segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Gilberto Freyre: uma biografia cultural

Saiu no JB - Idéias desse último sábado:
Entre a vaidade e o talento
Alvaro Costa e Silva


Lê-se no recém-lançado Gilberto Freyre: uma biografia cultural que o autor de Casa grande & senzala teve no ex-sacerdote, diplomata e polemista Antonio Torres um importante interlocutor intelectual durante a temporada de ambos na Londres do início da década de 20 do século passado. O escritor, num jantar na casa do cônsul-geral brasileiro na cidade, chegou a fazer a caricatura de Torres, na qual capta o ríctus amargo que era uma constante no semblante do novo amigo.

Não obstante a camaradagem que logo se estabeleceu entre os dois, Freyre inquietou-se ao saber que Torres queria visitá-lo em Oxford. Previu a reação negativa de mrs. Coxhill, uma senhora anglicana, administradora da casa onde morava. O motivo era simples: a cor da pele e a feiúra física do diplomata. "Não sei como resolver o problema de receber num meio como Oxford um brasileiro como Torres que, além de mulato, é feio, feíssimo, com uma garofinha horrível", escreveu Freyre em seu diário. E concebeu o estratagema de apresentá-lo como um homem de suprema inteligência: "A genius, mrs. Coxhill, but very dark and terrible ugly" ("um gênio, senhora Coxhill, mas muito sombrio e terrivelmente feio").

Este é Gilberto Freyre. Conhecedores do seu personagem, os autores da biografia, Enrique Rodriguez Larreta e Guillermo Giucci, escolhem uma citação do poeta Rainer Maria Rilke para abrir a introdução ao livro e, de certa forma, limpar a barra do grande escritor nascido no Recife: "Afinal, fama é a soma de todos os mal-entendidos que se reúnem em torno de um homem".

A verdade é que, desde a publicação do clássico Casa grande & senzala no fim de 1933 até o presente, Freyre não deixou de ser celebrado (com justiça) ou duramente criticado (também com justiça, sobretudo por suas posições políticas na década de 60 e por seu conhecido excesso de vaidade).

A reação a seus principais textos ainda oscila entre a admiração diante de tão enorme talento e "o escândalo pelo tratamento audaz dos temas sexual e racial e a suspeita de apologia senhorial da escravidão", como reconhecem os próprios autores da biografia que, de resto, é um livro que não opina. Só mostra.

Os critérios principais da pesquisa são a reconstrução dos contextos da época (de 1900 a 1936, ano em que é publicado Sobrados e mucambos) e a análise em contraponto de autores significativos do pensamento brasileiro (Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior).

Os tempos de estudos nos EUA, quando Freyre tomou contato com a antropologia cultural de Franz Boas, são minuciosamente relatados (não se pode esquecer mais este traço idiossincrático do sociólogo: a maioria dos intelectuais brasileiros e hispano-americanos de então só tinha os olhos voltados para Paris).

O discípulo de Mencken

A formação nos Estados Unidos - primeiro na Universidade de Baylor, no Texas, e depois na Universidade de Columbia - permitiu a Gilberto Freyre travar contato no início dos anos 30 com gente que, no Brasil, só se ouviria falar muito tempo mais tarde. Não apenas a obra de escritores do chamado renascimento literário americano (Hawtorne, Melville, Thoreau) mas intelectuais como H. L. Mencken e George Jean Nathan, editores das revistas Smart Set e American Mercury. Mencken - que Paulo Francis transformaria em modelo décadas depois - foi quem apresentou a Freyre o potencial de Nietzsche como crítico cultural. A biografia de Larreta e Giucci recupera episódios esquecidos (mas nem por isso irrelevantes) exatamente da atividade de Gilberto Freyre como crítico cultural e literário.

Em janeiro de 1925, Jorge Luis Borges publicou um ensaio sobre o Ulisses de Joyce no seu livro Inquisiciones. "Sou o primeiro aventureiro hispânico que aportou ao livro de Joyce", acreditava Borges. O argentino teria ficado surpreso se soubesse da existência de um texto sobre Ulisses publicado um ano antes em português, num jornal regional (o Diário de Pernambuco), escrito por um jovem quase da mesma idade dele. A leitura, como não poderia deixar de ser, é diferente da de Borges. O brasileiro nota a relação de alguns temas do romance com obras anteriores, como Retrato do artista quando jovem, e faz observações sobre a relação de Ulisses com o despertar do amor físico e a crise religiosa. Mas a grande sacada de Freyre aparece logo no título do artigo: "James Joyce: criador de um novo ritmo para o romance".

Gilberto Freyre: uma biografia cultural acompanha em profusão de detalhes o período de gestação de três livros: Casa grande & senzala, a sua continuação com Sobrados e mucambos, de 1936, e o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (cuja quinta edição atualizada está comentada na página 3 deste Idéias por Edson Nery da Fonseca).

Como a narrativa se interrompe na metade dos anos 30 - a previsão é de que saiam mais dois volumes biográficos - os autores, comodamente, livraram-se, ao menos por enquanto, de reportar a amizade de Freyre com os ditadores Getúlio Vargas e Salazar, sua campanha para que não se empossasse Juscelino Kubitschek, sua defesa do AI-5 e das eleições indiretas.

Mas sobra bastante espaço para as relações de Gilberto Freyre com um de seus temas prediletos - o sexo.

Recordam-se os tempos de menino de engenho ao lado do irmão, quando "os moleques da bagaceira recorriam a gestos: os primeiros gestos safados em que fomos iniciados. E de palavras e gestos, dois deles parece terem combinado entre si que passariam a práticas, que nos iniciariam num jogo de quatro".

Em Nova York, o jovem pernambucano de 21 anos espantou-se com o clima para lá de liberado nas festas do Greenwich Village. Era ali que as americanas "libertavam seus demônios lúbricos". Freyre excitou-se com a naturalidade com que elas faziam sexo oral e teorizou: "A tendência à sucção é uma instituição anglo-saxã".

Em sentido bem diverso, também estranhou o telefone. Em sua opinião, "verdadeira doença do século, que estimula a decadência dos costumes e outros vícios secundários, como a falta de cortesia e o costume de falar mal dos outros". Bingo!

O que Gilberto Freyre diria, hoje, dos celulares? (A.C.S.)


[ 03/11/2007 ]

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