilidades finais: a derrota e a morte ou a vitória e a
liberdade.O herói pós-moderno, ao contrário de Teseu, não dispõe de
um fio de Ariadne para orientar a sua saída; ele está efetivamente
perdido, e o seu heroísmo não consiste em arriscar-se novamente
pelos velhos e esgotados caminhos, empreender os mesmos passos de
seus antecessores (da mesma maneira que Borges não precisou escrever
a enciclopédia de Tlön, e Menard não precisou escrever o Dom
Quixote). Ele precisa apenas estar consciente da existência e das
possibilidades do labirinto, aceitá-las e, com a ajuda de talentos
muito especiais, tão extraordinários quanto o dom dos santos e dos
heróis (dificilmente encontráveis em publicações como a Escola de
Literatura por Correspondência), avançar diligentemente no labirinto
a fim de realizar o seu trabalho.



Observações



(1) O que Barth interpretou como uma poética da produção literária,
da reutilização do material literário "esgotado" para novas
combinações "originais" - ou seja, uma estética da reciclagem
criativa - na verdade foi o ponto da discórdia entre os leitores de
seu ensaio, inclusive o próprio Borges. Pois a poética de Borges não
é da produção, mas da recepção, da leitura, e aí reside sua
concepção diametralmente oposta a de Barth. A literatura, para
Borges, é inesgotável, será sempre inesgotável, porque não é um
produto dos autores, mas dos leitores, e como estes nunca podem ler
o que está escrito no texto, mas o que está inscrito em suas mentes
(pela passagem do tempo, pela formação histórica e cultural), não há
como falar em "literatura do esgotamento", nem em artistas
especiais, habilitados a produzirem efeitos estéticos de primeira
ordem, utilizando a sucata da história literária para se promoverem.
Embora não pareça, Barth ainda é muito moderno em sua concepção da
tradição, pois insiste em diferenciar o verdadeiro artista do
mero "civilian", e expressa uma idéia muito elliotiana sobre o
assunto. Para T.S.Elliot, em Tradition and Individual Talent, o
artista verdadeiramente talentoso seria não o mais inteligente ou
inspirado, mas aquele mais aberto a uma certa operação
de "catálise", onde toda a tradição literária se fundiria à sua
própria época numa nova obra; "nova" pela combinação mais engenhosa
dos elementos antigos e atuais, e não por um eventual ineditismo
absoluto. A tradição literária se abriria, assim, para incorporar
este produto mais recente, cuja introdução na ordem antiga, por sua
vez, alteraria todo o contexto do passado. A influência, na história
literária, operaria nos dois sentidos. Essa teoria permite que se
trabalhe o conceito do "esgotamento" das formas, como o quer Barth;
porém a idéia de Borges, tal como é expressa em Pierre Menard, na
Biblioteca de Babel, e mais especificamente, em Kafka e seus
Precursores, não permite senão trabalhar com a idéia da
inesgotabilidade da arte.

Em Pierre Menard, Borges não está preocupado em
mostrar "como é possível ser original numa época em que tudo já foi
dito", mas em mostrar como nada do que já foi dito jamais poderá ser
lido da mesma maneira como foi dito um dia, ou seja, todo texto lido
será sempre, absoluta, necessária e irrevogavelmente original. Não
porque rearruma de outra maneira a tradição, mas porque a inventa
continuamente, porque não pode senão inventá-la sem cessar, já que o
acesso ao passado nos é terrivelmente interdito, e tudo o que
julgamos saber sobre a tradição são apenas nossas próprias ilusões,
temporalmente localizadas, sobre ela. Menard não é original por se
atribuir a autoria do Quixote; ele é original porque a sua leitura
do Quixote é a única de que pode dispor. Nunca haverá, para ele,
outro Quixote senão o de Menard. Menard nunca poderá saber o que
Cervantes realmente escreveu; ele só poderá saber o que Menard lê. A
originalidade é, para Borges, uma espécie de prisão no tempo; uma
limitação humana; uma condenação. A originalidade é que é o limite;
o limite do sujeito em si mesmo, a inacessibilidade ao Outro, o
irreversível solipsismo.

Na Biblioteca de Babel ele reforça essa idéia, ao
imaginar uma biblioteca infinita, ou seja, um agrupamento de
infinitas possibilidades de combinações entre um número finito e
limitado de elementos: os vinte e cinco símbolos ortográficos. Para
Barth, a biblioteca infinita é uma das imagens de Borges mais
pertinentes para ilustrar a sua literatura da exaustão: a idéia de
um lugar que contém tudo o que foi escrito e que se escreverá, e
todas as possíveis refutações, contestações; a idéia atual do
futuro, a idéia de todo futuro possível, todas as idéias, ad
infinitum. Quando Borges diz que a Biblioteca é ilimitada e
periódica, ou seja, que "se um eterno viajante a atravessasse em
qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos
volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma
ordem: a Ordem)", ele fala da idéia com que trabalha Barth para
elaborar o conceito da literatura do esgotamento; a idéia do fim, do
limite, de uma tradição que se esgota de tempos em tempos e precisa
ser renovada, mas onde cada "renovação" é apenas a reedição de uma
realização anterior.

A Biblioteca, para o escritor americano, parece ser um
exemplo da fatalidade a que está submetido o escritor contemporâneo,
e também o seu desafio, que ele considera um paradoxo: "transformar
as limitações impostas pelo nosso tempo no material e nos meios do
seu trabalho, para transcender aquilo que parecia uma interdição ou
uma refutação à possibilidade de criar; um desafio comparável ao do
místico, que precisa transcender a finitude para ser capaz de viver,
física e espiritualmente, no mundo finito".

Borges, no entanto, diz que "a certeza de que tudo está
escrito nos anula ou nos fantasmagoriza. (...) Talvez a velhice e o
medo enganem-me, mas suspeito que a espécie humana - a única - está
por extinguir-se e que a Biblioteca permanecerá: iluminada,
solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes
preciosos, inútil , incorruptível, secreta". (p.69). Como se vê, a
preocupação de Borges é sempre centrada na questão da leitura e da
interpretação impossíveis, que garantem a infinitude e eternidade
das escrituras para além da própria humanidade que as produziu. Já a
preocupação de John Barth reside na busca de uma nova forma de
produzir o novo, numa época que se sente e se percebe dominadora dos
sentidos últimos das coisas, vivendo o fim da história, como se já
houvesse decifrado e compreendido tudo o que havia para decifrar e
compreender, como se dominasse inteiramente toda a Biblioteca. Para
Barth, a Biblioteca foi exaurida porque todos os seus segredos são
hoje excessivamente conhecidos. Para Borges, a Biblioteca é
inesgotável porque nenhum de seus segredos foi, ou jamais poderá
ser, desvendado.

Trata-se de um problema de irreversibilidade temporal,
que em Kafka e seu precursores ele volta a insistir, afirmando
que "cada escritor cria os seus precursores", e não o contrário. Com
o objetivo inicial de pesquisar as possíveis influências da obra de
Kafka através do exame de textos de diversas literaturas e épocas,
nos quais julgava reconhecer "a voz e os hábitos" daquele autor,
Borges chega a uma inesperada conclusão:

"Se não me equivoco, as heterogêneas peças que enumerei
parecem-se com Kafka; se não me equivoco, não todas parecem-se entre
si. Este último fato é o mais significativo. Em cada um destes
textos está a idiossincrasia de Kafka, em maior ou menor grau, mas
se Kafka não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer: não
existiria. O fato é que cada escritor cria os seus precursores. Seu
trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o
futuro. Nesta correlação nada importa a identidade ou pluralidade
dos homens".

A tradição para Borges não se constrói, como para
Elliot, num movimento recíproco ou diálogo entre o passado e o
presente com vistas ao futuro; ela se elabora sempre e unicamente no
presente. Na contingência da inexistência do passado e do futuro,
ela é continuamente inventada: por isso é que Borges nunca poderia
ter "influenciado" John Barth; John Barth é que, como ele mesmo
diz, "inventou" Borges. Pois, na concepção de Borges, o que vem
depois é que é o primeiro.



(2) Note-se, contudo, que Borges menciona ter o sultão interrompido
a repetição de Sherazade, o que parece significar ter ele
considerado a possibilidade do eterno retorno, para depois abandoná-
la. Pois, no ideário de Borges, jamais haveria repetição. Ainda que
Sherazade voltasse infinitamente ao princípio e as histórias fossem
sempre reprisadas, elas nunca seriam as mesmas, porque as
circunstâncias, a audiência, Sherazade e o sultão já não seriam os
mesmos; e as histórias, para Borges, não estão nos textos, estão nos
leitores que as constroem. Como sempre, esta é a divergência que se
percebe entre a idéia do "esgotamento" proposta por Barth em defesa
da metaficção, entendida como a alternativa criativa característica
dos tempos pós-modernos; e a idéia da inesgotabilidade proposta por
Borges, com a qual elabora a sua poética da leitura. As 1001 Noites
o fascinam porque o próprio título lhe parece um sinônimo do
infinito: "Dizer mil noites é dizer infinitas noites, as muitas
noites, as noites inumeráveis. Dizer "mil e uma" é agregar uma ao
infinito. É como o epigrama de Heine a uma mulher: "te amarei
eternamente e ainda depois". (...) "Este título contém algo ainda
mais importante: a idéia de um livro infinito, que virtualmente ele
é. Os árabes dizem que ninguém pode ler As 1001 Noites até o fim,
não por razões de tédio, mas porque se sente que o livro é
infinito". (Siete Noches, p.67).


3 - A Literatura da Plenitude - idéias gerais


O artigo The Literature of the Replenishment, foi
escrito por Barth em 1980, logo após sua participação num congresso
promovido por uma associação alemã de professores de estudos
americanos, que se reuniu em Tubinga, nos finais dos anos 70, para
estudar "Os Estados Unidos nos anos 70". A sessão de literatura
desse congresso tinha como sub-tema "A ficção americana pós-
moderna", e três escritores dos EUA foram convidados como hóspedes
de honra, "verdadeiros espécimes vivos do pós-modernismo", segundo
Barth: William Gass, John Hawkes e o próprio Barth.



Várias coisas, diz Barth, o surpreenderam nesse
congresso. Primeiramente, o fato de os congressistas falarem do Pós-
modernismo literário como de um fenômeno histórico-cultural
indiscutível (como a Contra-reforma, ou a Grande Depressão de 30), e
as discussões se voltarem já para o estabelecimento dos limites
históricos do "período" em questão, bem como para a seleção do cânon
dos autores pós-modernos (quem fazia parte dos eleitos e quem estava
excluído do grupo).



Isso surpreendeu o escritor porque não lhe parecia
haver, entre os debatedores, nenhum consenso sequer sobre o que
seria o Modernismo, quanto mais sobre o Pós-modernismo. Em meio ao
caos, claro, sua palestra não foi levada em consideração porque,
segundo ele, os críticos aplicaram a ele e aos seus colegas o
princípio de que "os pássaros têm pouco a dizer sobre ornitologia".
Assim, ao voltar à sua Universidade, Barth publicou na revista The
Atlantic um ensaio que revia aquele primeiro, publicado em 67, e
resumia suas idéias mais atualizadas sobre a ficção pós-modernista.
A principal mudança já é sugerida pelo próprio título: em lugar da
Literatura do Esgotamento o autor propõe, então, a Literatura da
Plenitude.



Neste artigo, Barth começa dizendo que a principal
tarefa a que se dedicam os críticos da Pós-Modernidade é discutir
interminavelmente a respeito do que o Pós-Moderno é ou deveria ser,
e sobre quem deveria ser admitido ou "condenado" ao clube dos pós-
modernistas. A questão do cânon pós-moderno, como todas as demais
questões nessa área, dividem os críticos. Há quem selecione, além
dos três americanos já citados, Donald Barthelme, Robert Coover,
Stanley Elkin, Thomas Pynchon, e Kurt Vonnegut Jr. Há quem inclua
Saul Bellow e Norman Mailer; e quem veja como fundadores do
movimento escritores como Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e
Vladimir Nabokov. Alguns críticos consideram os novos romancistas
franceses como pós-modernos, outros acrescentam o inglês John Fowles
à lista, e o argentino Julio Cortázar. Há quem inclua cineastas como
Antonioni, Fellini e Godard; e Barth diz que não pretende participar
de nenhum grupo que desconsidere o colombiano García Marquez e o
italiano Italo Calvino.



As primeiras figuras que teriam antecipado o "movimento"
seriam, porém, os grandes modernistas da primeira metade do séc.XX:
Elliot, Faulkner, Gide, Joyce, Kafka, Thomas Mann, Musil, Pound,
Proust, Unamuno, Virginia Woolf; além de seus predecessores do
séc.XIX: Alfred Jarry, Flaubert, Baudelaire, Mallarmé e Hoffman; não
se podendo esquecer de antecessores mais antigos, como o Tristram
Shandy de Sterne (1767) e o Dom Quixote de Cervantes (1615).



Outros estudiosos são menos generosos, como o prof.
Jerome Klinkowitz, de Iowa, que inclui Barthelme e Vonnegut como pós-
modernistas exemplares dos anos 70 na América, e rejeitam Pynchon e
Barth nas sombras pré-pós-modernas dos anos 60. As variações são
tantas quantos são os críticos, e mesmo a obra de um único autor,
considerada individualmente, causa problema, desentendendo-se todos
sobre os aspectos considerados modernos ou pós-modernos neste ou
naquele livro em particular. John Barth diz não se surpreender com
isso, pois sua própria obra já teria sido classificada, ao longo do
tempo, como "existencialista" (de um existencialismo provinciano
americano); de "humor negro", "fabulista" ou "fantástica", e mais
recentemente, "pós-moderna". Os críticos estão sempre ora elogiando-
o, ora acusando-o de ser uma coisa ou outra.



Para Barth, os problemas se agravam quando se abandonam
as simples listagens e se passa a considerar, individualmente, a
obra dos autores mencionados, pois fica cada vez mais imprecisa a
idéia da existência de traços comuns entre eles, capazes de
justificar o Pós-Modernismo como um "movimento" ou uma categoria
específica. Para exemplificar este fato, ele relaciona as idéias
controversas de vários teóricos, como Hugh Kenner, John Gardner,
Irving Howe e George P. Elliott, por um lado, que não diferenciam
absolutamente a ficção moderna da pós-moderna; Gerald Graff, Robert
Alter, Ihab Hassan, que, notadamente simpatizantes do programa
modernista, identificam o pós-modernismo ora como um desenvolvimento
ou continuação do projeto modernista, ora como uma reação a ele. O
próprio termo "Pós-Modernismo" sugere essas duas possibilidades, mas
as discussões em torno do assunto acabam se voltando para uma
redefinição da estética predominante na literatura e nas demais
formas artísticas ocidentais durante a primeira metade do séc.XX: o
Modernismo. De acordo com Barth, portanto, o Pós-Modernismo não tem
definição, o que parece ainda mais estimulante às especulações dos
críticos.



Barth apresenta, então, as idéias de Graff sobre o
Modernismo e o Pós-Modernismo, para compará-las às de Robert Alter.



Para Gerald Graff, o Modernismo se enraiza na crítica da
ordem social burguesa do séc. XIX e de sua visão de mundo. A
estratégia artística do movimento consiste em inverter os princípios
do realismo, com a ajuda de técnicas tais como a substituição do
espaço realista por um espaço mítico, a quebra da continuidade e da
lineariedade do enredo, a frustração da unidade e da coerência da
intriga e dos personagens romanescos, a quebra da lógica do
desenvolvimento narrativo, o recurso às justaposições irônicas e
ambíguas que questionam a significação moral e filosófica
tradicionalmente atribuída à literatura, a prática de uma auto-
ironia epistemológica que visa a ridicularizar as pretensões
inocentes da racionalidade burguesa, a oposição entre a vida
interior e o discurso racional público e objetivo; enfim, uma
tendência a mostrar a permanente distorção subjetiva dos fatos, a
fim de sublinhar a fragilidade dos limites do mundo
social "objetivo" da burguesia do séc. XIX.



Além disso, a modernidade se caracteriza pela
insistência dos modernistas, influenciados por seus predecessores
românticos, em representar o papel do artista singular, excêntrico,
alienado da sociedade. Temos como exemplos os artistas-heróis de
Joyce, exilado voluntário em seu sacerdócio; o artista impostor ou
charlatão de Thomas Mann; o artista-inseto de Kafka. Graff menciona
ainda a tendência dos modernistas de privilegiar os problemas de
linguagem e as questões técnicas em detrimento do simples conteúdo.



Para Robert Alter e Ihab Hassan, entre outros, a ficção
pós-moderna apenas reativaria, num espírito de subversão cultural e
anarquia, a criatividade reflexiva e narcisista do Modernismo. Os
escritores pós-modernistas, com resultados variados, se preocupariam
cada vez mais com as próprias obras e seus processos internos, e
cada vez menos com a realidade objetiva e a vida no mundo. Gerald
Graff concorda, afirmando que a ficção pós-moderna só faz levar
adiante o programa anti-racionalista, anti-realista e anti-burguês
do modernismo, porém numa circunstância histórica diferente, ou
seja, sem um adversário consistente - já que o público burguês pode
selecionar os aspectos mais sedutores da proposta modernista,
transformando seus princípios subversivos em simulacros para serem
utilizados pelos meios de comunicação de massa - e na ausência de um
vínculo sólido com o realismo cotidiano contra o qual o modernismo
se insurgia. Para Barth, a crítica de Grff não se justifica diante
da obra de pós-modernistas como Barthelme, Saul Bellow e Stanley
Elkin, que extraem sua vitalidade exatamente, e paradoxalmente, da
sociedade Kitsch que Graff critica.



Barth considera, portanto, que as categorias críticas,
conquanto sejam úteis à discussão teórica pois permitem uma
organização quase "taquigráfica" de um fenômeno, permitindo que se
fale e que se reflita sobre ele; na verdade não podem ser tomadas ao
pé da letra, pois as obras individuais extrapolam largamente os
limites necessariamente impostos pelas classificações. A obra
particular deve estar sempre acima de seu contexto e de todas as
categorias. Apesar dessas dificuldades, Barth se propõe a examinar
mais atentamente essa tendência geral denominada Pós-modernismo, e o
faz dizendo que: "Na minha opinião, se não existir outras
possibilidades menos limitadas que as propostas por Graff, Alter e
Hassan, a escritura pós-moderna só pode mesmo ser entendida como um
recurso exangue e decadente, digno de um interesse menor". Para
Barth, é possível compreender a proposta do pós-modernismo de uma
maneira diferente:

. nem como um simples desenvolvimento do projeto
modernista, como pensam os críticos por ele considerados;

. nem como uma simples ampliação de certos aspectos do
modernismo;

. nem como uma subversão total ou um repúdio total, seja
do modernismo, seja do pré-modernismo (o realismo burguês
tradicional).



O que a proposta pós-moderna na literatura não aceita é,
primeiramente, a idéia sublime da criação literária, consequência da
visão romântica do artista problemático e marginal da modernidade; e
em segundo lugar, o espírito cultural um tanto aristocrático,
partilhado pelos modernistas. Tentando fugir aos ditames do realismo
burguês, eles acabaram realizando obras marcadamente herméticas e
inacessíveis, que para serem lidas precisavam de intérpretes,
exegetas, mediadores, o que diminuía em grande escala o prazer da
leitura e tornava tais obras acessíveis apenas a um pequeno grupo de
eleitos.(Para Barth é justificável que precisemos de um guia para
lermos Homero, já que o mundo evocado em seu texto está longe do
nosso; mas que precisemos de um guia para decifrarmos uma obra
contemporânea, como ocorre nas obras do chamado Alto Modernismo,
isso não se justifica). Barth diz que, enquanto Brecht julgava sua
obrigação se fazer compreendido até mesmo por um asno (e por isso
guardava uma pequena imagem de um asno em sua mesa, para lembrá-lo
disso), os alto-modernistas comportavam-se como se não desejassem
ser compreendidos nem mesmo pelos que se especializassem em
compreendê-los, e assim, no lugar do burro, era como se guardassem à
sua mesa um boneco de um professor de literatura, para lembrá-los do
seu hermetismo necessário.



Barth diz que não pretende com isso ofender ou
desmerecer o valor das obras modernistas e de seus intérpretes, mas
apenas mostrar que aquilo que motivou o seu surgimento - a rigidez
de princípios e outras limitações do séc. XIX, à luz dos avanços
científicos e tecnológicos do final do século - já não existem
atualmente na maioria dos países ocidentais. A estética modernista,
segundo ele, é inegavelmente uma estética característica da primeira
metade do século XX; por isso a reação atual contra essa estética é
compreensível e deve ser encarada com simpatia, uma vez que os
valores modernistas já não se justificam, e "ninguém precisa mais de
outros Finnegans Wakes acompanhados de suas equipes de professores
dedicados a explicá-los".

Na opinião do escritor, tanto não se pode negar ou
ignorar a primeira metade do século XX (como muitos têm feito) e
escrever com os princípios do século XIX; como também não se pode
repudiar os grandes pré-modernistas do século XIX:



"Se os modernistas, erguendo a tocha dos românticos, nos
ensinaram que linearidade, racionalidade, consciência, causa e
efeito, ilusionismo ingênuo, linguagem transparente, anedota
inocente e convenções morais de classe média não são toda a
história, então, segundo a perspectiva das últimas décadas do nosso
século, poderíamos admitir que o contrário de todas essas coisas
também não são toda a história. Disjunção, simultaneidade,
irracionalidade, anti-ilusionismo, anti-reflexão, o -meio-como-
mensagem, olimpianismo político, a idéia do artista como herói e um
pluralismo moral que beira a entropia tampouco são toda a história".



Para Barth, o escritor pós-moderno ideal não imita e
não repudia nem seus genitores do século XX nem seus avós do século
XIX. Ele digeriu o modernismo, mas não o carrega nos ombros como um
peso. Talvez não consiga atingir ou comover os fãs de James Michener
e Irving Wallace, sem falar dos analfabetos lobotomizados pelos mass
media, mas às vezes poderia atingir um público mais amplo do que
aquele círculo que Thomas Mann chamava de primeiros cristãos, os
devotos da Arte. Já o romance pós-moderno ideal deveria superar as
diatribes entre realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo,
literatura pura e engajada, narrativa de elite e narrativa de
massa: "A analogia que prefiro é com o bom jazz ou com a música
clássica: ouvindo várias vezes e analisando a partitura, descobrimos
muitas coisas que não foram notadas na primeira vez, mas essa
primeira vez deve ser capaz de prender-nos a ponto de desejar ouvir
outras vezes, e isso vale tanto para os especialistas como para os
não-especialistas.


Temendo que essa síntese pós-modernista pareça muito
sentimental e dificilmente realizável, Barth propõe como exemplos
bem diferentes, mas igualmente em sintonia com sua proposta, as
obras Cosmicômicas, de Italo Calvino (1965), e Cem Anos de Solidão,
de Gabriel Garcia Marquez (1968), cuja leitura ele aconselha a
todos, porque não apenas "são deliciosas, mas também ricas em
proteínas". São verdadeiras obras de arte, admiráveis do ponto de
vista artístico, mas também portadoras de uma grande sabedoria
humana, inspirando uma viva simpatia. "A questão de saber se o meu
programa do pós-modernismo é realizável ou não desaparece, assim,
alegremente pela janela, como um dos personagens de Garcia Marquez
num tapete mágico".



Barth retoma então seu artigo anterior, a Literatura do
Esgotamento, e diz que, no fundo, pretendeu apenas mostrar que os
gêneros artísticos nascem e se desenvolvem na história da
humanidade, estando sujeitos ao esgotamento, pelo menos no espírito
de um certo número de artistas, em certos momentos e em
deteerminados lugares. Ou seja, que as convenções artísticas podem
ser abandonadas, subvertidas, ultrapassadas ou mesmo retomadas
contra elas mesmas, para que se engendrem novas formas cheias de
vida.



Comenta que não esperava tanta controvérsia, e que teria
se surpreendido com a interpretação que se generalizou sobre seu
ensaio: a de que ele teria afirmado que a literatura, ou pelo menos
o romance, estaria acabado; que tudo nesta área já teria sido
feito, e que não restava outra alternativa aos escritores
contemporâneos, diante do esgotamento de seu meio de expressão, que
dedicar-se ao pastiche e à paródia de nossos grandes predecessores -
ouseja, exatamente aquilo que alguns críticos rotulam como o pós-
modernismo.



Diz ainda concordar com Borges, que a literatura não
conhecerá jamais o esgotamento, mas não porque um texto literário em
particular seja inesgotável; mas porque sua significação reside nas
trocas efetuadas com os leitores individuais através do tempo, do
espaço e da linguagem.



Barth esclarece, portanto, que seu ensaio anterior
tratava, na realidade, de um esgotamento efetivo, não da linguagem
em si nem da literatura, mas da estética do alto modernismo: um
projeto admirável, que não pode ser ignorado, mas que já estaria
superado em sua essência, e que poderia ser identificado como o que
Hugh Kenner denominou de "Era Pound". "Em 1967 não se entendia o
termo pós-modernismo no sentido que a crítica atualmente lhe
confere, no entanto, muitos artistas já haviam se lançado na
aventura, não da invenção de um substituto qualquer do modernismo,
mas de uma criação verdadeira que lhe sucederia, que a ele se
equivaleria e a qual ainda chamamos, para o melhor ou para o pior,
de ficção posmoderna." Por isso, John Barth afirma esperar que o
movimento que, em 1967, ele denominou de "literatura do
esgotamento", possa um dia ser também considerado uma "literatura da
plenitude".

* Doutora em Letras, professora da UFPE.

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