terça-feira, 13 de novembro de 2007

Italo Moriconi

A partir da nostalgia em Sarlo: aren(g)as, vocabulários, estratégias
Italo Moriconi

Em Cenas da Vida Pós-Moderna, Beatriz Sarlo, num esforço declarado de resgate, interroga-se sobre o lugar da arte na cultura globalizada contemporânea. De que valor geral, coletivo, público, pode ainda revestir-se a atividade artística nesta nossa civilização que a relega às casamatas corporativas da disciplinaridade acadêmica ou institucional? Civilização que, nas palavras de Sarlo, "tranca artistas em guetos esnobes ou faixas de mercado especializadas". Qual valor epistemológico, isto é, qual valor de revelação transcendente e de produção de conhecimento novo ou diferencial pode ainda ter a arte quando o conceito e as práticas da cultura universal foram tomados pela fantasmática da mídia, pelo ritmo da diversão incessante, pela lógica da lucratividade narcísica? Em suma, tomados pela hegemonia daquilo que Theodor Adorno e Max Horkheimer um dia chamaram de "indústria cultural" na pia de batismo da teoria crítica hoje por nós consumida como "pensamento frankfurtiano".

A esse pensamento Sarlo deve boa parte não tanto dos argumentos, mas das emoções e vontades que movimentam os dilemas e angústias elaborados em seu livro. Dele me interessam aqui os dois capítulos finais - o quarto, intitulado "O lugar da arte" e o quinto, "Intelectuais". Não pretendo comentá-los extensivamente, apenas pontuá-los, em busca de atritos e fricções.

São os dois capítulos por assim dizer nostálgicos de Cenas da Vida Pós-Moderna. Na arquitetura geral do volume, introduzem um movimento pendular que os torna diferentes dos capítulos anteriores, os quais lidam com manifestações da tecnocultura da diversão -- a videocultura, como a chama Sarlo. A oscilação pendular se dá a partir de uma ambigüidade entre valores de afirmação da pós-modernidade e valores de resistência ou nostalgia do moderno. Um tipo de ambigüidade na verdade constitutivo do próprio ponto de vista pós-moderno, que trabalha ao mesmo tempo no sentido de estender e de desconstruir as razões nucleadoras da modernidade. Como afirmava Lyotard logo nas primeiras páginas de seu relatório-manifesto de 1979, com a noção de pós-moderno, era ainda a velha dialética que prestava seus serviços.

Nos primeiros capítulos do livro de Sarlo, uma respeitável capacidade analítica é posta a funcionar com base no uso de estratégias literárias de descrição e alegorização. Os problemas, todos muito novos, vão sendo conceitualmente fechados, resultando em algumas formulações que considero brilhantes, principalmente sobre o significado das culturas do consumo e da televisão tal como podem ser pensadas do ponto de vista do nosso canto sul no continente. Em contrapartida, nos dois capítulos finais, à riqueza e complexidade das questões levantadas corresponde uma estratégia oposta, voltada para não fechar nada conceitualmente. As questões são deixadas em aberto. O pensamento se faz debole para enfrentar a travessia do abismo na tênue corda bamba de uma vontade cujo objeto parece desvanecer-se.

Verificamos então que o esforço de recuperar um lugar autônomo -- e privilegiado -- para a arte em relação à cultura no sentido antropológico, valorativamente neutro, é um esforço discursivamente articulado. Articula-se desde logo à indagação sobre se ainda deve restar algum lugar e utilidade para o próprio saber humanístico. Mais que isso, articula-se a uma defesa -- um tanto titubeante -- da permanência da importância dos intelectuais no contexto político-pedagógico contemporâneo.

Enfatizemos: político-pedagógico, no lugar de simplesmente político-cultural. A necessidade mesma de uma pedagogia escolar, em contraste ou como complemento à hegemônica pedagogia da mídia, estaria sendo hoje posta em questão, a exigir uma mini-revolução discursiva, que a destruisse de vez ou a relegitimasse em novas bases. É nessa corda bamba difícil, entre escola e mercado, que Sarlo situa a questão da sobrevivência do intelectual geral, não especializado, não taylorizado, não anônimo, atuando como uma espécie de professor informal da opinião pública pela imprensa, mediante o corpo presente de sua assinatura pessoal e intransferível. Diga-se de passagem que esse sobrevivente pós-moderno, da maneira como é imaginado e interpelado por Sarlo, situa-se na linha de descendência do tradicional intelectual de esquerda latino-americano e francês, o qual, por sua vez, como se sabe, reatualizou o modelo do intelectual radical nascido no século XVIII, iluminista e enciclopédico. Agora, liberto da tarefa de liderar a rebelião das massas desfavorecidas contra o bom senso burguês da ciência econômica de origem anglo-saxônica, sua tarefa mais árdua tem sido a tentativa de responder à pergunta sobre que tipo de tarefa crítica esclarecedora pode ele ainda exercer antes de seu tão anunciado desaparecimento na roda dos tempos, tragado pela disseminação infinita das fontes do sentido nas redes da informação eletrônica e da diversão a cabo.

Em nome do que chama de "dever do saber", Sarlo, mesmo depois de Foucault, reconvoca à mesa intelectuais críticos, teoria crítica e crítica das artes. Esta última no sentido de algo judicativo, separado ou separável de uma postura meramente descritiva (científica) sobre cultura. Qualquer artefato cultural pode ser objeto de interpretação sócio-simbólica. Mas na perspectiva do antigo jogo de linguagem "arte", alguns objetos são mais objetos que outros, porque são dados como melhores ou como mais importantes. São mais influentes, diria o crítico dos anos 50. São mais citados, diria o dos anos 70. O que tornou certos objetos mais importantes, influentes, referidos -- eis aí uma interessante questão de história e de crítica de cânones, mas não é disso que nos ocupamos aqui. O que é "o melhor"? o que é "o pior"? por que é melhor? por que pior? -- essas são as questões que estão interessando Sarlo, e acredito que o esforço de legitimar distinções do tipo melhor/pior, mais/menos relevante, torna-se teoreticamente mais instigante quando pensado em relação à produção corrente do simbólico e não apenas àquilo que já foi consagrado pelos cânones disciplinares das tradições.

Como ensinar a discriminar o menos do mais? Se compreendi bem o sentido da expressão, tentando agora refraseá-la em meu próprio vocabulário, o "dever do saber" seria basicamente o dever de ensinar a hierarquizar e discriminar. Através do estabelecimento de uma discussão em torno de critérios de gosto, a crítica estética e a arte seriam por excelência campos de exercício de valores capazes de atravessar e sobrepor-se à fragmentação indiscriminada da oferta disseminada de sentidos. Tal disseminação estaria apontando para um caos do sentido, acarretando seu esvaziamento. Vazio de sentido, caos de sentido. Será isso um problema tão terrível? Para o intelectual crítico latino-americano, neofrankfurtiano e pós-esquerdista, é um problema sim. Vazio e/ou caos do sentido trariam o perigo da incapacidade de discernimento ético. O "dever do saber" é portanto colocar em discussão o próprio "dever" como tarefa universal, para além dos interesses particulares postos em circulação no mercado das identificações.

Mas há outra questão bem mais caliente que emerge no meio dessas articulações. Questão que aponta para uma verdadeira encruzilhada, até há pouco mal discutida nas áreas de cultura da universidade. O setor humanístico da universidade brasileira encontra-se hoje em dissídio com aquilo que talvez a sociedade esteja esperando dele em matéria de elaboração discursiva. E no coração do dissídio situam-se questões das mais temidas pela tradição da esquerda intelectual latino-americana.

Há diferentes formas de avaliar e descrever o caos do sentido na cultura globalizada. Para um liberal-conservador anglo-saxão como Harold Bloom, por exemplo, a democracia, da qual nem ele nem nós quer discordar, é que seria o fator primordial de caotização e esvaziamento do sentido. Para nossa Sarlo, o culpado é o mercado, a transformação de todo e qualquer objeto simbólico em bem de consumo, a redução de todo valor a mero valor de mercado. Será que há um elo entre os dois lados da questão? Será possível separar uma problemática qualquer (cultural, econômica, política) relativa ao mercado, de uma outra problemática, paralela, relativa à democracia? Ou noutros termos: investir contra o mercado não acabaria por significar, sempre, investir também contra a democracia? O que relativiza radicalmente os valores simbólicos? O mercado? A democracia? Ou ambos, naquela necessidade mútua entre eles postulada desde sempre pela tradição liberal?

Diante do caos, a arte, na formulação de Beatriz Sarlo, seria a prática por excelência da produção do sentido. Seria então uma força contraposta ao esvaziamento do sentido provocado pela hegemonia do mercado. Mas é claro que há também um certo sentido no mercado, a começar pelo próprio sentido-do-mercado, o tino, demonstrado por aquele que acerta nas vendas. Por outro lado, existem as estruturas prévias do sentido dadas pela tecnoindústria cultural, algumas instâncias das quais descritas e analisadas nos primeiros capítulos de Cenas da Vida Pós-Moderna. Na condição pós-moderna, os circuitos tecnoindustriais, tecnocomunicacionais, são mediadores universais da produção de subjetividades. Daí ser interessante o conceito pop-erudito de televisibilidade, criado por Sarlo. Ele dá seqüência acadêmica aos minutos de fama para todos, profetizados por Andy Warhol.

Mas a ordenação prévia do sentido pelo mercado é apenas aparente ou, para sermos mais exatos, extremamente parcial. Como bem relembra nossa ensaísta em diversos momentos de seu livro, o que o mercado faz é instrumentalizar ou ideologizar o sentido, disfarçando monopólios econômicos (que são também monopólios de poder) sob a falsa afirmação de uma abstrata equivalência geral de valores. Assim, se estou conseguindo refrasear Sarlo sem chegar ao ponto da traição absoluta, a arte produz sentido contra o esvaziamento do sentido pelo mercado ou contra o sentido falso que ele coloca no lugar daquele vazio. Creio que posso entender a partir daí o que Sarlo quer dizer quando, em outros pontos de seu texto, dá como definição do objeto de arte o fato dele trazer o que ela chama de intensidade formal, temática, moral. O objeto de arte seria aquele capaz de por si romper o fluxo indistinto e incessante das imagens compensatórias continuamente ofertadas pelos tecnocircuitos da diversão e da informação.

É em relação à dimensão fascista do mercado (isto é, sua dimensão monopólica, excludente e mentirosa) que adquire significado especial a articulação entre o resgate da autonomia da arte através da indagação sobre seu lugar específico e o elogio de Sarlo à função da escola como contrapeso à emergente cultura pedagógica midiática. A escola, nas palavras de Sarlo, constituiria um espaço vital de "redistribuição simbólica", capaz de compensar as exclusões operadas pelo mercado. Supõe-se que essa escola seria pública e laica, portanto estatal. Resumindo, teríamos na proposta de Sarlo os seguintes eixos para uma política pedagógica dada como capaz de ampliar os limites impostos pelo fascismo de mercado: (1) manutenção da função escolar como serviço público independente, paralelo tanto às redes privatizadas de informação e diversão quanto à exponencialmente crescente oferta de serviços educacionais no mercado e nos circuitos do terceiro setor; (2) recuperação da função dos intelectuais como avaliadores independentes da produção simbólica e (3) resgate da arte como território de exercício de uma atividade reflexiva, diferencial e diferenciadora em relação à disseminação dada como vazia dos produtos simbólicos midiatizados.

À guisa de problematização, lembre-se, porém, que as tarefas da redistribuição tendem a chocar-se com as da criação. No (des)equilíbio agonístico e ambíguo do pós-moderno, parece que ao Estado cabem as tarefas da redistribuição e ao mercado aquelas relacionadas com a criação. O mercado cria riqueza, concentrando-a. O Estado a redistribui. Assim, o mercado seria um espaço possibilitador de criação de recursos culturais ex-nihilo, seria uma força legitimadora, mesmo que apenas virtual, da hipótese de transgressão lucrativa. Eis aí uma dimensão não fascista e democrática do mercado, com a qual o Estado não pode competir. Todo e qualquer acontecimento no âmbito do Estado obedece a compromissos de grupos. Ao passo que o mercado possui uma dimensão micro, local, socialmente visceral, que depende inteiramente da iniciativa individual. Quanto mais democrático o Estado, possivelmente mais demagógicas, conservadoras e mafiosas tornar-se-ão suas políticas redistributivas. Isto porque quanto mais democrático o Estado, mais representativo ele será das estruturas sociais e ideológicas já estabelecidas. Não se trata aqui de defender uma posição do tipo Estado mínimo. Trata-se apenas de constatar que (1) na social-democracia pós-moderna, Estado e Mercado são forças igualmente necessárias, embora voltadas para funções distintas e mutuamente compensatórias, cada uma respondendo pelo que a outra não pode e (2) fascismo e democracia, conservação e mudança, não são monopólio de ninguém, são fatores atuantes em todas as arenas onde se processam os conflitos da vida cultural.

Indagar sobre o lugar específico da arte hoje, ensaiar definições intrínsecas do fenômeno artístico, significa situar-se até certo ponto contra a tendência dominante na esfera dos chamados "estudos culturais", que trabalham preferencialmente com uma definição extrínseca de arte. Entenda-se por extrínseca uma definição basicamente convencional ou institucional da arte, o tipo de definição pragmática que seria esperado da Sociologia ou da Antropologia: arte é aquilo que uma comunidade legitimada para tal define como sendo arte. Daí vai-se para a descrição das funções sócio-simbólicas que o terreno assim delimitado exerce. E depois, para a descrição das estruturas específicas, materiais e técnicas por um lado, intersubjetivas por outro, que constituem o funcionamento da instituição. Nesse tipo de abordagem, é sempre alguma modalidade de interação social que está sendo falada através do objeto de arte.

A disputa de espaço entre a pós-moderna área dos Estudos Culturais e as áreas mais tradicionais das Humanidades, enraizadas nos antigos paradigmas renascentistas, como Literatura, Filosofia da Arte, História da Arte, etc., na verdade representa a tentativa de operar a fusão dessas últimas com a herança já secular das Ciências Sociais. No entanto, ao recortar-se o campo dos Estudos Culturais como novo espaço de ordenamento acadêmico, ocorre o movimento inverso, a invasão da pretensa neutralidade do olhar sociológico-antropológico pela hegemonia da hermenêutica, ou seja, o trabalho entre literário e crítico da interpretação dos valores. Parece que os assim chamados estudos culturais tendem a consolidar-se como disciplina de descrição e análise das pulsões e dos imaginários sociais através dessa atividade hermenêutica mediadora, dirigida para toda e qualquer prática sócio-cultural e para todo e qualquer objeto simbólico, aí incluídos aqueles usualmente reconhecidos como práticas e objetos de arte.

Diante do olhar cético, descritivo-positivista, pragmático, herdado das Ciências Sociais, todos os valores se equivalem. A história das representações de alegria sexual assim como a história das imitações e da recepção da Mona Lisa são igualmente pertinentes no esforço de descrição da reprodução imaginária da civilização ocidental. Tanto o orientalismo que Edward Said desentranha da literatura ocidental quanto os seriados infantis exibidos pelos canais periféricos da TV brasileira ajudam a produzir e reproduzir as bases culturais da globalização imperial. Se os Estudos Culturais representam uma resposta à condição pós-moderna do saber humanístico, acho que vale a pena citar aqui um trecho esclarecedor de Beatriz Sarlo: "a condição pós-moderna tem uma inspiração inevitavelmente sociológica: sua autoconsciência é a sociologia que lhe permite instalar o relativismo valorativo como horizonte de época." No Brasil, se poderia argumentar que essa autoconsciência passou da sociologia para a antropologia ao longo dos anos 70.

Cabe não confundir relativismo valorativo (ou axiológico) com ausência de valores. Afinal de contas, se é relativismo de valores é porque estes existem -- e no plural. Cabe também não confundir com caos apocalíptico ou proliferação randômica a imagem da disseminação infinita de tais valores. Essa é uma imagem destinada a contra-restar a angústia provocada pela imprevisibilidade da multiplicação dos conflitos entre tantos valores. Mas convenhamos. Sejamos um pouco cartesianos. Há sempre alguma geometria no abismo. A começar pela dimensão antitética, dual, inerente a qualquer conflito, isso para não falar da dimensão pontual, de cruzamento de linhas, inerente a qualquer lugar em torno do qual se desenrole um conflito. Todo conflito se dá inicialmente como impasse e situa-se numa encruzilhada, historicamente constituída. Conflitos envolvem pulsões e estratégias coletivas. Toda estratégia pode ser geometricamente projetada. De resto, nem toda geometria é cartesiana.

O relativismo de valores resulta de um processo histórico complexo, que se confunde com a própria história da modernidade, da modernidade como história cultural da dessacralização, da dessublimação. Ou, se quisermos remontar à fórmula de Weber, pai supremo do olhar sociológico atual: a modernidade cultural como processo de desencantamento. O último bastião desse processo foi a arte, que se tornara o espaço de uma sacralidade auto-constituída no interior da civilização laica. Uma civilização em que a clivagem sócio-cultural decisiva deixa de ser a que separa sacerdote e rei de plebeu e burguês e passa a ser aquela que separa o naïf do intelectual.

A história da dessublimação na arte tem sua própria complexidade. Relaciona-se de cara com a mercantilização do objeto de arte. Será possível, na modernidade, separar o conceito de arte do de mercadoria? Por ser constituído de objetos fabricados, o campo do estético vincula-se visceralmente à noção de valor de troca, pois todo objeto fabricado (artefato) é mercadoria. O que a função estética faz é justamente separar um conjunto de mercadorias e revesti-las da aura do sublime, destinando-a outros usos, relacionados com a transmissão (ou seja, a reprodução social) -- transmissão do saber coletivo, transmissão do patrimônio. O objeto de troca é investido de novos valores -- torna-se objeto de ascese, de disciplinarização, de culto laico, de memória afetiva individual e coletiva.

Dessublimar, em matéria de arte, significa tentar tirar dela seu caráter de objeto. Nesse sentido, o movimento da dessublimação é por excelência um movimento de corporalização, de rebaixamento, de reincorporação do caos e do acaso ao arbítrio necessário do acontecimento artístico. Por mais laico ou aparentemente anticristão que seja o gesto artístico dessublimador típico das vanguardas não construtivistas do século XX, seu acontecer manifesta um tipo de pulsão profundamente enraizada nos atavismos da civilização cristã, dentro da qual a modernidade ocidental surgiu, feito adaga. A dessublimação realiza uma dialética do sublime na medida que o acontecer estético anti ou des-construtivo dissolve o sublime promovendo sua encarnação. O corpo incorpora o sublime através de uma mística da abjeção, como se pode ler em Pouvoirs de l'horreur, de Julia Kristeva, ou na leitura que Auerbach faz em Mimesis da dialética sublimitas/humilitas em Francisco de Assis. E isso não se dá apenas no contexto das vanguardas, mas também, e principalmente, no âmbito de sua co-irmã, a arte industrial de massas em fase heróica. Há uma bela frase no ensaio de Benjamin sobre a obra de arte que metaforicamente descreve esse movimento da dessublimação. Segundo Benjamin, no cinema "a massa distraída (...) faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo." O objeto se dissolve no fluxo pulsional de uma intermitente subjetividade coletiva.

Enquanto fato histórico no interior da instituição arte ocidental, o movimento da dessublimação não tem significação em si. Ele depende inteiramente da existência do sagrado estético laico. Ele se faz contra a normatividade deste, contra sua disciplinaridade. Ele não representa nada de essencial, espontâneo ou orgânico do corpo, embora possa representar-se a si próprio enquanto tal, na esfera da ideologia, porque ele tem um conteúdo afirmativo também, embora não total. Ele não é presença em si e sim pura antítese. O corpo surge aí como limite, como resistência. O corpo é vivido como antítese de todas as ilusões fantasmáticas, afetivas e filistéias, corporificadas no sistema de objetos cultuados. Nesse sentido, o movimento da dessublimação na arte contemporânea realizaria uma dialética visceral, complementar à dialética especulativa e discursiva da tradição hegeliana e adorniana. A tradição dialética entendida como disciplina da negação ao que é.

O leitor que me concede sua paciência não será ingênuo a ponto de lhe ter passado despercebido que toda a sujeira e indisciplina suscitada pelas estéticas dessublimadoras já foi devidamente reprocessada, pasteurizada e glamurizada, de tal modo que arte e cinema deixaram por um momento de opor-se, pois em ambas agora se ressublima o dessublime, expondo figurativamente essa tensão. No cinema, o dessublime refere-se ao fator eminentemente pulsional, ao passo que o sublime diz respeito ao caráter de objeto estético. No mercado/circuito/esfera da arte contemporânea, uma das expressões mais celebradas de toda essa dialética é o trabalho de Robert Mapplethorpe. Ou ainda, permanecendo no universo norte-americano, um movimento análogo é a incorporação ao repertório curricular acadêmico de poesia escrita por adolescentes negros ou hispânicos aidéticos e drogados.

Na esfera da cultura, tal como definida pela sociologia e pela antropologia, os valores são estratégias discursivas para afirmação de forças e para a contestação de forças por outras forças. Essas forças atravessam transversalmente todos os corpos pulsionais -- individuais, grupais, territoriais. Considero naïf hoje acreditar que qualquer força possa ser eliminada, seja no plano argumentativo ou no prático. O que está em permanente alteração são as relações entre as forças. Todas as esferas práticas, cada qual na sua jurisdição, estão constantemente distribuindo e redistribuindo os fluxos pulsionais, através da disputa de espaço entre valores. A relação entre essas esferas é horizontal. Elas são regidas por leis próprias. Nesse sentido, a crítica judicativa, se por um lado, não faz mais sentido como legisladora de um desnecessário e enfadonho gosto universal, por outro eu a vejo como extremamente necessária, pelo menos no Brasil. A crítica judicativa deve existir para permitir o aperfeiçoamento da consciência técnica. Existe uma técnica melhor ou mais adequada que a outra, assim como existe uma maneira de agredir a técnica para dessublimá-la melhor que outra. Quanto à significação intrínseca do acontecimento artístico, só pode hoje ser lida a partir de uma avaliação do campo de forças. Do ponto de vista do sentido, não há como qualquer enunciado estar situado fora de um campo de forças.

Intelectuais são profissionais da inteligência. Parece que a sociedade informacional e tecnocomucacional tende a refuncionalizá-los de maneira tão drástica que talvez a profissão do intelectual enquanto tal suma e no máximo sobrem no cenário, como disseram Foucault e todos aqueles franceses, intelectuais universitários, funcionários de um intelecto disseminado, dessublimado. Seja como for, creio que a função intelectual hoje implica em saber reconhecer a necessidade das forças atuando em meio à fantasmagoria das representações, desmascarando as ilusões da convicção. Sem estar isenta de paixões, a função intelectual atua como um breve contra as paixões mais fáceis, mais epidérmicas. Nesse sentido, o conceito de naïf sofre uma ampliação na pós-modernidade. Ele passa a incluir o intelectual de tipo iluminista-romântico. Aquele que se consome no fogo de suas convicções, por não conseguir delas se libertar. Ao ponto de vista crítico, sobrepõe-se, e às vezes contrapõe-se, uma perspectiva cética e pragmática.

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