segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Karl Erik Schollhammer

Entrevista

Karl Erik Schollhammer



Gabriela Lírio
Coordenadora de área e professora do curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá/Editora da Revista Digitagrama


1) No artigo "A procura de um novo realismo. Teses sobre a realidade em texto e imagem hoje" você afirma que a pós-modernidade é marcada por um questionamento radical da realidade e por um excesso de imagens. Nesse cenário, como se articula a produção artística contemporânea brasileira?

A grosso modo, se pode dizer que o pós-moderno tem sido identificado com um questionamento de toda a referencialidade. A cultura contemporânea se apresenta como uma cultura representativa maciça que sobrepõe uma realidade de simulacro a qualquer possibilidade de referencialidade. Isso significa que a arte e a literatura e, também, de certa maneira, o cinema têm sido, nesse questionamento, forçados a uma meta-reflexão sobre a questão da representabilidade do real, mas sempre dentro de um certo ceticismo em que se questiona a possibilidade de ser alguma coisa sem levar em consideração as convenções representativas.

No entanto, dentro dessa perspectiva, surgem outras manifestações que tentam não só questionar a questão representativa de um ponto de vista meta-reflexivo – o que é uma imagem, o que é uma realidade além da imagem, se é que há uma realidade além dela –, mas também tentam introduzir a referencialidade de uma outra forma dentro da obra. Percebe-se isso claramente nas artes plásticas, principalmente, em grandes exposições como, por exemplo, a exposição "Sensation", da Tate Galery ou a recente no Museu do Brooklyn; exposições de novos artistas que trabalharam com a noção de referencialidade sempre entendida como algo irrepresentável ou não representável, no limite do real, ou seja, no abjeto. Por exemplo, coisas abjetais no informe, na diluição das formas representadas.

O abjeto é definido, por Kristeva, como um tipo de fusão entre sujeito e objeto. O abjeto caracteriza um objeto que, na realidade, se sobrepõe à possibilidade de distância causando, portanto, efeitos psicanalíticos de repressão e trauma. Essa forma de realismo leva a noção para um outro caminho: não mais como uma linguagem do verossímil, mas um realismo que introduz a realidade de uma maneira efetiva, de uma maneira além da representação, aquém da representação. Hal Foster analisa essa questão em "O retorno do real" na perspectiva de um realismo traumático. Então, o próprio conceito de realismo traumático é um conceito contraditório porque o trauma não pode ser representado, ele é definido como irrepresentável.

Na perspectiva de Foster, certos artistas, principalmente aqueles que trabalham com a questão do abjeto, do obsceno, do informe reproduzem os efeitos traumáticos na própria obra como efeitos de repulsão, de nojo, efeitos afetivos basicamente negativos, chocantes, efeitos de ruptura, ou seja, efeitos que se sobrepõem a uma possibilidade de uma percepção estável das imagens. Ele analisa o trabalho de Warhol, principalmente a série chamada "Morte em América", em que o artista reproduz uma série de imagens da imprensa: acidentes de trânsito, linchamentos, acidentes fatais, suicídios, fotos que captam algum tipo de movimento limítrofe. Na perspectiva pós-moderna, Warhol é um máximo representante do pop-art que simplesmente meta-reflexionava sobre o que é a imagem dentro de uma aceitação da imagem enquanto simulacro.

Warhol trabalha a imagem na revelação de certos efeitos traumáticos, por exemplo, através de uso da repetição da imagem consegue refletir algo que é próprio ao trauma: a repetição compulsiva, a obrigação repetitiva que, na análise lacaniana, é o que define o trauma. Na realidade, ele diz que Warhol constrói uma ponte, entre, por um lado, uma cultura da imagem pop, pós-moderna; e, por outro lado, através disso, reflete uma quebra da cultura da imagem que é um tipo de realismo que emerge aí como um trauma, como um choque, como algo que se manifesta com tanta força que desestabiliza não só as certezas representativas, mas as certezas subjetivas. O próprio sujeito é colocado em questão. Essa é a primeira e a mais importante perspectiva dentro do trabalho de Foster e, é muito utilizada no cinema para tentar diferenciar certas manifestações cinematográficas que, por exemplo, usam o recurso da violência, ou de efeitos chocantes, de uma maneira diferente do uso desse recurso dentro do cinema comercial, pornográfico, no cinema comercial violento, por exemplo, filmes como "Amarelo Manga", "Ônibus 174"...

2) Hoje se discute muito a relação entre ficção e documentário. Um dos sintomas da pós-modernidade é a necessidade de documentar o real o tempo inteiro. No cinema brasileiro, a reiteração da violência, a compulsão pela repetição traumática a que você se refere, se apresenta de forma vigorosa. Outro aspecto importante é a discussão entre os limites entre ficção e documentário. Em "Ônibus 174" perguntamos até que ponto as imagens exibidas, que foram acompanhadas ao vivo através da TV, quando colocadas no documentário tornam-se ficcionais, na medida em que o diretor adota um determinado ponto de vista muito claro: seu discurso não se refere ao evento, ao acontecimento em si, mas sim sobre o modo pelo qual a sociedade produz "Sandros".

Essa discussão apresenta duas dimensões muito diferentes. Por um lado, há a discussão sobre a diluição entre gêneros, a diluição entre ficção e documentário, ou seja, a ficcionalização do documento e, também, a introdução do documento na ficção. Isso ainda está dentro da discussão pós-moderna, da perda da referencialidade, da perda de alguma base sólida para dizer o que é o real. Mas na perspectiva dos novos realismos há uma outra maneira de discutir isso que é a questão do documentário levantada como um sintoma de novas linguagens que tentam trazer para dentro da obra efeitos da realidade, mas que não são necessariamente efeitos violentos ou chocantes ou traumáticos. Na minha perspectiva pessoal, por exemplo, uma compreensão do novo realismo apenas na perspectiva de um realismo traumático é muito limitadora, reduz as possibilidades de um espectro muito limitado de criatividade, ou seja, você volta só com um determinado tipo de choque, de violência, de sujo, de escracho... mas, existem outras maneiras, ao invés de usar o documento em uma dimensão representativa, certas obras trazem para dentro o documento em sua própria criação. Na literatura, você vê isso em certas falas que são testemunhais que têm um tipo de ligação com a biografia, mas que, às vezes, são trazidas para dentro da ficção, por isso abordam a questão do gênero de uma maneira muito mais concreta. Por exemplo, um livro como "Capão Pecado", de Ferréz, que traz escritos não-literários, cartas, fotografias de pessoas reais coexistindo com personagens ficcionais. Esse tipo de documento não é apenas um diálogo com a ficcionalidade, ele é um verdadeiro índice de algo que é real. Tenho chamado isso de realismo indicial. Você traz para dentro da obra um tipo de signo que não representa a realidade, mas que é a realidade e apresenta a obra de arte seja ela literária, plástica ou cinematográfica de uma maneira muito diferente.

Assisti a uma entrevista com Karim Ainouz, aqui na PUC, em que ele mostrou um trecho de "O céu de Suely". Nele, o diretor filmou a atriz Hermila Guedes após rodar a cena em que Suely sai de casa depois de uma briga com a avó. A atriz estava muito emocionada (...), ela saiu do set, cruzou a praça da aldeia e, sem que ela soubesse, Ainouz continuou a filmá-la (...) E funcionou, disse ele, trouxe, para dentro do filme, esse episódio, esse fragmento como alguns outros também, mas que, em realidade, não são fragmentos do neo-realismo italiano, mas fragmentos que revelam um tipo de realidade introduzida que dá um outro fundamento à obra.

Pelo caminho de um lirismo, de um afeto é que se constrói esse tipo de signo. Tento trabalhar exatamente a relação entre um realismo indicial e aquilo que é chamado de realismo afetivo, em que se procura a criação de um efeito, não um efeito chocante, de repulsa, mas um efeito de apego que é tão efetivo que se recria a situação dentro da obra. Recriando a situação se está no limite da representação de novo, mas de uma maneira muito diferente, que não é necessariamente traumática, chocante, não é pela ruptura, mas é pela diluição entre a distância que se tem quando se depara com uma obra de arte, seja ela qual gênero for, e sua emoção poética, estética aí envolvida.

3) Você se refere ao efeito no espectador? Na aproximação que o espectador nesse movimento, nessa inserção, experimenta? Poderíamos afirmar que o processo de identificação, nesse sentido, apresenta-se modificado?

Exatamente. É um tipo de identificação que não se dá necessariamente como a identificação que, antes, nós entendíamos: a de um sujeito que se identifica com o personagem e traz para dentro de sua vida esse personagem, seja no teatro, na literatura, onde for. Aqui a identificação efetivamente existe no momento do acontecimento, existe de uma maneira que se sobrepõe a uma distância subjetiva diante da obra (...) refiro-me à própria característica da obra, na perspectiva investigada por Deleuze: a obra de arte como um bloco de afetos, ou seja, algo que tem autonomia entre o sujeito que tem afeição e o objeto que é causa de uma determinada afeição. Um bloco de afetos é algo que se cria performativamente, é a própria performance da obra de arte. Na realidade, os três conceitos que ele menciona: o índice (um signo que traz sempre um contato efetivo entre o objeto e os signos), o afeto (que remete à autonomia da experiência afetiva, uma experiência não no sentido cronológico, mas o afeto como um real sensível), e a performance como esse aspecto procurado através de uma outra linguagem, a fim de criar um tipo de dramatização da história de vida pela obra. Você se sente no lugar, você é envolvido através das técnicas que cada arte usa; a literatura, o cinema, o teatro, a música. Na literatura é algo muito interessante de se questionar, como a performance se dá musicalmente, ritmicamente, de uma maneira que envolve o sujeito dentro da obra. O índice apresentado na obra através de pequenas âncoras e a performance devolvendo a obra à realidade: a obra intervém na realidade através da performance. Não porque ela será parte do espetáculo da realidade, mas porque na sua própria vivência, irá criar outras possibilidades de convívio, de interação, de vida. Nessa dimensão, me interessa a questão do realismo já tão definida dentro do contexto do realismo histórico, mas, sobretudo, de seus limites...

4) E quais seriam os limites da representação contemporânea, uma vez que, todo tempo, nos deparamos com eles?

O realismo contemporâneo não pode ser confundido com o realismo histórico, porque o realismo histórico é profundamente ligado a uma determinada estratégia representativa. O realismo contemporâneo está definido por linguagens estratégicas de representação, que apontam aos limites da representação e tentam trazer para dentro da obra algo alheio a esses limites, ou seja, a realidade tal qual, como experiência ou como fato documental. Há muitos estudos com relação ao tema: há aqueles teóricos que investigam os limites entre o documento e a ficção, que é uma questão muito interessante; os limites entre o autobiográfico e a construção da personagem (...); os limites entre o testemunho, por exemplo, o testemunho dos presos do Carandiru e a encenação narrativa disso, nos depoimentos...

5) Nesse ponto, há uma questão ética investigada, por exemplo, por Bauman, em "A ética da pós-modernidade", em que o autor redimensiona a noção de certo e errado, bem e mal... "Cidade de Deus", por exemplo, é uma adaptação do romance homônimo de um ex-morador da Cidade de Deus, Paulo Lins, mas o filme traz elementos que não condizem com a história da comunidade, o que gerou muita polêmica. Fernando Meirelles afirma seu direito de dirigir uma ficção. Mas se é uma ficção porque se chamar "Cidade de Deus" e ser uma adaptação de um romance que pretende ser um documento de uma determinada realidade?

É uma maneira da ficção explorar o lado documental. Paulo Sacramento fez "Um prisioneiro da grade de ferro" colocando a câmera nas mãos dos presos. Mas resolve a questão? Não. Quem editou o material foi ele, ministrou um workshop para os presos, é uma questão quase antropológica, ensinou o índio a escrever e depois vai ler o que o índio escreve e dizer que isso é expressão originária, não é não (... ) Houve uma discussão indireta entre Bernardo Carvalho e Paulo Sacramento. Carvalho disse: "Paulo Sacramento não é prova das possibilidades não-ficcionais, a obra dele é tão ficcional quanto às outras, não há nenhuma diferença". Bernardo Carvalho, por outro lado, representa uma posição extremamente cética e pós-moderna (...) porque ele rejeita essa possibilidade de introdução de elementos, embora se submeteu ele mesmo a uma experiência muito interessante, a do Teatro da Vertigem (...) em um contexto de produção comunitária, uma outra estratégia dentro desses realismos em que você está fazendo uma obra de arte, uma peça de teatro no caso, um compromisso através de um envolvimento comunitário com participantes que não participam diretamente na obra, mas que têm uma vida ligada à obra de uma maneira diferente da realidade que você vai trabalhar. Há uma diluição da hierarquia e da distribuição entre produção, obra e realização, ou seja, como se a própria produção e a própria realização da obra envolvessem essa dimensão comunitária, política, ética. Uma forma de produção artística que está surgindo cada vez mais, em movimentos, comunidades, como "Nós do Morro", "AfroReggae", vários grupos trabalham nessa perspectiva. Interessante é que há uma diluição da própria entidade obra porque a preparação e a realização são mais importantes do que a obra em si. No caso do "Teatro da Vertigem" em que montam uma peça de teatro em um espaço público, ou em um hospital psiquiátrico, ou no DOP’s, como foi aqui no Rio de Janeiro(... ). Certas obras se dispõem a isso, outras obras, quando trata-se de um cineasta, de um escritor, de um artista plástico, esses profissionais lidam com essa questão dentro das premissas de suas próprias linguagens(...) não através de um necessário envolvimento comunitário. Então, como você escreve ou faz um filme comprometido com a realidade que se quer retratar? Essa é uma questão muito interessante, importante para muitos artistas contemporâneos. É um outro tipo de compromisso porque não é um engajamento ideológico, é um engajamento concreto.
6) O engajamento ideológico marcou muito a década de 70, os CPC’s da UNE, a própria realização de "Cabra marcado para morrer", de Coutinho que, historicamente, foi gerado no tempo de sobrevivência da ditadura... Uma ficção que se transformou em um documentário a partir de um caráter ideológico, de um pensar coletivo que mudou muito...

Hoje em dia, temos projetos artísticos construídos sobre essa questão(...). Isso é interessantíssimo, como isso impõe à realização da obra certas exigências intrínsecas, assim como aconteceu com o neo-realismo(...). No neo-realismo, havia um pacto entre uma necessidade e uma possibilidade: uma necessidade de baratear e uma possibilidade de criar uma nova linguagem. Hoje, há um caminho de dessacralização da arte cinematográfica que, talvez, tenha mais a ver com produções mais baratas, tecnologias mais leves, o digital, por exemplo, é importantíssimo, possibilita realizações mais acessíveis.

7) Como você analisa na produção cinematográfica brasileira hoje a falta de desejo dos personagens. Quando há um desejo, geralmente, é o de evasão, como no recente "Um céu de Suely", em que a personagem compra uma passagem de ônibus para o lugar mais distante. É o que Jean-Claude Bernardet descreveu como os personagens "à deriva da narrativa": não vivem, são vividos pelos acontecimentos. Não há poder de escolha.

Exatamente, eles estão à deriva. Isso é muito forte nas narrativas contemporâneas, tanto no cinema como na literatura e, especialmente, na literatura porque o cinema tem um certo compromisso de formato com o enredo, é muito difícil fazer um filme sem enredo. É claro que a literatura aponta para narrativas que se desestruturam do desejo organizador, ou seja, que multiplicam as histórias pequenas e as estruturas fragmentadas que não têm uma causalidade muito clara, se é que tem. O último romance de Luiz Ruffato é um bom exemplo disso: um panorama de pequenas histórias, mas não existe uma conexão clara entre elas (...) Os personagens vivem aspectos de contingência, do acaso, de pequenas oportunidades, pequenos dramas, cruzamentos, encontros.
8)Você acredita que essa escritura é, também, reflexo de um certo processo criativo contemporâneo? Surge na medida em que é criada, não há um planejamento, uma elaboração anterior...

Acho que pode ser. Mas há um lado performático nisso. É mais interessante a instalação de certas situações; monta-se uma história como se fosse uma instalação que se perpassa: pode-se passar por aqui, por ali, mas, na realidade, se é um colaborador das histórias realizadas. Há pequenos episódios, pequenas realizações, pequenos conflitos, mas o interesse todo está no cruzamento entre você e essa pequena dimensão. Os livros de João Gilberto Noll têm esse caráter. Há um lado autobiográfico, mas sem heroísmo, sem dramas existenciais, contando a vida como ela ocorre.
9) Há hoje festivais que privilegiam os chamados "filmes de bolso", produzidos através de celulares, que já apresentam boa definição, o que permite a exibição de imagens para um público cada vez maior. Como você analisa o impacto das novas tecnologias nas formas de representação realistas?

Já houve uma modificação grande nas formas literárias, por exemplo, com o aparecimento dos blog’s. Há maneiras muito diferentes de escrever, de contar uma história. No cinema, daqui a pouco cada um vai ser seu próprio film maker. Há um lado interessantíssimo nisso. (...)O abismo que existia antigamente entre uma mídia super-poderosa e a possibilidade de criação autônoma está diminuindo. Isso cria um outro tipo de documento, de aproximação, com aspectos nefastos às vezes, como as pessoas que param em um acidente de trânsito para tirar fotos e não deixam o resgate chegar perto... é a espetacularização do real.. O lado bom é que o sujeito está passando por uma encenação já conhecida quando se tem esse tipo de experiência. Isso ajuda a conhecer outras experiências que não dependem tanto dessa espetacularização.

Nenhum comentário: